Complementaridade de políticas, difusão tecnológica e ganhos de produtividade para a economia brasileira.
Luiz A. Esteves
1. Introdução
James Tybout, um dos maiores estudiosos do desempenho produtivo das firmas industriais, inicia seu artigo sobre o desempenho da manufatura em países em desenvolvimento com a seguinte frase: “The manufacturing sector is often the darling of policy makers in less developing countries (LDCs)” (Tybout 2000, p. 11). No caso brasileiro tal sentimento não é diferente. Vários são os argumentos pelos quais policy makers locais buscam priorizar tal segmento econômico por meio de políticas setoriais, comumente conhecidas como políticas industriais, cujo objetivo final é distorcer de forma deliberada alguns incentivos e preços relativos de modo a tornar o setor manufatureiro mais atraente aos investimentos privados[1]. Contudo, cabe destacar que tais práticas não são exclusivas de países emergentes, sendo também praticadas, em diferentes graus de intervenção e em diferentes períodos de tempo, nos mais diversos países industrializados[2].
Partidários e não partidários da política industrial são capazes de fornecer argumentos teóricos e evidências empíricas para suportarem suas posições e argumentos[3]. No caso brasileiro recente, por exemplo, tivemos como experiência a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior, a PITCE (2003-2007) e a Política de Desenvolvimento Produtivo, a PDP (2008-2010) durante os governos Lula I e Lula II; e o Plano Brasil Maior – PBM (2011-2014), durante o governo Dilma I[4]. Em termos de avaliação de políticas públicas, baseadas em metodologias de contra factuais, ainda há pouca evidência disponível e muito que ser feito em termos de exercícios empíricos[5]. Por outro lado, no que diz respeito a um modelo de estratégia de crescimento sustentado para a economia brasileira, os resultados podem ser considerados bastante conclusivos e desapontadores.
Em termos gerais, para economistas de tradição neoclássica, as Intervenções econômicas são justificáveis a partir da noção de falhas de mercado e da lógica analítica do custo-benefício, ou seja, quando os benefícios da intervenção - em situações (equilíbrio) Pareto inferiores - superam os custos incorridos pela distorção de preços e de incentivos, conduzindo assim a alocação para uma situação (equilíbrio) Pareto superior. Cabe destacar que tais distorções não beneficiam apenas o setor de manufatura em detrimento dos demais setores da economia, mas também o insumo capital em detrimento dos demais insumos de produção, que pode trazer algumas distorções distributivas[6]. Em suma, os benefícios das distorções em regimes políticos democráticos devem gerar resultados amplamente satisfatórios (imediatos, de médio e de longo prazo) para que sejam tolerados pela grande maioria da sociedade. Isso também implica que as externalidades positivas das intervenções sejam igualmente elevadas. Para atender tais requisitos, os benefícios da intervenção deveriam implicar em ganhos substanciais de produtividade, de crescimento do produto interno bruto (PIB) e da renda per capita.
A reação óbvia ao desapontamento causado pela falta de efetividade de políticas com maior grau de intervenção é a adoção de medidas liberalizantes, ou seja, medidas que tenham como objetivo eliminar as distorções e potenciais ineficiências causadas pelo modelo de intervenção. Parte destas ineficiências decorre da sobrevida alcançada por plantas ou empresas industriais, que não estariam em operação não fossem a proteção e os incentivos fiscais comumente providenciados nas políticas industriais. Pensando em termos de ecologia das firmas (nascimento e mortalidade das firmas), as políticas industriais poderiam trazer como efeito colateral a má funcionalidade do mecanismo de destruição criadora, considerado por Schumpeter como o motor das economias capitalistas. Resumindo, os recursos alocados em empresas “vivas por meio de aparelhos” poderiam estar sendo utilizados de modo mais eficiente em firmas com projetos mais “saudáveis e longevos”, mesmo que em outros setores da economia, que não o industrial.
As políticas liberalizantes têm um grande apelo por conta da simplicidade, clareza e elegância do mecanismo de alocação de recursos escassos por meio do sistema de preços, ou seja, por meio do mecanismo de mercados. Tal apelo é amplificado e potencializado quando tais políticas surgem como solução alternativa ao desapontamento causado pela falta de efetividade de políticas com maior grau de intervenção. A história brasileira recente também providencia evidências empíricas acerca da efetividade de agendas de políticas liberalizantes. A partir do início da década de 1990 a economia brasileira passou por uma série de reformas liberalizantes que se estendeu até o primeiro mandato do governo Lula, ou seja, primeira metade da década de 2000. Não restam dúvidas de que tais políticas endereçaram de forma bastante satisfatória várias das fragilidades da economia brasileira, principalmente no que diz respeito à construção de instituições que garantissem um melhor ambiente de negócios para investimentos privados. Contudo, no que diz respeito à viabilidade de um modelo de crescimento sustentado para a economia brasileira, os resultados também foram igualmente insatisfatórios[7], principalmente a partir da perspectiva de diferentes agentes econômicos ligados ao segmento industrial.
Pode-se argumentar que a insatisfação do empresariado industrial e de seus trabalhadores e sindicatos naquela ocasião teria sido reflexo de uma situação economicamente inexorável, a saber, a perda de participação (ou até mesmo a desindustrialização) deste segmento na produção doméstica. Em suma, por mais que as instituições econômicas pudessem operar de forma eficiente (como o que tem acontecido nas economias mais desenvolvidas), quaisquer políticas que tentassem inibir tal trajetória serviriam apenas como paliativos de curto e médio prazo. A confirmação empírica de tal argumento não é trivial, definitivamente. Contudo, assumiremos a princípio que o argumento seja factível e a eficiência do sistema tenderia a realocar os recursos de empreendimentos industriais “operando por meio de aparelhos” para projetos do setor de serviços mais “saudáveis e longevos”, por exemplo.
Tal realocação tende a causar grandes preocupações a policy makers e trabalhadores industriais, principalmente em países emergentes e em desenvolvimento. Isso ocorre pelo fato do setor de serviços em países em desenvolvimento ser caracterizado por baixa produtividade, baixa agregação de valor adicionado, contratos de trabalho precários, incluindo elevados índices de informalidade e falsas terceirizações[8]. Tais preocupações seriam legítimas até mesmo em países desenvolvidos, uma vez que os custos de mobilidade Inter setoriais são elevados até mesmo nestas localidades, onde os diferenciais de produtividade entre os setores de manufatura e de serviços não são tão acentuados. Por exemplo, Lee & Wolpin (2006) estimaram grandes custos de mobilidade do fator trabalho para a economia norte americana. Adicionalmente, mostraram que no período entre 1950 e 2000, o setor de serviços contribuiu de 57% para 75% do volume total de trabalho contratado na economia, mas a taxa de crescimento dos salários reais deste setor foi marginalmente superior a taxa de crescimento dos salários reais do setor de manufatura. A hipótese de que a distância tecnológica entre diferentes setores (ou firmas) tende a elevar os custos de mobilidade e reduzir a possibilidade de transferências Inter setoriais é corroborada por Magnani (2009) para o caso norte americano e por Taveira, Gonçalves & Freguglia (2014) para o caso brasileiro.
Outro ponto a ser aqui considerado é o fato de que à medida que a renda per capita de uma economia aumenta, esta se torna mais complexa, de forma que as pessoas e as empresas passam a demandar mais serviços intensivos em conhecimento, incluindo educação, saúde intermediação financeira, serviços profissionais, dentre outros[9]. Mas a taxa de crescimento da produtividade do trabalho nos serviços não aumenta tão rapidamente como naqueles setores que propiciaram o aumento inicial da renda per capita, tais como agricultura e indústria. Isso ocorre porque muitos serviços são menos padronizáveis e menos intensivos em capital[10], o que contribui de forma adicional para as preocupações de policy makers.
Como pode ser inferido dos parágrafos acima, o primeiro grande desafio da economia brasileira é providenciar uma agenda que elimine, ou ao menos mitigue, o que o presente trabalho denomina de disfunção darwiniana, ou seja, que nossa economia seja capaz de providenciar os incentivos adequados para o bom funcionamento do mecanismo de destruição criadora, eliminando assim ineficiências e propiciando ganhos de produtividade, principalmente no setor de manufatura, onde vários dos dispositivos acionados pela política industrial criaram distorções, mas não apresentaram, em contrapartida, os resultados desejados. Contudo, sabemos que tal processo de realocação de recursos tende a incorrer em elevados custos de mobilidade Inter setoriais, principalmente entre aqueles setores que apresentam grandes distâncias tecnológicas entre si. Portanto, o segundo grande desafio da economia brasileira é: (i) acionar os drivers da produtividade dos setores de manufatura e de serviços; e (ii) reduzir os diferenciais tecnológicos entre setores, assim como os respectivos custos de mobilidade, de modo que as preocupações de policy makers e trabalhadores industriais sejam, ao menos parcialmente, endereçados. O terceiro grande desafio da economia brasileira é viabilizar tal projeto em um ambiente de produtividade estagnada e grandes restrições fiscais e orçamentárias.
O principal driver do crescimento e dos ganhos de produtividade das economias é a tecnologia, que em termos de literatura econômica, corresponde ao famoso resíduo de Solow, ou produtividade total dos fatores (PTF). Contudo, faz-se necessário compreender qual é exatamente o fator chave da tecnologia que é capaz de providenciar tamanha transformação econômica. Em dois pequenos artigos de opinião para o sítio eletrônico Project-Syndicate, Ricardo Hausmann tenta elucidar tal ponto com exemplos bastante convincentes. O autor avança em sua exposição a partir da definição de tecnologia fornecida por Brian Arthur, em seu livro intitulado “The Nature of Technology: What It Is and How It Evolves”, onde a tecnologia é uma coleção de dispositivos e práticas de engenharia disponíveis em uma determinada cultura.
Hausmann argumenta que o ponto chave da tecnologia como driver do crescimento implicaria em algo além da disponibilidade de fatores, uma vez que dispositivos tecnológicos podem ser embarcados em containers e despachados para qualquer lugar do planeta, assim como fórmulas e desenhos técnicos podem ser facilmente disponíveis em sítios eletrônicos para downloads. Adicionalmente, Hausmann aponta que países emergentes, tais como Brasil, Colômbia, Tunísia, Turquia e Indonésia dispunham no ano de 2010 de um estoque maior de trabalhadores qualificados, maior grau de urbanização e menores taxas de fertilidade que países desenvolvidos como Reino Unido, Japão, França, Holanda e Itália dispunham no ano de 1960. Contudo, a renda per capita destas economias desenvolvidas no ano de 1960 era, a preços constantes, bem superiores àquelas apresentadas pelas economias emergentes para o ano de 2010.
O conjunto destes fatos estilizados sugere que a difusão tecnológica demanda algo mais do que importação de dispositivos tecnológicos e obtenção de manuais, fórmulas e desenhos técnicos: a difusão da tecnologia envolve transferência de know-how, que é um conhecimento tácito. Em suma, urbanização, escolaridade e acesso à internet seriam condições necessárias, mas não suficientes para garantir que países emergentes sejam capazes de absorver o conhecimento tácito necessário para que sejam mais produtivos e economicamente mais diversificados e complexos. Quando a absorção de know-how (tecnologia) por uma economia é difusa e pervasiva, atingindo diferentes agentes e segmentos econômicos, tal economia alcança um grau de autonomia que lhe proporciona explorar os ganhos provenientes do know-how coletivo, ou seja, diferentes combinações de know-how que viabilizam a criação de combinações cada vez maiores e mais complexas de novas tecnologias, implicando assim no desenvolvimento e produção de novos bens e serviços, de forma a ampliar a capilaridade produtiva daquela economia.
Verificamos nos parágrafos anteriores que: (i) eliminar distorções alocativas; (ii) providenciar incentivos adequados para a economia operar de forma satisfatória seu processo de seleção por meio de criação destruidora; (iii) acumular ativos tangíveis e intangíveis que propiciem maior absorção de tecnologia; e, principalmente, (iv) garantir um mecanismo eficiente de absorção de conhecimento tácito podem constituir o conjunto de requisitos básicos para um projeto de crescimento econômico sustentado. Contudo, para garantir que todos estes objetivos sejam alcançados de forma simultânea, faz-se necessária a construção de uma agenda de políticas públicas que apresentem supermodularidade, ou seja, a garantia que cada uma das políticas guarde complementaridade com as demais políticas da agenda[11].
Após um período de desapontamento com políticas envolvendo maior grau de intervenção e ativismo de Estado, a reação baseada em uma agenda “de sinal contrário”, com radicalização da prática de alocação de recursos por meio dos sistemas de preços e dos mercados, encontra grande apelo entre políticos, empresários, policy makers e vários outros segmentos da sociedade. Tal reação é completamente compreensível e, em até determinado ponto, de fato necessária. Contudo, como discutido nos parágrafos anteriores, o principal driver do crescimento da produtividade e das economias é a tecnologia, que é produzida, comercializada e difundida em um “terreno completamente minado” por falhas de mercado[12]. Aliás, as falhas de mercado podem ser identificadas em todos os processos inovativos, desde sua produção, passando pela apropriação dos benefícios da inovação, até alcançar sua difusão para o restante da sociedade. Por outro lado, os formuladores da agenda devem ter em mente que algumas falhas de mercado podem ser tratadas a partir de diferentes abordagens, algumas menos invasivas que outras, de modo que o ideal é que tais soluções não sejam apenas supermodulares com as demais políticas da agenda, mas que também providenciem uma sinalização que encontre o maior apoio possível entre os agentes econômico. Em suma, a agenda econômica deve ser supermodular, mas deve levar em conta questões relacionadas à eficácia da política de comunicação, tal como efeito de framing[13], por exemplo.
É sabido que a maioria dos governos aportam recursos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) para lidarem com o problema de apropriação do conhecimento, seus spillovers e sub otimização de investimentos em P&D[14]. Contudo, o mesmo problema da apropriação e dos spillovers podem ser internalizados por meio de IED (investimento externo direto) e por meio de arranjos como joint ventures de pesquisas e contratos associativos de P&D entre empresas, inclusive entre concorrentes. Como será visto em detalhes mais adiante, assegurando que tais cooperações no mercado de tecnologias e P&D (mercado upstream) não repercutam nos mercados de produtos ou serviços (mercados downstream), por meio de formação de cartéis ou incentivos ao paralelismo de preços (as principais autoridades antitruste já dispõem de recursos bem consolidados para lidarem com tais temas), tais arranjos são bastante satisfatórios (e amplamente utilizados em políticas de C&T em países da OCDE), pois lidam com o problema da sub otimização dos investimentos em P&D com uma fração menor de recursos públicos e subvenções.
Ao mesmo tempo em que a economia brasileira vivencia um período de grande fragilidade econômica e fiscal, por outro lado também dispomos de alguns graus de liberdade para que se possa dar início a uma trajetória de crescimento sustentado. Parte destes graus de liberdade decorre de algumas de nossas deficiências, enquanto que outros graus de liberdade decorrem de nossas virtudes. O fato de a economia brasileira gozar de grande proteção e de um conjunto não negligenciável de distorções e incentivos perversos faz com que ganhos de eficiência e produtividade possam ser alcançados com medidas de baixo impacto fiscal (algumas inclusive propiciando economias fiscais) e baixo custo político. Adicionalmente, ao contrário do que muitos possam acreditar, o nível de investimentos em P&D (público e provado), a infraestrutura tecnológica e o mercado para tecnologias brasileiro não é desprezível[15].
Um passo no sentido de obtermos maior abertura dos mercados brasileiros poderia endereçar de forma satisfatória alguns dos problemas de ineficiência alocativa e de incentivos perversos, assim como foi observado no início da década de 1990[16]. Contudo, não é possível descartar a hipótese de que a abertura econômica, como um fim em si mesmo, não seja capaz de endereçar todos os desafios da economia brasileira, principalmente no que diz respeito à obtenção de conhecimento tácito por meio de difusão tecnológica. A abertura econômica associada a uma estratégia de obtenção de tecnologias e conhecimento tácito pode ser bastante promissora, mas essa plataforma de obtenção de conhecimento tecnológico não é uma decorrência natural do processo de abertura. Tal plataforma deve ser construída, por meio de desenho de incentivos, uma vez que, como já mencionado anteriormente, a tecnologia é construída, comercializada e difundida em um “terreno minado” por falhas de mercado. Logo, a complementaridade entre as políticas comercial e tecnológica é menos trivial do que possa inicialmente parecer.
A abertura econômica é peça chave neste processo, pois quando avaliamos a literatura especializada sobre difusão de conhecimento Norte-Sul, verificamos que os mecanismos mais promissores são por meio das redes globais de produção e das cadeias globais de valor[17]. Tal argumento é corroborado nas seguintes palavras de Hausmann:
“This strategy requires a highly open trade policy, because it requires sending goods across borders many times. But this does not imply laissez-faire; on the contrary, it requires activist policies in many areas, such as education and training, infrastructure, R&D, business promotion, and the development of links to the global economy” (Hausmann, 2014).
Um pouco mais de um ano atrás a economia brasileira passava por maiores dificuldades, que incluíam maior retração econômica, inflação próxima de dois dígitos, taxas de desemprego elevadas e crescentes, além de um cenário de ampla deterioração das contas públicas. No âmbito da política, tramitava no Senado Federal o pedido de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, motivado em grande medida pela insatisfação manifestada por diferentes segmentos da sociedade. Conforme pesquisas divulgadas por meios de comunicação, o perfil médio do cidadão que tinha ido às manifestações de rua pró-impeachment é traçado como pertencente à classe média, composta em geral por profissionais liberais, pequenos e médios empresários, empreendedores, trabalhadores qualificados ocupados na iniciativa privada e na administração pública, etc.[18]. Tal informação pode ser de alguma valia para melhor compreensão das causas do esgotamento do modelo econômico que perdurou no Brasil desde a primeira metade da década de 2000.
Tal modelo econômico privilegiou por um lado os segmentos mais carentes da sociedade, propiciando de fato uma grande transformação social no país[19]. Por outro lado, buscou alavancar a economia brasileira por meio de vários instrumentos de políticas setoriais, incluindo incentivos a constituição de “campeões nacionais” [20]. Cabe destacar que subsidiar grandes grupos econômicos não é, evidentemente, um objetivo em si mesmo. Em termos gerais, a lógica por trás desta política industrial é que os benefícios alcançados pelos “campeões nacionais” não se esgotem em tais corporações, mas que sejam estendidos ao resto da economia, por meio de efeitos de transbordamento[21].
Imaginemos agora a configuração de um modelo econômico que: (i) privilegia os segmentos mais carentes da sociedade por meio de um rol de políticas sociais[22]; e (ii) forneça um conjunto de incentivos para grandes corporações por meio de um rol de benefícios, isenções e exonerações fiscais[23]. O financiamento de tal modelo envolve um custo elevado para o conjunto da sociedade, que no caso brasileiro demandou carga tributária e endividamento crescentes. A tolerância do restante da sociedade (não favorecida diretamente com as políticas públicas sociais e industriais) com tais políticas depende da capacidade do modelo em gerar crescimento econômico, oportunidades e externalidades positivas. Na ausência de tais transbordamentos, o modelo perde completamente sua funcionalidade, gerando assim insatisfação e fadiga. Sob a ótica de uma parcela significativa da sociedade, o Estado representaria apenas um coletor indesejável de tributos.
Uma questão óbvia que intriga alguns acadêmicos, policy makers, políticos e imprensa especializada é a razão pela qual o modelo não gerou as externalidades positivas inicialmente imaginadas. O debate tende a ficar circunscrito em torno de duas respostas hipotéticas: uma primeira resposta é aquela sugerida por Graham (1994), ou seja, o debate em torno da política industrial é, independentemente de qualquer coisa, uma grande perda de tempo. Uma segunda resposta é que a política não foi desenhada da forma adequada[24]. Uma segunda pergunta tende a ser amplamente negligenciada nestes tipos de discussões e debates: dispomos das garantias de que as externalidades eventualmente geradas serão de fato internalizadas? Ou, alternativamente: dispomos das garantias de que o conhecimento tecnológico criado será de fato difundido e disseminado na economia?
Uma hipótese (bastante otimista) comumente assumida em políticas de incentivo à produção de conhecimento tecnológico é a de que, uma vez estimulada com sucesso sua produção, sua difusão ocorrerá sem grandes obstáculos. Os parágrafos anteriores tiveram como objetivo mostrar que não há nada de trivial em difundir tecnologias. Logo, torna-se muito difícil identificar por quais motivos tais políticas não alcançam o êxito desejado. Aqui cabem outras questões: O conhecimento foi devidamente criado, mas as limitações em sua difusão comprometeram seu sucesso? A estrutura para difundir tecnologias era adequada, mas a política de incentivos para sua produção era falha? Ambas as estruturas – produção e difusão – são deficientes?
Em termos de política tecnológica e de crescimento econômico de longo prazo, talvez tenhamos que, em um primeiro momento, avaliar se de fato a economia brasileira desfruta de uma estrutura capaz de decodificar e absorver conhecimento tecnológico (principalmente conhecimento tácito, como know-how), independentemente de como e onde tal conhecimento tecnológico tenha sido produzido. Corremos o risco de estar aportando recursos em políticas de inovação (produção de conhecimento) cujos benefícios possam estar limitados a um grupo muito restrito de empresas, assim como podemos incorrer no risco de desfrutarmos de maior inserção internacional, sem que tenhamos uma estratégia de como explorarmos todos os benefícios que tal inserção possa proporcionar. Como recurso de analogia, tal ineficiência equivaleria a despender uma grande quantidade de recursos para produzir energia em uma estação geradora, sem que detivéssemos qualquer conhecimento tecnológico de como transformar a tensão, de modo a transportá-la por meio de uma rede de linhas de transmissão e subestações de consumo. Ainda seguindo tal analogia, talvez precisemos dedicar mais recursos para desenvolvermos conhecimento tecnológico acerca de transformadores, linhas de transmissão e estações/subestações de consumo (capacidade de assimilar conhecimento novo), de modo que possamos buscar energia de diferentes estações geradoras (de diferentes mercados produtores de novas tecnologias).
Uma segunda avaliação a ser feita é qual o real significado de um processo de desindustrialização. Ao longo do presente artigo será verificado que parte da estratégia das economias mais bem sucedidas do planeta passou por um processo de perda de participação da indústria, ao mesmo tempo em que foi ampliada a capacidade de geração de valor adicionado destas economias. Tal movimento também se reflete no aumento da participação de serviços de alto valor adicionado na economia. Em termos de estratégia empresarial, as corporações destas economias obtiveram êxito em seus movimentos de “going downstream”, ou seja, fornecer soluções integradas de consumo, o que significa não limitar-se a distribuir produtos manufaturados, mas disponibilizar soluções customizadas (incluindo serviços especializados de venda, logística e pós-venda) a clientes dispostos a remunerar tais tipos de pacotes de soluções. Da mesma maneira que empresas de serviços de alta tecnologia hoje buscam fornecer soluções por meio de movimentos do tipo “including upstream”: um exemplo é a Google, que hoje está envolvida em projetos de manufatura que inclui produção de robôs, tablets, veículos, etc. No fundo, o ponto central é termos uma melhor compreensão da simbiose entre estes dois segmentos.
Um estudo empírico que ajuda a elucidar parte deste movimento de simbiose é fornecido por Bernard & outros (2016), em um artigo intitulado “Rethinking Deindustrialization”. Usando um painel de microdados do tipo empregador-empregados (linked employer-employee) para estabelecimentos empresariais da Dinamarca, os autores mostram que uma fração não negligenciável da perda do emprego industrial naquele país, acompanhado de um aumento do emprego do setor de serviços, trata-se na realidade de um movimento de empresas migrando do setor industrial para o setor de serviços. Os autores identificam ainda que uma parte destas firmas industriais migrantes tende a intensificar suas atividades de P&D e expandir suas capacidades técnicas e tecnológicas, obtendo assim ganhos de produtividade e de competitividade.
Particularidades do Brasil nos tornam especialmente dependentes do aumento da produtividade e da competitividade. Isto porque, primeiro, o Brasil enfrenta uma das mais rápidas transformações demográficas jamais registradas, com forte queda da taxa de fecundidade combinada com rápido aumento da expectativa de vida da população. As consequências mais visíveis dessa combinação são pressão para cima dos custos laborais e para baixo da competitividade internacional da economia.
Uma segunda razão da nossa dependência da produtividade e da competitividade é a modesta taxa de investimentos do Brasil, que é muito baixa para padrões internacionais em geral e para padrões de países emergentes em particular. Enquanto a nossa taxa de investimentos está estagnada em torno de 15% a 18% do PIB, as taxas chinesa e indiana são de 50% e 36%, respectivamente.
E, terceiro, diferentemente de Coreia, China e outros países que iniciaram mais cedo as suas reformas em favor da indústria e do comércio, já não se pode mais lançar mão de várias políticas e instrumentos de promoção industrial por colidirem com a nova governança econômica internacional. Além disso, as novas tecnologias de produção e gestão da produção e a rápida mudança no padrão de consumo indicam que escala e custos estão deixando de serem os principais determinantes da competitividade e dos investimentos. A localização dos investimentos no âmbito global está sendo definida cada vez mais por produtividade sistêmica e por características específicas dos mercados, e cada vez menos por arbitragem de custos de produção, como salários, subsídios, incentivos fiscais e outros fatores convencionais que tanto marcam a história do crescimento econômico brasileiro.
Em suma, a construção de um modelo que proporcione ganhos consideráveis de produtividade é condição sine qua non para que a economia brasileira possa: (i) reverter seu histórico de alta volatilidade de crescimento da renda per capita[25]; e (ii) produzir a riqueza e os recursos orçamentários necessários para lidarmos com os desafios que o risco demográfico[26] (envelhecimento rápido da população) impõe sobre o equilíbrio intertemporal de nossas finanças públicas, principalmente no que diz respeito à viabilidade dos nossos sistemas de saúde, previdência e de seguridade social, independentemente de reformas que possam ser implementadas no futuro.
[1] Alguns destes argumentos são abordados em Krugman (1983), Rodrik (2004) e Stiglitz, Ling & Monga (2013).
[2] Uma ampla discussão sobre política industrial na Europa é providenciada em coletânea de artigos organizada por Cowling (1999). Para o caso japonês ver Kagami (1995), enquanto que para o caso norte americano ver Grahan (1994).
[3] Um ponto central da literatura especializada é identificar os motivos pelos quais a política industrial parece ter apresentado melhores resultados em países da Ásia do que em países da América Latina e África. Etzkowitz e Brisolla (1999) sugerem que tais diferenças de desempenho repousam sobre o fato de que os países asiáticos adotaram uma estratégia baseada no “protecionismo competitivo”, enquanto que os países latino americanos optaram pela estratégia de “protecionismo autárquico”. Já Robinson (2009) endereça tal questão em termos de uma discussão sobre economia política e sobre as diferenças em termos de arranjos políticos e institucionais locais.
[4] O leitor interessado em maiores detalhes sobre o histórico recente da política industrial brasileira, encontrará no documento “Dez Anos de Política Industrial: Balanço e Perspectivas 2004-2014”, publicado pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI), um levantamento bastante detalhado acerca do tema.
[5] Um exemplo é o impacto exercido pelos empréstimos do BNDES sobre o desempenho das firmas brasileiras. DeNegri & outros (2011) sugerem que as linhas de crédito fornecidas pelo banco: “has a significant and robust positive impact on employment growth and exports, while we do not find evidence of a significant effect on our measure of productivity”. Por outro lado, Lazzarini & outros (2015) sugerem que: “BNDES subsidizes firms that could fund their projects with other sources of capital”.
[6] Uma melhora de Pareto implica que ao menos um dos agentes econômicos será conduzido a uma situação melhor que a anterior, sem que nenhum dos demais agentes incorra em perdas. Na realidade, em uma situação de melhora de Pareto todos os agentes podem incorrer em ganhos, mas alterações distributivas poderão surgir em casos onde uns agentes econômicos percebam ganhos desproporcionalmente maiores que seus pares.
[7] O leitor interessado na discussão acerca dos pró-e-contras decorrentes do rol de políticas liberalizantes implementadas no Brasil a partir do início da década de 1990, conhecido como debate Pós Consenso de Washington, encontrará nos artigos de Stiglitz (1998) e Williamson (2002) uma boa síntese dos diferentes argumentos.
[8] A hipótese de dualidade dos mercados de trabalho tem fornecido elementos econômicos que justificam algumas das preocupações de acadêmicos e policy makers que advogam o uso de políticas industriais. Tais hipóteses de dualidade não são apenas endereçadas por economistas de tradição radical, tais como Reich, Gordon & Edwards (1973), mas também a partir de trabalhos de economistas de tradição neoclássica, tais como Bulow & Summers (1986).
[9] Ver Eichengreen e Gupta (2013).
[10] Ver Baumol (1967).
[11] A teoria da otimização supermodular e a teoria dos jogos fornecem uma estrutura analítica para sistemas caracterizados por complementaridades. Milgrom & Roberts (1994, 1995) aplicam tais elementos teóricos no estudo da manufatura moderna. Uma abordagem teórica mais sofisticada a respeito destes temas é apresentada em Milgrom & Roberts (1990) e Topkis (1998).
[12] Arora, Fosfuri e Gambardella (2004) no livro “Markets for Technology: The Economics of Innovation and Corporate Strategy” fornecem uma descrição bem detalhada do mercado para tecnologias, bem como uma discussão das várias falhas de mercado alí observadas.
[13] O leitor interessado em discussão acerca do efeito de framing e suas consequência sobre as decisões dos agentes econômicos, ver Kahneman & Tversky (1979) e Levin, Schneider, & Gaeth (1998).
[14] Sveikauskas (2007) e Bloom & Outros (2013) fornecem evidências de que a taxa de retorno social do P&D tende a ser duas a três vezes maiores que a taxa de retorno privado. Em suma, os benefícios do investimento em P&D proporcionam ganhos de eficiência e de produtividade não apenas ao investidor, mas também a outros agentes da economia, podendo inclusive beneficiar seus concorrentes. A ocorrência de tais externalidades positivas traria como implicação o fato de que as forças de mercado conduziriam os investimentos em P&D para uma situação de subotimalidade, ou seja, um nível de investimento em P&D inferior ao socialmente desejável. A necessidade de desenho de políticas públicas que enderecem tal falha de mercado é amplamente discutida em documento recente desenvolvimento pelo FMI (2016).
[15] Conforme dados do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), nos anos de 2008 e 2009 o dispêndio em P&D (público mais privado) brasileiro era igual a 1,2 % do produto, ou seja, a metade do percentual médio dos países da OCDE. Contudo, similar ao de outros países emergentes, como China e Rússia, com 1,5 % e 1,2 %, respectivamente e bem superior ao de outras economias da América Latina, tais como Argentina e México, com 0,5 % e 0,4 %, respectivamente.
[16] Tal evidência é corroborada para o caso brasileiro em estudo empírico desenvolvido por Ferreira & Rossi (2003) e corroborada para um conjunto maior de economias, em estudo desenvolvido por Edwards (1998).
[17] Acerca do tema cadeias globais de valor (CBV), ver maiores detalhes em Gereffi, Humphrey & Sturgeon (2005). Morrison, Pietrobelli & Rabellotti (2006) sugerem uma estrutura analítica para desenvolvimento endógeno de capacidades tecnológicas para inovação em firmas de países em desenvolvimento por meio do fluxo de conhecimento partilhado intra e entre diferentes CBVs. Sobre o papel das Greenings CBVs na inovação e difusão internacional de tecnologias, ver Glachant (2013). Sobre o tema formação de capacidades locais para inovação e difusão de conhecimento por meio de Redes Globais de Produção, ver Ernst & Kim (2002).
[18] Trata-se de um perfil baseado em médias amostrais, logo não significa que todos os manifestantes ou simpatizantes do processo de impeachment tenham este mesmo perfil.
[19] Uma síntese dos principais resultados é apresentada no documento intitulado “Sobre o processo de desenvolvimento inclusivo no Brasil da última década”, publicado em maio de 2014, de autoria de Ricardo Paes de Barros e Diana Coutinho.
[20] Uma discussão acerca do tema é providenciar por documento da OCDE (2009), intitulado “Competition Policy, Industrial Policy and National Champions”. Uma coletânea de artigos a respeito do tema é fornecida no livro “Industrial Policy for National Champions”, editado por Falck, Gollier & Woessman (2011). Para o caso brasileiro podemos destacar os trabalhos de Almeida, Oliveira & Schneider (2014).
[21] Os exemplos de políticas de “campeões nacionais” bem-sucedidas, comumente reportados na literatura especializada, são os casos da brasileira Embraer e da sul-coreana Hyundai (OCDE, 2009).
[22] Alguns exemplos são o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que apresentaram custos estimados para o ano de 2015 iguais a R$ 27 bilhões e de R$ 42 bilhões, respectivamente.
[23] O Tribunal de Contas da União (TCU) estimou que o montante de incentivos fiscais, renúncias fiscais e desonerações tributárias ao setor produtivo no ano de 2013 alcançou a cifra de R$ 203,7 bilhões.
[24] A avaliação da eficiência da política industrial brasileira durante o Governo Dilma I de fato ficou parcialmente prejudicada, uma vez que, vários dos instrumentos propostos na literatura especializada foram utilizados com fins macroeconômicos anticíclicos, ou seja, políticas de curto prazo, sendo que as políticas industriais são constituídas para alterar a trajetória de crescimento macroeconômico de longo prazo das economias.
[25] O crescimento brasileiro não é persistente, ou seja, não é sustentado – períodos de fortes elevações são normalmente seguidos por períodos de fortes colapsos, o que ajuda a explicar a baixa taxa média de crescimento de longo prazo. O problema é que a alta volatilidade do crescimento não é neutra: ela cria forte sensação de risco, encurta o horizonte de planejamento e afeta negativamente as decisões de investimentos, de consumo e de poupança. Além disso, avanços econômicos e sociais observados durante períodos de aceleração do crescimento são desproporcionalmente perdidos durante períodos de colapso, o que ajuda a explicar os nossos lentos avanços em áreas como produtividade, investimentos e indicadores de pobreza.
[26] Segundo Tafner (2012), o risco demográfico “é consenso que o mundo experimentou, ao longo do século XX, especialmente a partir da segunda metade da década de 1940, uma transição demográfica que resultou em um progressivo envelhecimento da população” (Tafner 2012, p. 147). Um dos problemas identificados pelo autor é que no caso brasileiro o risco demográfico tem sido “acompanhado de baixo desempenho macroeconômico, expressivo aumento de direitos sociais e forte ajustamento produtivo na década de 1990”.
Gerente de Negócios da Direção Geral-Amb. de Microfinança Urbana no Banco do Nordeste
7 aExcelente artigo!