Cuidado com o “enlatado”
A chegada de um CEO de mercado a uma empresa familiar tem o potencial de abrir as portas para mudanças e liderar processos de profissionalização, mas a escolha desse profissional é um ponto bastante delicado. Um executivo pode ser extremamente competente no que faz, reunindo a expertise, a capacidade, o conhecimento técnico e administrativo para desempenhar a função de liderança em uma corporação. Mas quando se trata de negócios familiares, é essencial que ele tenha uma qualidade extra: a sensibilidade para compreender a dinâmica e as relações que mantém a família e a empresa indissoluvelmente interligados.
Para exercer o papel de líder em uma companhia construída por uma família empresária é preciso ter vivido essa experiência na pele. Costumo dizer que um profissional que não vem desse universo e que construiu a própria carreira apenas em grandes empresas terá muito mais dificuldade em se adaptar à convivência com um fundador. Em outras palavras, o executivo que desembarca em um negócio familiar “enlatado” de uma multinacional, habituado às proteções, limites e hierarquias corporativas, terá muito mais problemas em entender – e driblar, quando necessário – as decisões unilaterais de um proprietário.
Aqui trazemos outro caso real, que joga luz sobre o que queremos dizer. A história se passou com uma companhia familiar, surgida nos anos 1960. Criado por dois irmãos, o negócio deu os primeiros passos fabricando móveis em um processo artesanal. Com o tempo a operação foi crescendo e agregou um terceiro sócio, sem relação com a família dos fundadores, que vamos chamar de Magno. Esse personagem tinha um senso comercial extremamente aguçado, capaz de catapultar o negócio ao longo das décadas. Ainda assim, sua participação na empresa manteve-se minoritária.
A trajetória da companhia começa a nos interessar no início dos anos 2000, quando os sócios perceberam que o empreendimento atingira um tamanho que exigia uma maior profissionalização da gestão, incluindo a implantação de um modelo de governança corporativa. A essa altura os móveis artesanais haviam sido deixados para trás e a empresa contava com três divisões. As duas primeiras, mais tradicionais, fabricavam produtos vendidos no varejo e respondiam por 90% do faturamento. A terceira, ainda incipiente, abria caminho para que a companhia se tornasse fornecedora de componentes de madeira para a indústria.
Nesse momento, os dois irmãos fundadores já tinham se afastado do dia a dia da operação e só Magno, que chegara por último ao negócio, permanecia na gestão. Ele desempenhava o papel de presidente e era a ele que teria de se reportar o executivo recém-chegado, contratado para fazer o papel de Chief Operating Officer (COO) das duas divisões. Vindo de uma multinacional norte-americana, esse executivo tinha competência inquestionável, mas não conseguiu permanecer por mais do que dois anos na empresa. Com dificuldade em se adaptar ao funcionamento de uma companhia familiar, ele entrou em rota de colisão com o sócio-presidente e com os membros mais antigos da equipe gestora, que o viam como uma ameaça às suas posições, consolidadas ao longo de anos.
O COO foi substituído por um novo profissional, também de competência indiscutível, que vinha de outra multinacional, essa de origem europeia. O executivo recém-chegado também não tinha vivência em empresas familiares, mas teve a habilidade de resgatar as relações da posição com os demais integrantes do time gestor, restabelecendo um senso de equipe na esfera administrativa do negócio. Se conseguiu entender-se bem com seus liderados, esse diretor não teve a mesma sorte com o sócio-presidente, com quem manteve um relacionamento conflituoso e de desconfiança mútua pelo prazo em que permaneceu ali, também cerca de dois anos.
No momento de repor a posição de liderança pela segunda vez, as condições do negócio se apresentavam diferentes. A divisão mais nova, que produzia componentes de madeira para a indústria, apresentava um viés de crescimento robusto. Ao mesmo tempo, esse era um setor sobre o qual Magno não tinha muito conhecimento, o que o levou à decisão de mudar a estrutura de gestão. O plano agora era contratar dois novos profissionais: um COO para as duas divisões tradicionais e um CEO, com experiência no ramo, para trabalhar com mais autonomia na unidade incipiente.
O executivo escolhido para ocupar o posto de CEO (a quem vamos nos referir por Fernando) tinha ampla experiência em uma multinacional do setor, mas havia passado os últimos cinco anos como o diretor-geral de uma empresa familiar. Em menos de um mês, ele já havia diagnosticado seus dois maiores desafios para ter sucesso: conquistar a confiança de Magno e ao mesmo tempo limitar suas ações no dia a dia da operação, blindando sua equipe de gestão das atitudes intempestivas do sócio-presidente.
O equilibrista em ação
O que Fernando se propôs a fazer não era fácil. Ele apostou todas as suas fichas em exercer o papel de equilibrista, para balancear e ao mesmo tempo filtrar as relações entre as esferas da governança, que embora estabelecida, ainda funcionava com limitações. Em resumo, ele pretendia servir de estabilizador do relacionamento entre as duas pirâmides do modelo que apresentamos anteriormente.
No âmbito da pirâmide de baixo, o CEO se esforçou em manter relações transparentes, com clareza na divulgação de informações e apoio à formação e desenvolvimento de lideranças no segundo escalão da administração. Pela primeira vez, os membros da equipe de gestão viram-se protegidos da interferência familiar no seu dia a dia. Com isso, abriu-se um canal de comunicação que antes não existia entre os gerentes e a diretoria, ao mesmo tempo que se estabeleceu um filtro para a influência dos acionistas e do conselho de administração sobre os gestores.
No que diz respeito à pirâmide superior, o grande objetivo de Fernando foi deixar absolutamente claro ao sócio-presidente que ele não tinha intenção alguma de ocupar seu lugar. A sua experiência anterior no universo dos negócios familiares permitiu a ele perceber rápido que esse fora o grande obstáculo encontrado pelos seus dois antecessores: ser (ou apenas parecer) uma ameaça à posição de Magno.
O fundador é insubstituível
Enquanto fortalecia o relacionamento com a equipe de gestão à base de transparência e meritocracia, Fernando fez questão de dizer abertamente ao sócio-presidente que não tinha ambição alguma de sentar na cadeira dele. Esse, aliás, é um dos erros clássicos cometidos por executivos sem experiência em negócios familiares: a ilusão de que algum dia podem assumir o lugar do fundador. Isso não é possível por um motivo bastante simples: as funções desempenhadas por esse personagem só podem ser exercidas por ele mesmo. Incorrer nesse erro coloca o profissional de mercado em rota de colisão com o proprietário, da qual mais tarde é difícil desviar.
O novo CEO teve o primeiro sinal de que estava sendo bem-sucedido em conquistar a confiança do sócio-presidente alguns meses depois de assumir o cargo, ao ser convidado não só para participar, como para apresentar os resultados da divisão que comandava em uma reunião do conselho de administração. Embora tivessem poder sobre as três divisões da empresa, nenhum dos dois antecessores de Fernando jamais haviam tido acesso a essa esfera de governança, nem mesmo como ouvintes.
É claro que a confiança não foi ganha do dia para a noite, foi um processo gradual. Nessa primeira participação no conselho (e em várias subsequentes), Magno fazia questão de combinar antecipadamente com Fernando cada detalhe do que iria dizer ou mostrar aos conselheiros, em que estavam incluídos seus demais sócios. Com o tempo, porém, Magno foi percebendo que podia ficar tranquilo em relação ao executivo que contratara e depois de um ano já tinha abolido até mesmo a conversa que precedia as prestações de contas ao conselho.
Esse executivo já completou dez anos no comando de sua divisão e a evolução dos resultados financeiros prova o quanto um CEO profissional pode colaborar com uma empresa familiar. Quando assumiu a posição, a unidade respondia por cerca de 20% do faturamento total da companhia. Através de um plano de expansão e planejamento estratégico, debatido e aprovado pelo conselho, o segmento liderado por Fernando viu sua receita se multiplicar por três, invertendo a hierarquia das operações da companhia e se tornando responsável por 80% do que o negócio familiar fatura.
A trajetória até chegar a esse ponto, porém, não foi linear nem livre de obstáculos. Até conseguir estabelecer um padrão satisfatório de relações com os atores contidos nas duas pirâmides da governança, Fernando teve que exercitar com frequência seus talentos de equilibrista. Por ter mantido uma influência ativa na gestão do negócio durante décadas, Magno demorou a abandonar o hábito de interferir no dia a dia da gestão, especialmente nas relações com os clientes.
A empresa que ele ajudou a construir teve por mais de trinta anos seu sucesso baseado nas relações com o varejo, em que era comum oferecer descontos e pressionar os compradores, para que fossem fechados ou ampliados pedidos à linha de produção. Assim, menos de três meses após assumir como CEO, Fernando recebeu uma ligação de Magno. O sócio-presidente informou-o que o volume de vendas de uma das outras duas divisões estava abaixo do normal e que para atingir a meta de faturamento conjunta do mês ele queria uma “ajuda” da sua unidade. O que ele sugeria era ligar para um dos maiores clientes e oferecer um abatimento de 3% no preço de um dos componentes que era fornecido para eles em troca de um aumento de algumas centenas de unidades no volume de pedidos.
Enquanto escutava o outro pelo telefone, o executivo refletia sobre o dilema. Por conhecer como funcionava esse mercado, Fernando sabia que uma situação como aquela era impensável. Na indústria, cada pedido feito aos fornecedores é devidamente escalonado e programado, de forma a otimizar a própria operação e limitar ao mínimo indispensável os estoques. Eles não respondem bem a descontos, pressão ou relações particulares, como por vezes acontece no setor varejista – o envio de peças a mais ou a menos pode resultar até mesmo em um demérito na avaliação que o comprador faz do fornecedor.
Fernando se viu em uma encruzilhada. Se fizesse como lhe pedia o sócio-presidente, tinha a certeza de que cairia em descrédito com um grande cliente. Por outro lado, se negasse, também era certo que deixaria o chefe contrariado. O que fazer?
O CEO prometeu a Magno que iria agir como ele pedia e depois lhe retornaria. Uma hora mais tarde, com todo o cuidado, Fernando explicou que havia telefonado para o cliente e que esse estava com problemas de estoque, portanto não poderia aumentar os pedidos, mas que agradeciam o generoso desconto oferecido. O executivo poderia ter feito como um dos seus antecessores ao ser confrontado pela mesma situação, batendo na mesa e dizendo ao sócio-presidente que “desse mercado entendo eu”. Sua experiência em outras empresas familiares, porém, havia lhe ensinado que é preciso evitar ao máximo o confronto com o fundador ou proprietário do negócio, encontrando uma forma de contornar os conflitos.
Fernando sabia que é preciso ter uma boa dose de habilidade para conviver nesse universo e, portanto, dedicou-se a praticar o equilibrismo da melhor forma que podia. O CEO teve que digerir alguns telefonemas como esse durante os primeiros dois anos à frente da gestão, mas a partir do terceiro o chefe havia se convencido pelos resultados financeiros apresentados de que não precisava interferir no dia a dia da operação.
Bruno Ferrari Salmeron
Autor do livro “Governança em Família: da fundação à sucessão”, é diretor de Operações da Divisão Automotiva da Schulz S.A., membro do Conselho do Sindipeças (Sindicato Nacional da Indústria de Componentes para Veículos Automotores) e coordenador do Capítulo de Santa Catarina do IBGC (Instituto Brasileiro de Governança Corporativa).
O livro pode ser adquirido no site da Editora Évora, através do link:
Latin America Managing Director at MAKINO DO BRASIL LTDA
3 aOkay
Latin America Managing Director at MAKINO DO BRASIL LTDA
3 aV
Executivo de TI | Gerente Sênior de Projetos | Inovação e Transformação Digital | CTO | CIO
3 aPrezado Bruno... Interessante como sua frase encaixou "200%", sem exageros, numa situação que passei na carreira. Além de ter que conviver com as decisões unilaterais da família proprietária, a autonomia para decisões de qualquer natureza era baixíssima e não permitia decisões simples e importantes para a gestão.
Committed to a More Sustainable Foundry Industry
3 aSensacional, Bruno! Obrigado por compartilhar.
Administradora
3 aAngelo Luís Pagliosa