Conformismo
Devagar, quase parando | Foto de Marivaldo Oliveira

Conformismo

Venho do Rio de Janeiro, e isso pode sugerir que esse texto seja mais um capítulo da secular disputa entre o centro financeiro e a capital cultural do país para decidir quem é mais competente em insultar o coleguinha da outra ponta da Via Dutra, mas não é. Muito pelo contrário.

Faz nove meses que me mudei para a capital paulista. Já conhecia bem a cidade - desde 2020, minha filha mora aqui - mas nunca tinha ficado mais de cinco dias seguidos por essas bandas. São Paulo não é uma cidade onde se passa férias.

Cruzando as marginais de carro, andando de metrô ou curtindo um museu ou um restaurante no fim de semana, é muito fácil - para quem vem de fora - perceber as características mais marcantes da cidade. Ao conhecê-lo, “você trabalha com o quê?” é a primeira pergunta que fazem. Status, reputação e dinheiro são muito importantes aqui. No RJ, eu já fiz amizades que pareciam de infância, duraram pouquíssimas horas - até o fim da cerveja - e eu sequer soube a graça do camarada que dividiu comigo papo tão agradável, muito menos como ele ganha a vida - se é que a ganha.

Outra coisa curiosa: o paulistano fala alto no elevador. Numa comparação rápida, um grupo de cariocas pode estar no clímax de um assunto da maior importância ou no meio de uma fofoca cabeludíssima, e amizades seriam profundamente abaladas caso o assunto fosse interrompido, que, se o elevador chegou, é momento de fechar o bico e, no máximo, sussurrar, quase necessitando de leitura labial para ser entendido: “já falo”. O nativo de São Paulo entra no elevador sem interromper o assunto. Se falando de um assunto profissional ou descrevendo uma consulta urológica estava, assim continuará. Com um agravante: fala ainda mais alto, como se, em vez de elevador, tivesse adentrado um túnel cujo grito fosse a única forma de ser melhor compreendido. Logo no elevador, um cubículo, normalmente forrado por espelhos e outras chapas de metal liso, numa acústica onde todo e qualquer som se amplifica. É desesperador.

Mas, talvez, nada diferencie mais as duas cidades do que os hábitos de trânsito. E isso abre margem até mesmo para interpretações antropológicas sem absolutamente nenhum embasamento científico.

O carioca está - estamos, me incluo aqui - longe de ser considerado exemplo ao volante. Somos apressados, folgados e, frequentemente, pouco gentis - ou mal educados. O paulistano não é nada disso. Dificilmente vemos um cruzamento completamente fechado por um carro atravessado - nota do autor: em Moema tem, mas Moema é o bairro mais carioca de São Paulo - e, em nove meses, eu nunca presenciei um xingamento no trânsito de terceiros. Talvez, seja excesso de educação - ou educação básica, sem excesso. Talvez, não.

Ao dirigir em qualquer via da Cidade das Marginais, é perceptível que, para nenhum motorista daqui, a placa de velocidade máxima é considerada uma ofensa à virilidade ou um desafio pessoal. Se na placa diz 90 km/h, o paulistano vai a 70, quando vai. Se diz 50, não passa de 40. Sem buzinas, sem faróis piscando, sem protestos de quem vem atrás.

Já na Cidade Maravilhosa, todo carioca sabe, se a placa diz 80 km/h, é pra andar a 80 km/h em todas as faixas de rolagem, exceto na da esquerda: essa é para andar acima do limite, e frear em cima do radar. O carioca quer gastar o mínimo de vida disponível no trânsito. Chegar do ponto A ao ponto B no menor tempo, em segurança e, se possível, sem multa. E isso diz muito sobre a cidade. O carioca cresce com pressa pra viver tudo o que há pra viver. Sempre tem uma praia, uma cerveja gelada, uma coisa pra viver ali na esquina. Quase todas as melhores delas, baratinhas - ou de graça, como a praia. Tem sempre um motivo pra correr e chegar logo. Tem atraso? Claro. O carioca atrasa muito! Mas não perde tempo. São coisas diferentes.

São Paulo é uma cidade que passa longe do baratinho e, por mais que caiba muito dinheiro nos quase cinco quilômetros da Faria Lima, de Pinheiros à Vila Olímpia, não cabem, ali, todas as pessoas. É uma cidade desigual. O Rio também é, eu sei, mas calma que eu tô no meio de um raciocício desconexo que talvez faça sentido no fim. A desigualdade carioca é lado a lado. O Vidigal é do lado do Leblon, o Cantagalo é do lado de Copa. Mesmo desiguais, convivem, moram perto. A desigualdade em SP mora longe. Sai de casa de ônibus, de metrô, de trem ou de carro, para trabalhar do outro lado da cidade. Trabalhar no lado que não se considera ‘o outro lado da cidade’. Em qualquer desses meios de transporte, a massa se move devagar, distraída, distante. Frustrada. E, numa cidade onde o emprego diz mais que o sorriso e a riqueza precisa ser superlativa para existir, o dono do carro zero de 100 mil reais também se frustra no sinal - ou farol, ou semáforo - ao lado de Ferraris, Mercedes e BMWs, enquanto dirige rumo à uma das marginais, para voltar da Faria Lima para casa, certo de que não há espaço pra ele ali. Milhões de paulistanos despertencidos do centro financeiro do país.

Engarrafado na marginal - seja do Pinheiros ou do Tietê - o paulistano procura um horizonte no fim da praia para admirar, mas encontra a pista no sentido contrário, porque não é mar, é rio. Sem cheiro de maresia para imaginar um mergulho reenergizante, se distrai no celular, olhando a vida dos outros. E anda devagar, na faixa da esquerda, 20 km/h abaixo do limite de velocidade, sem pressa, assim como o paulistano que vem logo atrás, e o outro, atrás dele, sem que ninguém reclame.

De tanto passar lado a lado, de marginal em marginal, percebi que o paulistano não é devagar, prudente ou excessivamente respeitoso no trânsito. Acostumado à falta de espaço, o paulistano se conforma e não anda rápido nem quando pode, nem com a pista livre, nem com a lei permitindo. Porque seria compreensível se ele só andasse devagar quando o fluxo de carros é intenso. Não dá pra esperar que o maratonista de elite, logo na largada, rodeado de gente em outro ritmo, corra no pace que certamente terá próximo à linha de chegada. Mas, de tanto se conformar, o paulistano entrou em conformidade. Virou conformismo. E de todos os predicados que já imaginei pra São Paulo - gentis e nem tanto - nunca tinha pensado nesse.

Não desgosto daqui, muito pelo contrário. Morar aqui foi uma escolha, mesmo com meu coração batendo a seis horas e R$ 51,70 em pedágios daqui, fora gasolina - ou a uma hora e pouquinho, com o preço da passagem aérea nas nuvens, para três aeroportos possíveis. Mas os anos no Rio me despertaram paixão por coisas que aqui parecem não ter tanto valor, como a vida que a gente perde no trânsito. Talvez, mais alguns anos aqui me façam dar mais valor ao status, e até perguntar o emprego de um futuro amigo que terei acabado de conhecer. Talvez eu consiga comprar um carro de 500 mil reais e um apartamento com tantos quartos que terei que chamar dezenas de amigos cariocas para ocupá-los - é dificílimo fazer amigos nessa cidade aqui. Talvez, e só talvez, eu consiga até me acostumar. Mas o Rio me ensinou a não me conformar com tão pouco, e talvez eu tome uma multa ou outra por correr com a minha BMW na marginal, buzinando, querendo chegar logo.

Esse texto é apenas uma catarse de sexta-feira. Não me leve a serio, me leve ao Rio.

Rafael Goulart

Coordenador de Tecnologia e Segurança da Informação na Globo | Cyber Security | Defesa Cibernética | CSIRT | CTI

4 m

Caraca, que texto irado meu amigo!!! Me prendi demais nesses 10 min de leitura!! ❤️

Luisa Izumi

Coordenadora de Branding & Insights na Raízen Power

4 m

São Paulo é corporativa e burocrática. Cabe a nós, cariocas conformados, encontrar uma leveza pros dias.

Simone Chahde

Coord. de Conteúdo e Produção - Social & Branded Content VIU Hub - Grupo Globo | Psicologia Positiva

4 m

Como no texto do Filtro Solar: Live in New York once, but leave before it makes you hard. Live in California once, but leave before it makes you soft.

Tainá Saramago 🌈

Marketing Director | Digital Transformation | Passionate about connecting brands and people

4 m

Nem a sério, nem ao Rio. Posso descer em Niterói? 💜😊

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