Cultura Digital #91
(artigo publicado no Jornal Açoriano Oriental no dia 19 de maio de 2019)
A relação dos humanos com a tecnologia (como o uso de ferramentas de pedra e o uso controlado do fogo) é antiga e está diretamente relacionada com o aparecimento da espécie Homo sapiens, da qual fazemos todos parte, pois é a única espécie humana que habita o planeta Terra. Para explorar algumas ideias e conceitos sobre a relação do Homo sapiens e a tecnologia irei fazer uso da parte inicial do texto “A Phenomenology of Technics”, do filósofo americano Don Ihde, incluído no livro “Technology and Values: Essential Readings” (2010).
A tecnologia está muitas vezes entre o observador/ utilizador e aquilo que é visto, ou percepcionado, ou seja, o artefacto tecnológico que permite o aumento das nossas capacidades serve como uma espécie de mediador entre o humano e o mundo. Don Ihde explica isto de forma simples através das ‘tecnologias corretivas’ que incorporamos/ corporizamos como os óculos, os aparelhos auditivos e as canas brancas que pessoas com deficiência visual usam para se deslocarem. Estas são tecnologias com diferentes graus de complexidade mas o mais importante é que são ‘objetos’ que funcionam como extensões do nosso corpo e que depois de uma processo de adaptação são incorporados, ou corporizados: passam a fazer parte do corpo de quem os utiliza.
O conceito de protociborgue, refere-se a um ciborgue – organismo cibernético – que ainda não alcançou a sua corporização total. Neste momento, devido ao uso de telemóveis apetrechados de inteligência artificial simples, com ligação à Internet, podemos ser considerados protociborgues. A partir do momento em que estes aparelhos móveis passarem a integrar o nosso corpo, ou seja, a partir do momento que passarem a ser incorporados no ‘interior’ do nosso corpo passaremos a ser considerados ciborgues, pois passaremos a ser uma entidade híbrida, constituída de elementos orgânicos e cibernéticos.
Para Don Ihde, o sistema híbrido condutor-automóvel envolve todo o nosso corpo permitindo que as nossas “capacidade nuas” sejam aumentadas. Quando conduzimos um carro incorporamos/ corporizamos o mesmo, o que nos permite “sentir” outro carro quando estacionamos, mesmo que não o estejamos a ver completamente. O carro é uma extensão do nosso corpo, o que nos permite uma percepção do que nos rodeia de forma distinta. A pessoa que conduz possui as suas capacidades aumentadas pelo automóvel que conduz permitindo que se desloque, com segurança e conforto, a uma velocidade muito maior. Mas conduzir não é só uma atividade simples como ir de um local para outro rapidamente, conduzir é também um prazer e uma atividade social (passear).
Esta nossa facilidade de incorporar/ corporizar tecnologias que aumentam os nossos sentidos e as nossas capacidades cognitivas vai permitir que a nossa espécie evolua e se fragmente em outras espécies humanas. É inevitável que nos tornemos os ‘deuses’ e as figuras superiores/ mágicas que inventámos para perceber e explicar o mundo que nos rodeia e a nossa origem. O nosso percurso tem sido o da expansão e do conhecimento e irá continuar a ser, mas a uma escala galáctica. Parece ficção científica? Basta imaginar como será o mundo daqui a 1000 anos para perceber que tudo é possível, mesmo a extinção da espécie humana.