A nova Lei da Concorrência, o novo Guia H e a análise de atos de concentração sem delimitação de mercado relevante.

1.    Introdução

No presente artigo discutirei os motivos pelos quais considero que a Nova Lei da Concorrência trouxe, como consequência quase que imediata, a necessidade da publicação de um novo guia de análise de atos de concentração horizontal (Novo Guia H), de modo a incorporar novos protocolos de análise para atos de concentração (AC’s), alternativos ou complementares aos testes de monopolista hipotético () para delimitação de mercado relevante antitruste (dimensões produto e geográfico)[1]. O  até então era o único método analítico formalmente especificado na Portaria Conjunta SEAE/SDE n. 50 de 01/08/2001 (Portaria SEAE/SDE), principal Guideline do antigo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDE).

Será visto que as discussões acerca da produção de um Novo Guia H já estavam presentes no SBDC (ao menos de forma documentada) desde 2009, ou seja, antes mesmo da promulgação da Lei n. 12.529/2011. Contudo, apenas os desafios operacionais impostos pela análise prévia de atos de concentração tornaram mais evidentes algumas das limitações em se ter o [2] como único protocolo de análise para AC’s.

Em alguns casos complexos, onde a delimitação do mercado relevante antitruste não é trivial, o consumo intensivo de recursos humanos, materiais e longos períodos de tempo para produção de evidências são muitas vezes requeridos. Tais procedimentos costumam consumir uma quantidade muito longa do tempo regimental disponível ao CADE (Superintendência Geral e Tribunal). Desta forma, a fase de diagnóstico de potenciais efeitos anticoncorrenciais (unilaterais e coordenados) das operações pode se estender além do prazo razoável, comprometendo assim o tempo a ser alocado nas outras fases da tramitação dos casos, tais como análise de eficiências, dimensionamento e negociação de eventuais remédios antitruste, etc.

Para lidar com as situações onde os ’s eram inconclusivos (ou gerassem grandes controvérsias) em torno da forma mais adequada de delimitação do mercado relevante, optamos pela introdução de protocolos alternativos de análise concorrencial de AC’s. Nesta perspectiva, o Novo Guia H deveria trazer para o conhecimento do público qual seria o rol de métodos de análise alternativos (ou complementares) para as situações nas quais o  falhasse como protocolo de diagnóstico.     

Isso não significa dizer que a Portaria SEAE/SDE teria se tornado um documento obsoleto, mesmo porque o  permanece sendo o protocolo de default para o CADE e para a maioria das autoridades concorrenciais ao redor do mundo. Para a grande maioria dos AC’s submetidos ao CADE, onde a delimitação do mercado relevante antitruste é trivial, a Portaria SEAE/SDE continua sendo um excelente documento de referência, mesmo após a publicação do Novo Guia H em 2016.

Também não é correto afirmar que a Portaria SEAE/SDE seja um documento inadequado para lidar com casos de grande complexidade, mesmo porque este documento se mostrou bastante eficiente para endereçar vários destes casos ao longo dos anos[3]. O ponto nodal da discussão é a obtenção de uma delimitação robusta do mercado relevante de forma tempestiva. Em algumas situações o custo de oportunidade (em termos de tempo adicional do processo de instrução) para concluir o diagnóstico por meio do  é muito elevado. Nestes casos, abandonar a análise concorrencial baseada na noção de mercado relevante antitruste pode ser a melhor alternativa.

Embora os guias não possuam caráter vinculante, o fato é que ao longo do tempo alguns protocolos e testes alternativos de análise concorrencial foram introduzidos pelo CADE em alguns AC’s complexos. Embora outras autoridades já tivessem incorporado tais abordagens e técnicas em suas versões atualizadas de Guidelines, o fato é que na ausência de um Novo Guia H, o público não dispunha de completa previsibilidade do rol de métodos que poderiam ser aplicados pelo CADE na análise de AC’s[4]. A publicação em 2016 do Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, o Novo Guia H, veio tentar endereçar o problema de assimetria informacional entre a autoridade antitruste e o público em geral.

O presente artigo foi elaborado tendo em mente atender um público leitor constituído majoritariamente por alunos dos cursos de graduação em Economia e Direito. Neste sentido, os conteúdos são aqui tratados em nível básico e de forma superficial e, na medida do possível, com uma linguagem pouco formal. Não obstante, o leitor interessado em material bibliográfico complementar em níveis intermediário e avançado poderá encontrar ao longo do texto algumas referências importantes. O artigo é dividido em cinco seções, incluindo a presente introdução. A segunda seção é dedicada a tratar das situações de falhas e atrasos na fase do diagnóstico, ou seja, quando o  é inconclusivo e suas implicações para o bom andamento da análise. A terceira seção discute brevemente o principal método alternativo ao  para análise concorrencial de AC’s. A quarta seção discute brevemente o histórico do processo de produção do Novo Guia H desde 2009 e os motivos de ordem operacional que o levaram a ser publicado somente em 2016. A quinta e última seção é dedicada às conclusões e considerações finais.

2.    O Problema da Tempestividade do Diagnóstico

Defino como um caso não trivial aquele em que a autoridade da concorrência e as partes não alcançam, de forma tempestiva, um consenso mínimo em torno da delimitação mais adequada para o mercado relevante antitruste. Isso inclui os casos onde não há consenso nem mesmo entre as diferentes instâncias da Autoridade (Superintendência Geral e Tribunal) ou entre os diferentes Conselheiros do Tribunal. O volume de esforço necessário para tentar reduzir a dissonância[5] por meio da produção de estudos complementares de  pode ser considerável, consumir muito tempo da tramitação da instrução, com o risco adicional de continuarem a apresentar resultados não conclusivos.

Aqui destaco alguns problemas. O primeiro problema é que enquanto o mercado relevante de um AC não é “formalmente” delimitado pela Autoridade, o diagnóstico acerca dos efeitos anticoncorrenciais permanece inconclusivo, prejudicando assim a posterior fase de negociação dos remédios e sua “posologia”. Um segundo problema é que quanto maior o tempo consumido para delimitação do mercado relevante (fase do diagnóstico), menor o tempo disponível para a fase do tratamento. Corre-se assim o risco de se alocar muito tempo na busca do diagnóstico, submetendo a operação a um tratamento inadequado, inclusive com situações de insuficiência ou “intoxicação” de remédios, dado o tempo exíguo dedicado a esta fase da tramitação. Um terceiro problema diz respeito ao custo de oportunidade para a sociedade: o tempo no qual uma operação benéfica aos consumidores tramita no CADE sem aprovação equivale ao tempo no qual consumidores são privados de seus benefícios.  

Os casos envolvendo AC’s não triviais (TMH inconclusivo) sempre foram objeto de pesquisa do Departamento de Estudos Econômicos do CADE (DEE/CADE), uma vez que este fornece assessoria econômica para a Superintendência Geral, para o Tribunal e para a Procuradoria Geral do CADE. No âmbito da Superintendência Geral, o foco principal tem sido a instrução dos casos de AC, ou seja, na busca por um diagnóstico sempre mais acurado das operações. No âmbito do Tribunal, o foco principal tem sido a análise das eficiências e os potenciais impactos dos remédios antitruste sugeridos nas negociações em andamento. Já no âmbito da Procuradoria, o foco é obviamente a assessoria econômica em litígios, principalmente no suporte em casos que envolvam a produção de laudos econômicos periciais.

Em termos gerais, o DEE/CADE não trabalha em AC’s não complexos. Estes AC’s costumam apresentar níveis de concentração tão pequenos – independentemente de como se delimite o mercado relevante antitruste – que são geralmente aprovados de forma sumária pela Superintendência Geral. Já os AC’s complexos são submetidos à segunda instância de análise, ou seja, ao Tribunal do CADE. Ao menos da minha perspectiva, a trajetória temporal ótima para um AC complexo envolveria uma situação de balanço temporal para cada uma das diferentes grandes fases do processo (diagnóstico e tratamento). Em muitos destes casos complexos a negociação adequada de remédios pode consumir tanto tempo quanto aquele necessário para se chegar a um diagnóstico do caso (delimitação de mercado relevante antitruste, rivalidade, barreiras à entrada, etc.).

Um ponto a se destacar é que numa operação de fusão/aquisição há sempre um cálculo de precificação dos ativos comercializados entre as partes. Imagino que nestes exercícios também se deva levar em consideração alguns cenários de estresse com desinvestimentos, decorrentes da eventual imposição de remédio antitruste pela Autoridade que vir a analisar o caso. Em algumas circunstâncias a Autoridade pode sugerir algumas possibilidades de desinvestimentos até então não vislumbradas ex ante pelas partes, que demandem cálculos pormenorizados de Valuation e do custo de oportunidade de se manter ou não a operação com tais níveis de desinvestimentos. Adicionalmente, a própria Autoridade deve inferir qual o impacto de diferentes tipos de propostas de desinvestimentos sobre a estimativa de eficiências da operação. Todos estes procedimentos demandam tempo para serem analisados de forma apropriada.

Em termos ideais, uma decisão administrativa envolvendo um AC não deveria ser objeto de judicialização, afinal um prazo de 240 dias, prorrogáveis por mais 90 dias, parecem ser suficientes para que todas as partes envolvidas alcancem uma compreensão mínima da complexidade do caso. Em termos ideais, ao final de 60 dias tramitando no âmbito do Tribunal, um AC complexo já deveria ter esgotado toda a fase de diagnóstico. Nesta ocasião o Tribunal já dispõe de (i) um Parecer da Superintendência Geral; (ii) uma manifestação das partes apresentando suas contrarrazões em relação ao Parecer da Superintendência Geral; além de (iii) alguma instrução adicional conduzida pelo Conselheiro Relator ao considerar pontos pertinentes trazidos nas contrarrazões. Neste ponto, o dimensionamento adequado das eficiências da operação já deveria também estar concluído. Posto isso, todas as partes já saberiam, ao menos teoricamente, sobre quais parâmetros se dariam as negociações envolvendo remédios e suas dosagens.

Portanto, quando mencionei na introdução do trabalho que o ponto nodal de toda a discussão é a obtenção de uma delimitação robusta do mercado relevante de forma tempestiva, eu tinha em mente a trajetória temporal (que pessoalmente considero) ótima reportada nos parágrafos anteriores. É sob tal perspectiva temporal que eu buscava precificar o custo de oportunidade em seguir buscando ou não um diagnóstico por meio do .

       

3.    Kit Diagnóstico de Segunda Geração

Como já mencionado nas seções anteriores, os casos que considero não triviais são aqueles onde não é possível obter um consenso mínimo entre as partes de como se delimitar um mercado relevante. Tais situações são incomuns, mas quando ocorrem costumam consumir uma quantidade muito grande de recursos para análise. Em termos gerais, as Autoridades não encontram grandes dificuldades em delimitar os mercados relevantes[6], mas há sempre alguns casos excepcionais. Em algumas situações tais casos não triviais costumam deflagrar “guerras de pareceres”, ou seja, cada uma das partes despende grande esforço na produção de evidências que corrobore sua hipótese de mercado relevante em detrimento das demais hipóteses trazidas ao caso.

Embora a expressão “guerra de pareceres” possa sugerir uma conotação pejorativa, o fato é que tal exercício pode ser bastante produtivo e elucidativo, inclusive para as demais fases de tramitação dos casos. O problema é que os prazos impostos pela legislação para a apreciação de AC’s abrem uma janela de tempo muito estreita para longas discussões acerca de exercícios empíricos. Em suma, em algum momento a Autoridade terá de apresentar seu diagnóstico final sobre os efeitos colaterais da operação e abrir negociações em torno dos remédios disponíveis para endereçar o problema (ou mesmo reprovar a operação como um todo). Nessa fase, quanto maior for o consenso em torno do diagnóstico, menores serão os custos de transação incorridos nas negociações e os eventuais custos de oportunidade incorridos pelos consumidores beneficiados pela operação, além da possibilidade de uma discussão mais aprofundada em termos de remédios a serem empregados para a operação.

Sob a minha perspectiva enquanto conduzia o DEE/CADE, o objetivo fundamental do trabalho técnico na instrução destes tipos de casos não era gerar consensos, mas produzir uma quantidade satisfatória de exercícios empíricos, obtidos por meio de métodos consagrados na literatura especializada, que possibilitassem a todos retirarem dali algum diagnóstico. Em algumas situações, o conjunto de resultados não era robusto o suficiente para gerar qualquer grau de concordância em torno do diagnóstico. Em algumas situações o conjunto de exercícios era bastante robusto e algum grau de consenso era criado em torno de um diagnóstico específico.

Um ponto central em toda essa discussão é que nem sempre a delimitação de mercado relevante, baseada no , apresenta resultados robustos para a delimitação do mercado relevante. Diferentes tipos de  podem conduzir a diferentes resultados, a depender principalmente das bases de dados e dos diferentes métodos estatísticos empregados. Por exemplo, pode ocorrer que um  baseado em séries temporais de preços com métodos de cointegração alcance uma delimitação de mercado relevante diferente daquela obtida por um  baseado nos testes de elasticidade ou perda crítica[7].  

Uma forma de lidar com tais situações complexas é propor outros mecanismos de diagnósticos, alternativos aos testes de . Nestes casos a noção de delimitação de mercado relevante é abandonada, por conta da inconclusividade dos resultados apresentados. Cabendo lembrar que tal inconclusividade de resultados é, por muitas vezes, também verificada durante a instrução qualitativa dos processos, ou seja, diferentes agentes de mercado (em diferentes elos da cadeia produtiva) fornecem informações que não convergem para uma delimitação trivial do mercado relevante. Nestes casos o ideal é que a Autoridade disponha de um “kit diagnóstico de segunda geração”.

Durante o período de tempo que servi como economista-chefe do CADE, o “kit diagnóstico de segunda geração” comumente utilizado pelo DEE/CADE em suas notas técnicas era o método Upward Pricing Pressure () ou o Gross Upward Pricing Pressure Index ()[8], que são da mesma família de testes.

Em termos matemáticos, podemos expressar o  a partir da seguinte equação:




Onde é o preço de venda do bem do concorrente 2,  e  são os respectivos custos marginais de produção dos concorrentes 1 e 2,  são os ganhos de eficiência (redução do custo marginal ) decorrentes da fusão entre os concorrentes 1 e 2 e  é o diversion ratio, que mede qual a percentagem da demanda do produto do concorrente 1 será transferido para o produto do concorrente 2, como decorrência de um aumento do preço do produto do competidor 1. O diversion ratio é obtido da seguinte equação:




Onde  é a elasticidade cruzada da demanda entre os produtos dos competidores 1 e 2,  é a elasticidade preço da demanda do produto do competidor 1, já  e são as quantidades comercializadas dos produtos dos competidores 1 e 2, respectivamente.

Nestes tipos de exercícios, quanto maior o valor do , maior será a pressão de preços decorrente de uma fusão entre os concorrentes 1 e 2. Os parâmetros mais importantes destes testes são o diversion ratio e as eficiências. Quanto maior for primeiro termo do lado direito da equação 1, maior será a pressão de preços, o que sugere que a pressão de preços será maior para maiores valores de diversion ratio. Já, quanto maior for o segundo termo do lado direito da equação 1, menor será a pressão de preços, uma vez que o grau de eficiências da operação (redução do custo marginal) seria elevado.

Em termos práticos, uma estimativa de valor para  negativo ou nulo sugere que a operação deva ser aprovada sem qualquer tipo de restrição, uma vez que os benefícios da operação (eficiências) superam seus custos (efeitos anticoncorrenciais). Já um valor positivo de  sugere que a operação poderá trazer pressões de preços não desprezíveis, assim como aquelas operações cuja delimitação de mercado relevante implicam em elevado nível de concentração de mercado ( elevado).

Neste ponto o leitor deverá ter percebido que o teste  não recorre a nenhuma medida de concentração de mercado ( ou , por exemplo) para fazer inferência acerca da potencialidade anticoncorrencial de uma fusão ou aquisição, uma vez que os parâmetros chaves nestes tipos de exercícios são as elasticidades preço e cruzada. Uma limitação nestes tipos de exercícios é a necessidade de estimar as elasticidades por meio de métodos econométricos não triviais. Em suma, os custos envolvidos para a produção de tais exercícios são elevados e nem sempre os resultados obtidos são robustos e conclusivos. Portanto, devemos recorrer a tais exercícios em situações limites e o TMH continua a ser o método de default para análises de AC’s nas principais jurisdições do mundo. 

      4.    Protocolo e Segurança Jurídica

Estimativas de  e  eram produzidas como testes auxiliares e complementares àqueles que já estavam à disposição do Superintendente ou dos Conselheiros do CADE. A recomendação do DEE/CADE sempre foi que tais testes fossem analisados em conjunto com todos os demais tipos de diagnósticos, sejam estes quantitativos ou qualitativos. Dando continuidade a analogia usada até o presente momento, o objetivo sempre foi disponibilizar uma espécie de “hemograma completo” da operação para o diagnóstico das Autoridades da Superintendência Geral e do Tribunal.

Por um lado, a introdução deste novo “protocolo de diagnóstico” gerou, na maioria dos casos, maior conforto para quem diagnosticava. Afinal, não há nenhum prejuízo em se ter à disposição um kit diagnóstico adicional. Por outro lado, causou bastante desconforto para quem se submetia ao exame diagnóstico (as partes interessadas), mesmo porque, como já mencionado, a obtenção de estimativas de  e  envolve um procedimento bastante invasivo (bem mais invasivo que calcular ’s). O leitor pode imaginar a aflição e a apreensão dos representantes das empresas e de seus respectivos advogados ao receberem ofícios do CADE, requerendo séries históricas bem longas e detalhadas, com informações de preços, quantidades comercializadas, informações detalhadas de custos de produção, etc.

A submissão das partes interessadas a um novo protocolo de diagnóstico, com exames bastante invasivos, sem um Guideline de referência na qual seu advogado e/ou sua assessoria econômica pudesse orientar seus clientes foi, sem dúvida, a principal motivação para a publicação do Novo Guia H. O leitor deve perceber que usei a palavra publicação, não a palavra produção ou elaboração. Esse ponto é interessante e merece um breve relato, mesmo que para fins de registro meramente histórico.

Segundo documentos pesquisados pelo DEE/CADE entre 2014-2016, as primeiras discussões e versões de um Novo Guia H surgiram aproximadamente no mesmo momento em que se discutiam os novos Guidelines dos EUA (Joint Federal Trade Commission & U.S. Department of Justice, 2010) e do Reino Unido (Joint Competition Commission & Office of Fair Trading, 2010) discutiam as atualizações de seus guias, o Horizontal Merger Guidelines e o Merger Assessment Guidelines, respectivamente. Isso ocorreu no final da década de 2000. Na ocasião, tais estudos eram conduzidos no âmbito do Tribunal do CADE (na antiga estrutura do SBDC), sob a coordenação dos economistas-chefe da instituição, Sergio Aquino de Souza e Eduardo Pontual Ribeiro. Inclusive, em Novembro de 2010 o IBRAC organizou uma mesa de discussões sobre o projeto de elaboração dos Guias. Tal discussão foi realizada no 16⁰ Seminário Internacional de Defesa da Concorrência, realizado no Guarujá/SP.

Entre as primeiras propostas e a publicação do Novo Guia H passaram-se seis a sete anos (ao menos do que foi possível encontrar em registros documentais). Durante tal período foram mapeadas diferentes versões para o Novo Guia H. Todos os economistas-chefe da instituição coordenaram, em algum momento, algum esforço de aprimoramento do que já vinha sendo produzido pelas equipes antecessoras[9]. Quando cheguei ao CADE, no início de 2014, havia no âmbito do DEE/CADE a percepção de que a discussão em torno do tema já estava bem avançada e as condições técnicas para a publicação de um Novo Guia H já estavam dadas. Contudo, minha impressão pessoal na ocasião era de que dispúnhamos de um produto de alta qualidade técnica (construído desde 2009 com a contribuição técnica do pessoal da SG, DEE e gabinetes do Tribunal), mas os custos de introduzir tal documento (“em substituição” à Portaria SEAE/SDE) ainda superavam os benefícios da troca. Portanto, eu suspeitava que as condições para a publicação de um Novo Guia H dependeriam muito mais das condições da demanda por um novo guia.

A demanda por um Novo Guia H começou a surgir com mais força à medida que foram introduzidas algumas inovações nas análises de AC’s complexos, ainda durante a fase de instrução destes no âmbito da Superintendência Geral. Este movimento crescente no uso de simulações e de métodos alternativos de diagnósticos de AC’s complexos teve início no primeiro semestre de 2014, motivado principalmente pela postura bastante empreendedora e inovadora do então Superintendente Adjunto, Eduardo Frade Rodrigues. Em junho de 2014, Eduardo Frade Rodrigues assumia de forma interina a Superintendência Geral do CADE. Naquela ocasião, o DEE/CADE, que havia sido constituído originalmente (antes mesmo da Nova Lei) como uma unidade vinculada ao Tribunal, passava a ter a Superintendência Geral como seu principal “cliente” dentro da Autoridade. A estratégia traçada por Frade trouxe como implicação a melhora permanente da qualidade nas análises dos AC’s complexos, além de aumentar sobremaneira a visibilidade e a reputação dos trabalhos técnicos conduzidos no âmbito do DEE/CADE.              

Como as inovações eram introduzidas em sequência em diferentes casos complexos, o público especializado (escritórios de advocacia, consultorias econômicas, etc.) já não dispunha de ampla previsibilidade sob quais métodos os atos de concentração complexos seriam avaliados pela Autoridade (por default, o  sempre seria um deles, evidentemente). Conduzíamos alguns testes e exercícios empíricos, todos eles conhecidos e consolidados na literatura especializada, mas o ideal era que dispuséssemos de um Guideline que sinalizasse a todos qual seria nosso rol padrão de instrumentos analíticos, assim como o fazia a Portaria SEAE/SDE com o . Mesmo que os Guidelines não tenham caráter vinculante, eliminar ao máximo possível as assimetrias informacionais é um objetivo bastante desejável.

Os pontos mencionados acima ajudam o leitor a compreender uma propriedade fundamental do Novo Guia H: mais de 90% dos AC’s que tramitam no CADE podem ser satisfatoriamente analisados com menos de 20% do seu conteúdo. Por outro lado, 80% do conteúdo do Novo Guia H foi construído tomando como referência situações envolvendo AC’s complexos, que correspondem a uma fração diminuta de AC’s que tramitam no CADE. O objetivo final é que o protocolo para AC’s complexos seja disseminado e todo o esforço de análise com diferentes métodos diagnósticos sejam antecipados, ao máximo, para a fase no qual o AC tramita na Superintendência Geral. Tal procedimento garantiria - ao menos teoricamente - que o Tribunal alocasse seus esforços da forma mais eficiente possível, priorizando a análise de ações mitigadoras dos potenciais efeitos anticoncorrenciais das operações, ou seja, na análise pormenorizada das eficiências e a negociação de remédios.  


5.    Considerações Finais

O objetivo do presente trabalho foi discutir os motivos pelos quais a Nova Lei da Concorrência trouxe, como consequência imediata, a necessidade da publicação de um novo guia de análise de atos de concentração horizontal (Novo Guia H) para o novo formato do SBDC. Foi visto que a principal inovação trazida pela Nova Lei - a análise prévia dos AC’s e seus respectivos prazos legais – impôs uma disciplina bastante rigorosa para o processo de instrução e tramitação dos casos. 

A Portaria Conjunta SEAE/SDE n. 50 de 01/08/2001 (Portaria SEAE/SDE), principal Guideline do antigo Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDE), continua a proporcionar um excelente referencial analítico para a imensa maioria dos AC’s que tramitam no CADE, mesmo porque a noção de análise concorrencial baseada em delimitação de mercado relevante () continua a ser o modelo analítico de default da maioria das autoridades da concorrência ao redor do mundo, principalmente nos casos onde a delimitação do mercado relevante é trivial.

Isso não significa dizer que a Portaria SEAE/SDE seja um documento inadequado para lidar com casos de grande complexidade, onde a delimitação do mercado relevante não é trivial. Na verdade, tal documento se mostrou bastante efetivo como referência analítica para vários dos casos complexos que tramitaram no SBDC ao longo dos anos. A questão chave da discussão é a obtenção de uma delimitação robusta do mercado relevante de forma tempestiva, dentro da janela estreita de tempo proporcionada pelos prazos legais impostos pela a Nova Lei. O fato é que a Nova Lei não proporciona espaço para instruções baseadas em longas discussões em torno da melhor delimitação do mercado relevante. Em suma, um grande impasse em torno da delimitação do mercado relevante pode consumir muito tempo e comprometer a qualidade de análise do processo como um todo.

Em algumas situações o custo de oportunidade (em termos de tempo adicional do processo de instrução) para manter a busca de um diagnóstico baseado no  é muito elevado. Nestes casos, abandonar a análise concorrencial baseada na noção de mercado relevante antitruste pode ser a melhor alternativa. Foi neste espírito que um conjunto de métodos analíticos alternativos começou a ser introduzido em casos que envolviam AC’s complexos. Os métodos UPP e GUPPI são os mais utilizados nestas situações.

A introdução deste novo “protocolo de diagnóstico” gerou, na maioria dos casos, maior conforto para quem diagnosticava. Por outro lado, causou bastante desconforto para quem se submetia ao exame diagnóstico, mesmo porque, a obtenção de estimativas de  e  envolve um procedimento bastante. Como outras inovações também foram introduzidas em sequência, em diferentes casos complexos, o público já não dispunha de ampla previsibilidade acerca de quais métodos os atos de concentração complexos seriam avaliados pela Autoridade.

Embora todos os métodos introduzidos fossem conhecidos e consolidados na literatura especializada, o ideal seria que o público tivesse a informação, ex ante, do rol de instrumentos analíticos aos quais os AC’s complexos seriam submetidos. A publicação em 2016 do Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, o Novo Guia H, veio tentar endereçar o problema de assimetria informacional entre a autoridade antitruste e o público em geral.

Bibliografia

COATE, Malcolm & Fischer, Jeffrey (2007). “A Practical Guide to the Hypothetical Monopolist Test for Market Definition”. Federal Trade Commission Mimeo.

Davis, Peter & Garcés, Eliana (2010). Quantitative Techniques for Competition and Antitrust Analysis. New Jersey: Princeton University Press. 

EPSTEIN, Roy & RUBINFELD, Daniel. (2010). “Understanding UPP”. The B.E. Journal of Theoretical Economics. 10 (1).

FARRELL, Joseph & SHAPIRO, Carl (2010). “Antitrust Evaluation of Horizontal Mergers: An Economic Alternative to Market Definition”. The B.E. Journal of Theoretical Economics. 10 (1).

MOTTA, Massimo (2009). Competition Policy: Theory and Practice. New York: Cambridge University Press.

RUBINFELD, Daniel (2010). “Econometric Issues in Antitrust Analysis”. Journal of Institutional and Theoretical Economics. 166: 62-77.

[1] Vários dos tópicos sobre economia da concorrência tratados neste artigo são abordados de forma bastante minuciosa em Motta (2009).

[2] Sempre interpretar  como método de análise de AC’s baseado na delimitação de mercado relevante antitruste para produto e para área geográfica.

[3] Na realidade, a totalidade do conteúdo da Portaria SEAE/SDE foi basicamente incorporada no Novo Guia H do CADE sob a denominação de “análise clássica” de atos de concentração horizontal.

[4] Os Guidelines dos EUA, Reino Unido e Europa poderiam servir como materiais de referência nestas ocasiões. Contudo, manusear diferentes guias, de diferentes jurisdições, por um período indeterminado de tempo, não era forma mais apropriada (nem a mais econômica) para lidar com tais situações,.

[5] Entendo que parte do esforço técnico na instrução de um caso não trivial envolva a busca por evidências empíricas robustas (nem sempre isso é possível) que possam reduzir ao máximo o grau de discordância entre todas as partes envolvidas, principalmente no que diz respeito à delimitação do mercado relevante antitruste. Em termos teóricos, quanto menor o grau de dissonância entre as partes acerca da complexidade do caso, maior a probabilidade das negociações acerca dos remédios não consumirem muitos custos de transação/barganha/oportunidade e tempo de tramitação.

[6] Coate e Fischer (2007) desenvolvem um estudo sobre a efetividade do método de delimitação de mercados relevantes para 116 AC’s tramitados no âmbito do FTC. Os resultados corroboram a noção de que os  são bastante satisfatórios para uma grande quantidade de casos.

[7] Uma discussão pormenorizada destas técnicas pode ser encontrada em David e Garcés (2010). Já um levantamento bibliográfico mais conciso pode ser encontrado em Rubinfeld (2010).

[8] Para uma compreensão dos métodos do tipo UPP, eu sugiro ao leitor não acostumado com formalização matemática em Economia iniciar seus estudos com o artigo de Epstein & Rubinfeld (2010) e então aprofundar seu conhecimento com Farrell & Shapiro (2010). 

[9] Isso inclui os trabalhos de coordenação de pesquisa do Vitor Gomes, Camila Cabral Pires Alves, Simone Maciel Cuiabano e eu. A última versão envolveu um esforço bastante intensivo do DEE/CADE, principalmente da equipe formada por Simone Maciel Cuiabano, Ricardo Medeiro de Castro, Renata Patriota Albuquerque e Gerson Carvalho Bênia.




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