Construção de memória nas redes e formação de identidade: caminhos possíveis

Construção de memória nas redes e formação de identidade: caminhos possíveis

O processo de criação de memória nas redes sociais pode ser analisado por diversas perspectivas. A partir da psicanálise, do behaviorismo, do interacionismo, dos estudos culturais, os campos de conhecimento são diversos. A proposta desse texto é uma abordagem sobre o conceito de memória coletiva, a partir da interpretação de quatro escritores: Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Michel Pollak e Andreas Huyssen. Pegue um café e vem na minha direção!

A análise de Maurice Halbwachs sobre memória (enquanto processo de lembrar e esquecer) - e sua dimensão social - foi de suma importância para os escritos de autores posteriores que pesquisaram sobre a mesma temática. Alguns conceitos elaborados por ele influenciaram uma geração de sociólogos e historiadores que encontram na memória social respostas para muitos dos problemas analisados. Em seu livro A Memória Coletiva, ele faz distinção entre memória individual e memória coletiva.

 A memória individual seria aquela que pertence apenas às vivências e às experiências próprias do indivíduo, enquanto ator social. A segunda seria toda lembrança (ou esquecimento) que nos é evocado por outrem, que é exterior a nós e que não possuímos domínio sobre ela. A memória coletiva muitas vezes altera a impressão que temos de um fato que para nós é visto como experiência particular; isso porque quando nos é contado algo que aconteceu conosco e não nos lembramos, os fatos dos quais participamos ficam sujeitos às interpretações subjetivas de quem está contando, e de alguma maneira teve participação neles. Qualquer semelhança com prints que circulam no zap sobre as suas galhofas na noite da última sexta-feira não é mera coincidência.

O esforço de lembrar e esquecer pode ser voluntário ou não. Em se tratando de lembranças e/ou esquecimentos construídos em redes como Instagram, Twitter, Facebook, LinkedIn, Youtube, etc., determinados acontecimentos não são lembrados com tanta facilidade do que outros devido a alguns fatores, como o local onde aconteceu - se não tivermos mais contato com determinado local ou registros e documentos que retomem essa discussão, podemos não lembrar de nada ou quase nada relacionado a ele, principalmente quem não vivenciou o ocorrido -, objetos perdidos imbuídos de memória, entre outros. A memória coletiva condiciona o agir do indivíduo em situações de relações sociais, visto que ela é quem é responsável pelos códigos utilizados, pela linguagem e pelos seus significados.


Outro escritor importante sobre memória coletiva para analisarmos a construção de identidade nas redes sociais é Pierre Nora (leia-se “norrá”). Em seus estudos, Nora aborda questões não levantadas por Halbwachs, como será o caso de seu conceito chave lugares de memória. Nora denuncia a obsessão pela transformação de objetos e monumentos em verdadeiros totens de história, que só servem para nos lembrar de alguma coisa. A memória seria diferente dos lugares de memória, pois enquanto a primeira é a própria vivência dos costumes, hábitos e disposições encontradas na sociedade, o segundo é a consagração dos locais e objetos em fontes de memórias que não queremos esquecer. Nora coloca que os lugares de memória são “restos”, é a cristalização do que se fez, não do se faz; sejam museus, carrossel do Instagram, fotografias, reels, os lugares de memória estão aí para lembrar que determinado acontecimento foi anexado à alguma forma palpável - ou não -, onde este é composto de uma energia quase mística, que não permite o esquecimento.

A utilidade dos lugares de memória é basicamente essa, armazenar lembrança de algo que já não existe mais, daí a importância que Nora dá à memória de fato, em detrimento dos lugares de memória. A história que valoriza estes, a memória enquanto reprodutora das ações coletivas e sociais deveria abolir os lugares de memória, para não deixar que as práticas existentes no âmbito popular não venham a entrar em esquecimento. Ou seja, ao invés de se preocupar em fazer stories no boteco, vá ao boteco toda semana. Viva o momento!

Esse é um dos motivos que fará com que Nora avalie essa prática como uma valorização do futuro, já que as práticas antigas só servem para serem armazenadas nos lugares de memória e estudadas enquanto parte de uma criação coletiva que já existiu, ao invés de continuá-las praticando a fim de fortalecê-las na memória e na tradição popular. mais do que a existência do lugar de memória cristalizado num monumento, objeto ou qualquer outra coisa que represente-o como tal, este deve possuir significado. O aspecto simbólico é fundamental para que o lugar de memória esteja na negociação social que é a lembrança do que se quer lembrar.

As Meninas, óleo sobre tela, Diego Velázquez, 1656.

As Meninas, óleo sobre tela, Diego Velázquez, 1656.

Uma visão procurando questões ainda não trabalhadas no campo da memória coletiva, virá posteriormente com Michel Pollak, outro estudioso do ramo. Pollak mobiliza discursos sobre a memória coletiva relacionando esta com a identidade. Ele se esforça para nos mostrar como o caráter seletivo da memória atua no processo de formação de identidade. A identidade - assim como a memória -, nos moldes de escritores pós-modernos como Stuart Hall e Zigmung Bauman e contra a ideia do sujeito cartesiano, centrado, unificado e acabado, está no meio social a ser negociada, para a afirmação de si, para si e para os outros, seja para a corroboração de pertencimento a determinado grupo, ou negação de características em si para que seja possível o afastamento - simbólico ou territorial - de um outro grupo.

Uma outra questão trabalhada por Pollak é o enquadramento da memória, que seria o esforço de atribuição ou retiradas de características que se quer estabelecer a alguma parcela da memória coletiva, o que também não é tão simples e chega a ser tão conflituoso e disputado quanto a questão da identidade. Certamente você já viu algum caso de alguém requerendo o direito de ser “esquecido” pelos mecanismos de busca do Google, como a atriz Carolina Dieckman ao ter sua nudez vazada na internet há alguns anos; Pollak analisa os diferentes métodos de construção de memória como documentos escritos, depoimentos orais, etc., e atribui o mesmo nível de importância a todos, pois fica a cargo do pesquisador que fontes priorizar na hora da formulação de seu discurso, desde que haja um mesmo tratamento rigoroso na interpretação dos objetos levantados, sejam de quais naturezas forem.

Ele ainda discorre sobre as memórias existentes na sociedade: a memória oficial, veiculada pelos meios de comunicação de massa, órgãos governamentais e demais aparelhos institucionais como escolas, museus, universidades, é responsável pela manutenção da memória coletiva, com algum tipo de coerção, muitas vezes invisíveis visto que ficam no campo simbólico e ideológico. Esse discurso geralmente é hegemônico na sociedade, mas não é único. Há ainda as memórias subterrâneas, que são as que possuem pouca ou nenhuma expressão frente à hegemonia da memória oficial, apesar de existirem em conjunto com estas.

As memórias subterrâneas geralmente são aquelas que são divergentes das memórias oficiais, mas não possuem força suficiente para se fazerem valer. Elas permanecem, esperando determinados momentos para virem à tona, como situações de crise, denúncia de ato visto como inaceitável por parte da memória oficial ou algum tipo de comemoração ou lembrança coletiva sobre alguma data ou personagem histórico.

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Madame Moitessier, óleo sobre tela, Jean-Auguste Dominique Ingres, 1856.

O último escritor a ser abordado nesse artigo e que trabalha com a temática da memória coletiva é o professor de História da Arte Andreas Huyssen. Huyssen ressalta a compulsão que surgiu na segunda metade do século XX pela valorização do passado; itens que remontam ao passado, moda retrô e criação de inúmeros museus; ele salienta que isso é consequência direta da modernização acelerada, visto que a distância entre passado e presente está cada vez mais curta, o que gerou uma cultura da valorização exacerbada de objetos que remontam à história de vida de determinado personagem ou lugar. A memória passa a ser registrada em todo e em qualquer lugar, principalmente com a popularização da fotografia e das tecnologias da informação. Nenhum instante é perdido, tudo pode ser documentado, gravado e registrado.

Esse “culto ao  passado” a cada dia se confunde mais com o culto do agora. A produção de imagens, vídeos e demais registros de dados na internet aumenta exponencialmente minuto a minuto, estamos cada vez mais imersos nessa lógica da memória eterna. Já estamos até mesmo migrando nossa existência para o ambiente 100% e digitalizando nossas relações em diferentes níveis, o metaverso está aí para não me deixar mentir. Pra onde isso nos levará? Não faço a menor ideia, quem viver verá. E a propósito, não esqueçam de me seguir no Instagram, @darthpaulinho. Até a próxima!

#metaverso #cultura #transformacaodigital

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Wagner Maia da Costa

Doutor em Ciências Sociais pela PUC-RIO.

2 a

Grande Paulinho, é possivel achar esse livro wm pdf? Me interesso muito sobre esse assunto e estará na minha tese. Vou ler seu artigo com calma. Abraços.

Andressa Vasconcelos

Coordenadora de Mídia | Mídia & Marketing | Inovação & Growth | MBA em Liderança e Gestão de Pessoas

2 a

Genial!! <3

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