Crítica - O Regresso
Rodas em volta da fogueira cercadas pela penumbre noturna já testemunharam essa história. Um dos contos verídicos mais tradicionais nos Estados Unidos, ele atravessa gerações, adquiri novos significados, atributos e é um relato da bravura americana em meio a uma terra em metamorfose. Embasado no século XIX, mais precisamente em 1823, a experiência de sobrevivência e vingança em meio às condições mais adversas do explorador e comerciante Hugh Glass é um daqueles raros momentos épicos que se mesclam com a História Americana, no período mais tempestuoso do país, o Oeste Selvagem.
E por ser uma história tradicional americana, regada de aspectos conflituosos, entraves emblemáticos com a natureza e o perfil heroico viril de homens que habitavam em contextos precários, é natural esperar que o contador desse conto seja um “nativo”. Mas quem assina “O Regresso” não poderia estar mais longe desse universo. Mexicano de raízes fortes, Alejandro Iñárritu toma a clássica história das rodas de acampamentos e escolas para si, se apropriando dela como testemunha ocular. Ainda que o roteiro adaptado não seja de sua autoria, toda a história de renascimento e vingança de Hugh Glass é trazida pelas lentes, perspectivas e óticas clínicas do cineasta perfeccionista. Vemos seu estilo tão peculiar presente em cada aspecto desta que atualmente é uma das experiências mais sinestésicas do cinema, desde “Gravidade” (2013). E talvez esse seja o ideal. Livrar a obra dos efeitos ufanistas cansativos que alguns cineastas norte-americanos impregnam em produções históricas torna a absorção do filme tão real e palpável que todos nos transferimos para as feridas mal cicatrizadas do protagonista vivido por Leonardo DiCaprio.
Somos levados aos extremos em todos os atributos ao decorrer do filme. Com um roteiro que prima exageradamente pela linguagem corporal em detrimento da fala, restringindo diálogos ao estritamente necessário, “O Regresso” atinge níveis de profundidade densos e complexos. Direcionados para uma constante interpretação de todos os atributos em cena, somos presenteados com uma experiência absolutamente sinestésica. Os sentidos falam mais do que palavras. As expressões faciais revelam mais que segredos ditos. A agonia expressa através dos olhos cintilantes de DiCaprio em momentos de plena estática gritam a plenos pulmões. O toque entre pai e filho, os diálogos rasos de palavras, mas ricos em simbolismos entre ambos, a dor da perda. Tudo é trazido com muita vivacidade em silenciosas situações que explodem sonoramente em nós. O frio e a fome que atacam a espinha doem. Em todos.
O que torna a nova produção de Iñarritu algo tão emblemático e admirável é justamente o perfeccionismo em nos transferir para dentro do contexto vivido por Hugh Glass. Desafiando as condições climáticas, limites corpóreos e técnicos em se tratando de filmagem, o diretor nos imerge em cenas sequenciais de um brilhantismo sem igual. Repetindo o intenso trabalho feito em seu premiado “Birdman” (2014), testemunhamos momentos cuidadosamente coreografados, em planos que captam várias situações acontecendo simultaneamente, à medida que a câmera passeia pelo cenário, que contou com locações como o Canadá, a Argentina e os Estados Unidos. Com uma fotografia excepcional, toda feita em luz natural sem manipulação e CGI, Emmanuel Lubezki nos entrega um dos seus trabalhos mais lindos. Premiado por dois anos seguidos com o Oscar de Melhor Fotografia (por “Gravidade” e “Birdman”), ele volta como a grande aposta da premiação em 2016. E não seria por menos.
As filmagens feitas sob condições adversas, como temperaturas que beiravam -20° e as dificuldades em explorar a luz natural devido às rápidas mudanças ao longo do dia somam a um ciclo de atuações belíssimas. Como um cineasta que prima pelo realismo perfeito nas interpretações, ele submeteu seu elenco e equipe às situações de quase hipotermia, em territórios desérticos e de difícil acesso. Tom Hardy se mostra irreverente, faz de John Fitzgerald uma figura detestável. Transformando seu forte sotaque britânico em um genuíno americano de voz arrastada e fala emendada, ele entrega uma atuação digna de Oscar, tornando o aplaudido trabalho de Stallone como Rocky em um papel qualquer. Leonardo DiCaprio nos surpreende mais uma vez, nos acostumando ao fato de não nos acostumarmos com seus papéis. Com uma atuação híbrida, que ao longo de sua carreira permeou todos os tipos possíveis, ele vidra nossos olhos com o personagem de sua vida. Dilacerado e intenso, ele rompe as barreiras de seus próprios limites em cenas que exigem de seu corpo muito mais do que profissionalismo. Deitar em uma carcaça de um animal morto, se arrastar por metros de gelo e mergulhar em um rio congelante são algumas das coisas que nos deparamos. Um papel imensurável tamanha a dificuldade. Um papel que mais do que nunca merece um Oscar.
“O Regresso” é o tipo de filme que exige muito mais do que nossos olhos e atenção. Ele exige de nós uma entrega nas mesmas proporções que a produção faz. É preciso deixar ser tomado por sua atmosfera, para então ser capaz de aprecia-la em cada ponto. Uma obra que rendeu polêmicas, teve um acréscimo vertiginoso no orçamento e rendeu a demissão de alguns membros da sua “crew”, o mais novo clássico percorre quilômetros a mais do que seu antecessor, “Fúria Selvagem” (1971). Ao nos transferir para o sofrimento, a sede por vingança, a agonizante dor da perda e o sofrimento do insubstituível, nos tornamos testemunhas desta história que agora extrapola as fronteiras norte-americanas e alcança as também intermináveis rodas de cinema.