Como se tudo não passasse de uma gripezinha

“Essa anormalidade [fetichismo], que podemos incluir entre as perversões, baseia-se, como sabemos, no fato de o paciente (quase sempre homem) não reconhecer a ausência de pênis na mulher – algo que lhe é desagradável, como evidência da possibilidade de sua própria castração. Por isso ele recusa a sua própria percepção sensorial, que lhe mostrou a falta do pênis nos genitais femininos, e se atém à convicção oposta. Mas a percepção recusada não deixa de ter alguma influência, pois ele não tem a coragem de afirmar que viu realmente um pênis. Em vez disso, ele toma outra coisa, uma parte do corpo ou um objeto, e lhe atribui o papel do pênis que não quer dispensar.”
(FREUD, 1938, p. 267)

O fetichismo é um dos três tipos da estrutura perversa. Diferentemente da neurose, marcada pelo recalque, e da psicose, definida pela foraclusão, o mecanismo fundamental de defesa da perversão contra a castração é a recusa. O perverso perceberia a ausência de pênis nos genitais femininos, mas age como se o pênis estivesse em outro lugar.

A epidemia do coronavírus, por exemplo, impõe a todos nós a castração. Confinamento, protocolos de segurança, incremento de orientações sanitárias são procedimentos que delimitam a fronteira entre a vida e a morte. Pode-se, contudo, recusar-se a reconhecer a castração imposta pelo coronavírus. O vírus não seria perigoso (apenas uma “gripezinha”), mas estaríamos “a salvo” se continuássemos trabalhando.

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