COVID-19, ato 4: o Brasil prestes a “dar uma fraquejada”
Brasileiro tem mania de não se preocupar com datas, de pouco planejar o futuro, de deixar tudo para a última hora, não é verdade? Somos caracteristicamente ansiosos e impacientes com processos e tudo que demora para maturar. Talvez por isso, paradoxalmente, deixamos tudo para última hora. Curiosamente, há um fenômeno antagônico, mas igualmente distópico, que é também a mania do brasileiro de fazer de qualquer maneira. Obviamente, o resultado não é bom em nenhum dos casos.
Sendo compreensivo além dos limites com nossos mandatários, podemos dizer que temos sofrido de ansiedade para o tal “retorno da normalidade”. Será esse retorno possível e rápido?
Se no início da pandemia a única medida possível para segurar o avanço da COVID-19 era o distanciamento social, feito por uma enormidade de países, hoje a capacidade de monitoramento de novos casos de enfermos e de curados, aliada à ampla e irrestrita testagem, estão diretamente associadas ao sucesso das medidas de distanciamento social para identificar, separar os indivíduos infectados, prevenindo maior alastramento, e sendo capazes de liberar os já curados para o tão “sonhado” retorno.
Quem testa amplamente está obtendo resultados muito melhores que os nossos, seja em menor número de infectados, seja em menor número de mortes. Hoje, no dia 22 de abril, a Islândia já realizou 44.468 testes (equivalente a 130 mil testes por milhão de habitantes), e acumula 1.785 casos e 10 mortes. Ok, é um país diferente, uma ilha relativamente pequena, uma população não tão numerosa. Um mais parecido conosco, a Austrália, quente, desértica, continental e do hemisfério sul: já fizeram 452.441 testes (17.743 testes por milhão de habitantes), e possuem "apenas" 6.649 casos e 74 mortes. Ainda assim, parece longe? Nosso alongado vizinho, o Chile, já realizou 6.734 testes por milhão de habitantes e, atualmente, possui 11.296 casos e 160 mortes. Algo de errado não está certo, mas não é com os outros países do mundo. É conosco.
Hoje, dia 22 de abril de 2020, os boletins oficiais informam que já realizamos 291.922 testes (1.373 testes por milhão de habitantes), melhor que o único boletim anterior, do dia 10 de abril, quando tínhamos feito apenas 296 testes por milhão de brasileiros. Porém, ainda estamos muito longe de um patamar ideal, que nos permita possuir dados suficientes para começar a discutir algum retorno a uma suposta pretérita normalidade.
Nos últimos dias, vendo o movimento de alguns países europeus em direção à flexibilização das restrições e medidas de distanciamento social, cresce no Brasil um movimento similar, irresponsável, de flerte com falas e intenções de flexibilizar nossas medidas de distanciamento social. Por que estamos essencialmente errados em agir assim?
A Alemanha, após realizar um número enorme de testes em sua população, tomar medidas de restrição e distanciamento social sérias, hoje começa a colher os louros do que poderia se chamar de sucesso no enfrentamento da pandemia, acumulando um número relativamente baixo de mortes, comparado ao número de casos que registram (5.315 para 150 mil casos, respectivamente). O país registra ca. cinco vezes menos mortes que países de sua região com números semelhantes de casos (França, Itália, Espanha e Reino Unido). O corpo de técnicos que provavelmente assessora o governo Alemão percebeu que estão há duas semanas (dos dias 06-07 de abril até hoje) com número de novos casos decrescendo e repetidas vezes abaixo do número de recuperação de enfermos (Figura 1).
Figura 1. Número de novos casos confirmados de COVID-19 (em laranja) e número de pacientes recuperados da doença (em verde) para a Alemanha, desde o início dos casos no país. Fonte: Worldometer.
Juntamente, porém provavelmente não dependente da Alemanha, outros países também estão programando o afrouxamento das medidas restritivas para algumas atividades não essenciais. Na lista de países europeus programando estas alterações, estão as muito afetadas Itália e Espanha, além de outros países que conseguiram conter o número de casos de forma bastante consistente (Figura 2).
Figura 2. Países europeus e atuais planos de restrição de atividades dentro de seus territórios como forma de combate à pandemia de COVID-19. Fonte: CNN.
É muito evidente que a maioria desses países da Figura 2 comece a tomar medidas de afrouxamento. Assim como a Alemanha, estão realmente registrando quedas sensíveis no número de casos, mas nem sempre diretamente associados a aumentos constantes em pacientes recuperados (Figura 3; veja Espanha, Itália, Polônia). Obviamente, esses dados são somente possíveis com o grande número de testes em todos os casos suspeitos e em indivíduos que venham, infelizmente, a óbito.
Figura 3. Número de novos casos confirmados de COVID-19 (em laranja) e número de pacientes recuperados da doença (em verde), desde o início dos casos em cada país que, junto com a Alemanha, estão programando medidas de afrouxamento do distanciamento social. Fonte: Worldometer.
É temerário que alguns países estejam tomando atitudes em prol de um afrouxamento do distanciamento social sem que fique claro que o número de pessoas recuperadas supere o de novos enfermos. A Organização Mundial da Saúde vem alertando para o risco de que medidas de afrouxamento precipitadas causem novas e poderosas ondas de retransmissão do vírus (WHO, 21 de abril de 2020). Isto ocorreu durante a pandemia de Influenza em 1918-19 (Figura 4), o que ampliou em muito o sofrimento e número de mortes em todo o mundo na época, reportado através de três ondas de alta mortandade de pessoas associada aos sintomas da Influenza (Nichols 2006, Martini et al., 2019; Figura 5).
Figura 4. Mortalidade na Europa e EUA durante a pandemia de Influenza H1N1 em 1918-1919. Fonte: National Museum of Health and Medicine, Armed Forces Institute of Pathology, Washington, D.C., EUA.
Figura 5. Número de mortes por 1.000 pessoas no Reino Unido decorrentes de Influenza H1N1, somadas às de pneumonia, na pandemia entre 1918-1919. Destaque para as três ondas de contaminação. Fonte: Taubenberger & Morens (2006).
Há, no entanto, os mais cautelosos, que não estão ainda pensando em diminuir restrições. Não sei se estão observando exatamente suas curvas de novos casos em comparação com as de recuperação, como fez a Alemanha. Mesmo assim, parece fazer muito sentido que mantenham o distanciamento social o máximo que puderem, pois suas curvas de curados realmente estão abaixo das curvas de novos enfermos, o que é evidência clara de que ainda podem estar na fase de ascensão da epidemia em seus territórios (Figura 6).
Figura 6. Número de novos casos confirmados de COVID-19 (em laranja) e número de pacientes recuperados da doença (em verde), desde o início dos casos em cada país que estão mantendo (por ora) as medidas de distanciamento social. Fonte: Worldometer.
Para outros países, não estão disponíveis dados diários de pacientes recuperados, o que torna a avaliação menos detalhada, mas ainda assim possível, se avaliarmos o padrão de flutuação das curvas de novos casos. Para esses países, de modo geral, as curvas podem mostrar: estabilização do número de casos em um platô ou sucessivo decréscimo de novos casos com o tempo (Figura 7). Essa forma de olhar o avanço da COVID-19 também mostra a necessária congruência entre ações de relaxamento ou não do distanciamento e dados científicos vindos de monitoramentos rígidos da saúde pública de cada país (Figura 8).
Figura 7. Número de novos casos confirmados de COVID-19, desde o início dos casos em cada país que estão flexibilizando as medidas de distanciamento social. Notem como em todos os casos o número de casos novos é decrescente após um saliente pico de infecção em cada país. Fonte: Worldometer.
Figura 8. Número de novos casos confirmados de COVID-19, desde o início dos casos em cada país que estão mantendo (por ora) as medidas de distanciamento social. Notem como existem países em diferentes momentos da epidemia. Comum entre eles é que nenhum está claramente acumulando dias sucessivos de decréscimo de novos casos. Alguns parecem ter atingido o platô nos níveis de expansão da doença (Portugal, România, Hungria, Grécia) e me parecem estar na mesma situação que outros, destacados na Figura 7, que já estão planejando diminuição de restrições. Além da precaução, outras fontes de dados provavelmente fomentam essa manutenção do distanciamento. Fonte: Worldometer.
E o Brasil? Vocês devem estar se perguntando... Não vamos bem.
Figura 8. Número de novos casos confirmados de enfermos por COVID-19 por dia, desde o início dos casos no Brasil (colunas em cinza na figura no topo; linha laranja na figura de baixo) e número de casos de pacientes recuperados (linha verde na figura de baixo). Notem como nossa curva de novos casos ainda é claramente ascendente. Fonte: Worldometer.
Mesmo desconsiderando a subnotificação (que também é gritante no mundo), já evidenciada através de ações de secretarias de saúde (subamostragem em Brasília) ou através de dados abertos de instituições de pesquisa em saúde pública (Fiocruz), é evidente que discutir hoje medidas de afrouxamento do distanciamento social é se precipitar. Não temos evidências, ancorada em dados, de que isto seja possível em nosso território, principalmente pelo "voo no escuro" que estamos executando por não realizarmos testes em massa na população.
Basta que olhemos a relação entre o número de testes por milhão de habitantes e o número de casos para os países que acumulam mais casos no mundo. Se marcarmos os países que estão planejando medidas de afrouxamento e os que estão mantendo todas as medidas de distanciamento social, dois grupos bastante coesos e razoavelmente distintos se formam. O Brasil não pertence a nenhum deles (Figura 9). Estamos na zona do mapa cartesiano do "voo cego", isolados do restante do mundo (qualquer semelhança com a "genialidade rara e única" de nosso presidente não é mera coincidência).
Figura 9. Relação entre o número de testes para confirmação de casos de COVID-19 e número total de casos por país, ponderado por milhão de habitantes. Em verde, estão sinalizados os países que anunciaram nos últimos dias planos de afrouxamento de medidas de distanciamento social. Em vermelho, os países que mantêm as medidas de lockdown ou proibição parcial de todas as atividades não essenciais. Sem coloração, estão países para os quais não obtive informações oficiais sobre o distanciamento. Suécia é um dos únicos países do grupo analisado que não adotou medidas restritivas de distanciamento social. Fontes: Worldometer; CNN; World Economic Forum.
Então, qual a mensagem, qual saída que temos?
Sejamos, mais do que nunca, Brasileiros e deixemos mais essa coisa importante para a última hora.
Muito pertinente, Diogo!
Lecturer
4 aExcelente conteúdo pra refletirmos sobre essa situação, parabéns Diogo!
Assistente de R&S na Coopmetro/ T&D/ Compras/Lançamento de NF/Educação Corporativa/ LMS/ Registro de ponto /Gestão Contrato estágio/Gestão de RH/Logística/Integração de Novos colaboradores/Formativos
4 a👏👏👏gosto de ler suas publicações senhor loreto