Como é ser lésbica no Brasil em 2020?

Como é ser lésbica no Brasil em 2020?

No Dia Internacional da Mulher, venho dar o meu relato a você de como é ser lésbica no Brasil em 2020. A partir das minhas vivências e estudos, mostro a seguir situações que mulheres lésbicas vivem no dia a dia. 

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Antes, entenda o meu lugar de fala

Para começar, é preciso que eu te contextualize de qual lugar eu falo. Sou jornalista LGBT, mulher cis, branca, de classe média, com mais de 80% das vivências no Espírito Santo e em bairros da classe AB. 

Com isso, faço a ressalva de que os pontos que aqui levanto fazem parte desse recorte racial, econômico e geográfico. 

Entendido isso, te convido a refletir sobre como é ser lésbica no Brasil.

Ser lésbica no Brasil é sair 27 vezes do armário

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A conta foi feita - e mostrada - pelo Canal das Bee nesse vídeo ótimo, mas, se pararmos para pensar é até mais do que 27 vezes. 

Ilustrando melhor, ser lésbica no Brasil é precisar se assumir:

  1. Para a mãe; 
  2. Para o pai;
  3. Para as/os amigas/amigos mais próximas/próximos;
  4. Para as amigas que estavam distante e se reaproximam em algum momento da sua vida;
  5. No trabalho - e a cada trabalho que você tiver;
  6. Para os parentes uma vez;
  7. Para os parentes de novo quando soltam uma piada lesbofóbica;
  8. Em um curso/aula que você faz; 
  9. Quando você vai procurar um lugar para morar (seja para alugar ou para comprar);
  10. Para os vizinhos, depois que você se mudar;
  11. Toda vez que alguém do sexo oposto der em cima de você;
  12. Nas consultas médicas que isso for relevante;
  13. Quando for comprar a aliança (seja por causa do estranhamento de uma mulher ir comprar alianças, seja na hora de colocar os nomes);
  14. Etc, etc, etc. 

 Lembre-se que boa parte dessas situações não acontecem apenas uma vez, por isso o número de vezes que eu saí do armário já foi muito mais que 27. Afinal, você não tem 1 amigo ou 1 colega de trabalho apenas durante a vida inteira, certo? E cada vez que eu precisei sair do armário foi diferente. Seja por causa do contexto em si, seja por dificilmente ser possível saber a reação da pessoa. Mesmo quem comenta que aceita pessoas LGBTQIA+ pode se mostrar diferente quando a tal pessoa se personifica diante dela.

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Ser lésbica no Brasil é precisar ouvir perguntas que jamais seriam feitas para uma mulher hétero

Cada vez que uma lésbica sai do armário, as pessoas acham que ela está abrindo as portas para perguntas indelicadas que ou não fazem o menor sentido ou simplesmente invadem a nossa privacidade. Algumas das perguntas mais comuns:

"Você já tentou ficar com homem pra saber se não gosta mesmo?"

Pare para pensar: você que é hétero, já tentou ficar com alguém do mesmo sexo pra saber se não gosta mesmo? Lembrando que não vale uma vez só ou só com uma pessoa para essa resposta ser aceita. Ou seja, precisa ter feito sexo algumas vezes e com mais de uma pessoa. Afinal, se foi só com um homem, não vale, sempre dizem que “você que não encontrou o cara certo ainda”. 

"Quem é o homem da relação?"

Somos duas mulheres, portanto, não há homem na relação.

"Você não sente falta de nada?" 

A frase é usada insinuando que: ou faz falta um homem, ou faz falta um pinto na relação. E, não, não faz falta alguma. 

"Como vocês fazem sexo?"

Essa pergunta também insinua que um pinto faça falta. Sobre isso, você só precisa saber uma coisa: sexo não é só penetração. Pode ter penetração de diferentes formas, como  pode ter sexo de diferentes formas sem penetração. 

Outras perguntas

Você pode encontrar outras perguntas comuns nos links abaixo:

Ser lésbica no Brasil é ter a desconfiança de outras mulheres

Infelizmente, há mulheres héteros que acham que uma lésbica vai dar em cima delas só por serem mulheres. Ou que andando com uma lésbica vão pensar que ela também é. Ambas as situações já aconteceram comigo, seja declaradamente ou implicitamente. Neste ponto, esclareço algumas coisas:

  1. Como hétero, você se interessa por todos os homens? Da mesma forma, lésbicas se sentem mais atraídas por algumas mulheres e nada atraídas pela grande maioria delas. 
  2. Se uma lésbica te abordar - na balada, por exemplo - é só dizer “não” ou que você “não curte” e tudo bem. Raros são os casos de insistência. 
  3. Se você acha que a sua amiga pode estar confundindo as coisas, simplesmente esclareça - de forma similar ao que você faria se fosse uma amizade com homem. Aquelas dicas de dizer que “admira muito como amiga”, que ela é “praticamente uma irmã” pra você, costumam ser gentis e funcionar. Lembre-se de ser clara e se certificar de que ela entendeu.
  4. Andar com uma amiga lésbica na rua não faz de você uma lésbica. Se alguém ver e pensar isso, avalie se você faz questão de ser bem vista por pessoas preconceituosas a tal ponto. Mas se você tem medo de ser vista como lésbica, a minha sugestão é entender o que motiva este medo. Sempre é bom se conhecer melhor, ao invés de se afastar de uma pessoa que é querida para você.

Ser lésbica no Brasil é ter muito medo de homem na rua

No Brasil, 6 mulheres lésbicas são estupradas por dia, segundo dados de 2017. Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez. Como aponta o portal Gênero e Número, assim como nos outros tipos de violência, as mulheres negras são a maioria das vítimas de estupro contra lésbicas, representando 58% das vítimas. 

Tal violência nos remete ao chamado estupro corretivo, quando a motivação do estupro é uma tentativa de mudar a orientação sexual da vítima. Ainda que, por falta de dados, não há como afirmar em quais casos isso ocorreu, quem é lésbica vive sob um medo constante que isso possa acontecer a qualquer hora na rua, no bar, na balada e até mesmo em casa (onde ocorrem 61% dos estupros). 

Para saber mais dados e entender melhor sobre o assunto, leia a matéria do Gênero e Número sobre o número de estupros a mulheres lésbicas no Brasil. 

Ser lésbica no Brasil é ter poucas referências de outras lésbicas

Quando você pensa em uma mulher lésbica, como você a imagina? A pesquisadora Adriana Agostini indaga: “Será que, ao pensar em uma mulher lésbica as pessoas conseguem perceber a infinidade de imagens que pode ser convocada?”. Veja um mosaico feito pela doutora em Comunicação em seu e-book “Do invisível ao visível: Em busca de imagens da lesbianidade”:

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A falta de referências, é um reflexo da invisibilidade lésbica que há na sociedade e na mídia como um todo. E, neste sentido, abrimos o leque para dois eixos: as produções artísticas (literárias e cinematográficas) e as peças publicitárias. 

Nas produções literárias do mundo ocidental, a ausência de personagens lésbicas vem desde Roma e Grécia antiga, uma vez que, na verdade, a vida das mulheres simplesmente não era considerada importante. E assim continuou sendo por muitos anos.  

Já nas produções cinematográficas, temos Hollywood como principal difusor de imagens no ocidente. Poucos sabem, mas entre os anos de 1930 e 1968, as produções seguiram o Código de Produção de Hollywood, mais conhecido como Código Hays. Sob a liderança do pastor Will Hays, este código explicitava qual conteúdo era aceitável ou não-aceitável para os filmes produzidos nos Estados Unidos, incluindo aqui a proibição da representação de pessoas e relações homossexuais nos filmes. Segundo Adriana Agostini, tal proibição vigorou até 1961, quando se passou a admitir que o tema fosse abordado, desde que com cuidado e discrição.

Quando nos voltamos para a publicidade nos dias de hoje, temos que a população LGBT aparece em apenas 0,33% das propagandas - segundo dados do Facebook. Pior: as pouquíssimas propagandas que têm lésbicas, elas aparecem de forma hipersexualizadas. 

É inegável que nos últimos anos muitas iniciativas surgiram - e continuam aparecendo - em cada um dos segmentos citados para que haja mais representatividade lésbica, porém, ainda há, sim, poucas referências de mulheres lésbicas - sobretudo de mulheres lésbicas que não sejam brancas. Repararam como naquele mosaico não há nenhuma mulher negra ou asiática? Tais iniciativas e mudanças têm grande importância na formação tanto de uma consciência social - a imagem que você tem de uma mulher lésbica -, como na consciência individual - ou seja, a imagem que uma mulher lésbica tem de si mesma. 

Sobre o assunto, recomendo as seguintes leituras:

Você pode até ser lésbica no Brasil, mas desde que seja bem “feminina”

Este é um preconceito velado que existe no Brasil, mas que é sentido na pele de quem é mulher cis e não segue os padrões de beleza convencionais femininos. Assim, a condição é você pode ser lésbica, desde que seja bem “feminina”. Qualquer traço que te afaste um pouco dessa imagem imaculada - seja o cabelo curtinho, uma calça mais frouxa ou não usar salto alto - pode ser motivo de preconceito. Por não seguir tais padrões, eu já ouvi muitas vezes comentários e perguntas como:

  • “Ah, é por isso que você se veste assim, né?” (após mais uma saída do armário);
  • “Você não gosta de usar saias?” (parece uma curiosidade, mas aqui remete à imagem de que mulher tem que usar saias);
  • (quando comento que às vezes uso vestido) “Nossa, mas você deve ficar bem mais mulher de vestido, né?”;
  • “Você sempre teve cabelo curto?”;
  • “Mas você não gosta de usar nem um brinco? Você usa batom, bem que podia usar brinco também!”

Sei que mulheres héteros que, por exemplo, têm o cabelo curto ou raspado, também passam por algumas situações desse tipo. O que esclareço aqui é que, no caso de mulheres lésbicas, há mais uma barreira para a nossa aceitação. Como se houvesse uma condição: só pode ser lésbica se for “feminina” - com aspas, é claro, porque me refiro ao padrão de beleza feminino. 

Ser lésbica no Brasil é...

...passar por tudo isso e continuar amando mulheres!


Excelente reflexão. Texto muito completo e com referências para o assunto não se esgotar e gerar mais debates.

Samara Faccin

Co-founder | Business Director

4 a

Muito bom!

Carolina Maria

Pesquisadora de futuros & tendências | Diversidade | Inclusão 🏳️🌈

4 a

Ficou muito legal, querida! Parabéns demais e obrigada pelo relato 💜

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