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O filme sobre Bob Marley, de intenções aparentemente biográficas (One Love, ainda nos cinemas), deixa a desejar. Mas deve ser assistido! Pode ser que só tenha mesmo a intenção de despertar, nos mais jovens, o interesse pelo ídolo do reggae. Mas há algo positivo, além das canções incluídas meio aleatoriamente na trilha sonora: o momento em que o filme chega. A direção e a edição impermeabilizam a história e, em muitos pontos, neutralizam o magnetismo e a “energia espiritual” de Marley - que poderiam ter feito o filme ir além da tela. Fora isso, apesar de sem maiores destaques, algumas mensagens estão lá. Algumas são passadas depois que os créditos finais sobem. Assim, permaneça na poltrona…
O ponto mais positivo do filme – além das canções emblemáticas por si só como a oportuna Redemption Song (Canção da Redenção) e da influência espiritual abordada - é ter trazido a história de um, por assim dizer, autêntico ativista da união e da paz (Marley recebeu a ‘Medalha da Paz’ um pouco antes de morrer) em tempo de tanto ódio e desavenças no planeta, como atualmente. De um lado, conflitos crônicos tornando-se agudos. De outro, a incompreensão do novo mundo que se descortina, causando retrocessos (Brexit; desejos de isolacionismo nos EUA; expansionismo colonial russo/soviético, apetite imperial chinês, etc), ao ponto da maioria estar tentando resgatar o passado, ao invés de enfrentar o presente contínuo diante da tarefa de se criar uma narrativa atualizada e integrativa.
Assim como as convulsões da Revolução Industrial no século XIX atualizaram ideologias – ou resultaram em novas para o século XX - um caminho supostamente saudável hoje seria descobrir se o neoliberalismo dará conta de se reinventar (mais uma vez) ou se não estaria sendo demandada outra forma de pensar diante das revoluções em curso neste auge da economia digital. O que as próximas décadas prometem é uma aparente combinação de radical disrupção tecnológica com o colapso ecológico, em avançado curso. Fora o colapso mental de todos nós por ainda estarmos com padrões de pensamentos subliminares em uma era de exigências superliminares (para darmos conta de questões sistêmicas e eminentemente holísticas). O que pensar às vésperas de um planeta perigosamente exausto, em um mundo de algoritmos em rede e ciborgues ameaçando cada vez mais a administração processual e a rotina da vida comum, além de desafiar o pensamento humano?
A quem caberia preocupar-se com isso? Haverá novas convulsões sociopolíticas? Quem sabe neste ainda nebuloso século XXI as revoltas (populares) sejam contra não a uma elite econômica que explora pessoas, mas a uma elite político-econômica que já não precisa delas? Sociedade 20 por 80 materializando-se? Vinte porcento de pessoas necessárias à economia global e oitenta porcento delas tendo de ser entretidas por não serem úteis ao processo produtivo mundial? Uma coisa já parece estabelecida: poucos ainda acreditam em algum sistema global que garanta liberdade e igualdade. A coisa promete-se melhor tratada regionalmente, adequando-se recursos locais às necessidades específicas econômicas e sociais.
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Até porque, descobriu-se que as agendas são crescentemente pessoais. Ainda mais restritas pelo individualismo, o que retira o foco da maioria de pensar nas grandes questões planetárias coletivamente, em detrimento dos próprios interesses. E ainda não se tem certezas do básico: que civilização domina o mundo hoje – o Islã, a China, o Ocidente ou alguma secreta ‘coalizão’? O que poderá resultar de certas alianças, como Xi Jinping e Putin: a lua radioativa será mesmo o pior limite? Haverá uma nova grande guerra? Por que o aumento de depressão, ansiedade, autismo e demência precoce?
O que fazer diante da desigualdade e das restrições à vida face às consequências das mudanças climáticas? Deus está mesmo de volta em meio a essa inflexão apocalíptica? A intolerância e a ganância são afluentes do sistema e das igrejas ou estratégias políticas? Estamos moralmente preparados para a fusão da biotecnologia com a informática, tendo no ventre a inteligência artificial? E a união de religião com o Estado, em confronto à ciência: é apenas um oportunismo para fácil cooptação? Como resolver o terrorismo e demais conflitos latentes e pontuais que dividem a Terra? São questões subjetivas, complexas e enraizadas na história, em um mundo de fanáticos por fóruns que debatem ideias tímidas ou cosméticas, e que nem assim alcançam consenso. Aliás, divergências, crises diplomáticas e geopolíticas explodem em toda parte.
Daí o filme de um músico com ideais simples e pacifistas (com mais de 75 milhões de discos vendidos) ser oportuno hoje por jogar luz em temas como a união, o amor, o perdão e a paz. Mas, como toda arte, o cinema limita-se a causar encanto e / ou perplexidade. Em pouco tempo, o filme sequer estará em cartaz. Apenas disponível em mídias streaming, visto por cada vez menos gente. Até porque, os escorregões fílmicos de On Love deixaram passar a chance de tornar grandiosa uma vida com exemplos cruciais de humildade, humanismo e diplomacia, além de escorrer pelos dedos a cena que talvez mais inspirasse o planeta, com proposta de solução a uma das mais importantes questões da atualidade.
E descobri-la, ficará por conta do espectador atento: mesmo com sua qualidade geral questionável, não deixe de assistir ao filme. Apesar de todos os alentos artísticos, tecnológicos, espirituais e científicos da Terra, nada detém o espírito do tempo. E enquanto escoam as areias de sua ampulheta, permanece a certeza de que só temos perguntas. As mesmas... de sempre.