DÚVIDAS JUVENIS VITORIOSAS
(Excerto do livro de publicação independente — ISBN 978-65-992287-4-2 — MINHA CASA OCIDENTAL — RELATO VERDADEIRO SOBRE A MORTE DO FACÍNORA, composto de XXXIV capítulos e 988 páginas, de autoria de CISINO COSTA).
Apesar de tudo, apesar da esperteza demonstrada desde cedo, da biblioteca e da dedicação ao estudo, José Marcelino da Silva ainda não estava preparado para enfrentamento de uma situação específica acontecida com ele nos primeiros anos da década de 1960. Perplexidade, seria a palavra correta para expressar a sua condição espiritual quando ele puxava pela memória e relembrava o episódio muitos e muitos anos depois. Nunca deixaria de sentir um frêmito de embaraço ao constatar que já tinha doze anos à época do acontecimento, que mais parecia uma aventura da fértil imaginação infantil e não efetivos fatos ocorridos e que permaneceriam vívidos na sua memória até o fim dos seus dias. Buscaria uma justificativa plausível para si próprio, afirmando que as crianças daquele tempo não tinham astúcia suficiente, eram bem mais infantis e inocentes do que as da atualidade, sempre mais informadas e espertas. Afinal, estas últimas vivem na era da informação oferecida pelos equipamentos técnicos modernos.
Em dois de abril de 1964, ele estava se divertindo, brincando de nego fujão, correndo e se escondendo por trás das toras de madeira da serraria que ficava próxima da casa dele, na parte dos fundos. Costumeiramente, andava sem camisa e trajava apenas um calçãozinho de algodão. Ostentava, com um certo orgulho sem causa justificável, as características de um corpo pequeno, franzino e livre de gordura — costelas descarnadas, pernas finas, figura pequena, mas longilínea, com os braços ornados de pelos brancos e cabelos desarrumados. Apenas carne, osso e espírito animado, mas o que poderia ser melhor que isto? Então chegou Paumba, filho de Dona Zefinha e Seu Benvenuto, todo azoado, dizendo estar ocorrendo uma revolução na praça Dom Malan.
— Revolução? Que revolução? — Indagou interessado.
Atoleimado de nascença, Paumba (ficava espiritado quando o chamavam pelo primeiro apelido, “Mãe da Lua”) não conseguiu explicar com exatidão do que se tratava o acontecimento, que, afirmava, se desenrolava em plena Praça Dom Malan.
José Marcelino da Silva pensou logo do alto dos seus dez anos: será que são os bichos do Professor Vadu, ou briga com os baianos? Estas duas alternativas, e apenas elas, justificariam na sua cabeça a tal revolução — estava certo de que era, sim, uma revolução — e daí o seu pensamento de criança naquela oportunidade, quando correu para ver o que efetivamente estava acontecendo.
Se você tivesse vivido na década de 1960 na microrregião de Petrolina, no Estado de Pernambuco, encravada na margem esquerda do Velho Chico, o suntuoso e tão decantado Rio São Francisco; se tivesse estudado no Colégio Estadual de Petrolina, ou mesmo se lesse o jornal local, constataria o seguinte. Que, a despeito da falta de leitores interessados e da evidente inexistência de prosélitos, o professor Vadu, químico de nomeada no âmbito local, emérito titular da disciplina no segundo grau do colégio e paleontólogo aspirante da região, afirmava duas coisas de fundamental importância para a humanidade. Fazia isto, através de bem elaborados artigos científicos, publicados na singular e ambiciosa coluna no jornal de edição mensal A VOZ DO RIO, intitulada “E nós, de onde viemos e para onde vamos?”. No final da coluna, quando assinava, ele escrevia inusitada e até curiosamente: professor Vadu, de Petrolina, Pernambuco, Brasil, terra, mundo, sistema solar, via láctea, espaço sideral. E ponto final, finalmente!
A primeira das afirmativas era de que ele, o professor Vadu, havia encontrado o caldo primordial da origem da vida, mediante experimentação levada a efeito em laboratório de sua propriedade. Pois, apesar de lecionar no colégio, não lhe foi permitido pelo diretor, Nicolau Boscardin (“freio de mão, miserável!”), a aplicação dos experimentos com o uso dos equipamentos do laboratório da escola. Segundo ele assegurava, teria juntado água do rio São Francisco com cloreto de sódio, gás metano, amoníaco e ácido sulfúrico, imprimindo carga elétrica na mistura e formando um caldo amarelado de compostos orgânicos que reagiram quimicamente produzindo aminoácidos. Estes, encadeados no processo, originaram proteínas, elementos fundamentais da vida primitiva. Segundo também afirmava, estava apenas esperando a luz elétrica vir da hidrelétrica de Paulo Afonso (até então, a cidade de Petrolina–PE era servida apenas através de geradores movidos a óleo diesel, e às vinte e duas horas ficava inteiramente às escuras). Então, com maior estabilidade da força, concluiria um conversor de aceleração de partículas em fase de testes, e daria nascimento a um ser complexo, talvez até mesmo um embrião de dinossauro.
Por que exatamente um dinossauro?
Talvez porque — como ele também afirmava orgulhoso, com segurança —, escavando as terras do Município de Petrolina, encravado no semiárido do alto sertão do Estado de Pernambuco, principalmente na parte ribeirinha do Rio São Francisco, com certeza se encontraria fósseis de megatérios, gliptodontes, e, quiçá, plesiossauros. Sua certeza acadêmica e científica decorria, ao que tudo indicava, de um original pensamento por ele desenvolvido — muito embora, como ele mesmo admite — contando com a ajuda de outro teórico, o naturalista inglês Charles Darwin, célebre autor do clássico A Origem das Espécies.
Segundo a crença do estudioso local, e até onde o esforçado escrevinhador pode entender da narração confusa de José Marcelino, apresentando, em leitura vulgata, definitivamente não técnica, os xenartros atuais seriam descendentes diretos dos gliptodontes. Portanto, os tatus e os pebas, profusamente existentes na região à época, mamíferos que satisfaziam aos mais exigentes gastrônomos sectários da extinção das espécies, eram resultados da linha involutiva — e aqui se encontra o elemento de instigante criatividade do professor Vadu. Uma curiosa inversão da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin, uma involução. Algo exatamente o contrário do pensamento que tornou famoso o audacioso estudioso britânico, ao desenvolver sólidos argumentos científicos a favor da seleção natural da diversidade das espécies da natureza.
Segundo o mestre Vadu, os gliptodontes, gigantescos animais desdentados da era mesozoica, dotados de volumosa carapaça de placas ósseas e rabo à altura, conforme se vê de reconstruções artísticas constantes dos manuais de paleontologia, ou mesmo se constata das reconstituições fossilizadas pacientemente montadas, haviam percorrido uma linha de retrocesso. Metamorfosearam-se em tatu, animal que pesa um pouco mais de dois quilogramas na idade adulta. Se tem tatu, raciocinava o nobre estudioso local — tinha gliptodonte, cujos fósseis podem ser encontrados na região. Bastava escavar! Se tem lagarto, também guindado à posição de descendente involutivo direto — tinha megatério, outro fóssil dos terrenos terciários e quaternários da América. Bastava escavar!
Não se sabe se alguém assumiu a tarefa de escavar a região em busca de fósseis de dinossauros. Certo mesmo é que nunca foram encontradas sequer pegadas fossilizadas, muito menos esqueletos completos, ou não. Não existe um único registro de achado, nas abundantes rochas da região, de restos de material mineralizado, mesmo não identificado. Nada que possa permitir a suposição de que se trate de elementos componentes — ossos, vértebra caudal, crista, tecido cerebral, dentes, pés, asas, ovos, unhas, fêmur etc. — da armadura dos gigantescos répteis banidos pela raiz da aventura animal na terra, centenas de milhões de anos atrás.
Mesmo assim, a cada mês, os petrolinenses, e de resto todas as cercanias, eram brindados com lições científicas de abalizada fonte local e a promessa de que os dinossauros poderiam ser encontrados bem ali debaixo da terra, praticamente em cova rasa. Mais, que um dia seriam revividos em carne e osso na região, tudo a ser posteriormente comprovado e completamente explanado, com mais vagar, nos capítulos do Tratado do Mundo e do Céu em franca composição à época pelo estudioso nativo (Esse livro nunca foi publicado, existindo dúvidas se chegou a ser escrito ou não).
Nas suas ruminações infantis, o criativo José Marcelino da Silva imaginou, também, outro motivo da dita revolução. Poderia muito bem ser problema com o “povinho do outro lado do rio”. Assim eram chamados à época, com desdém, os baianos que habitavam a vizinha cidade de Juazeiro–BA, na outra margem do grande rio São Francisco, que lambe as margens alcantiladas nas quais se homiziam os contendores. Petrolinenses, de um lado, e Juazeirenses, do outro; pernambucanos e baianos; gregos e troianos, respectivamente.
Não raro, o rio investia com fúria, levando a água generosa e demolidora para dentro das cidades, inaugurando profundos ermos de destruição e dor, e promovendo extensos grotões nas margens e lagoas temporárias. Ocorria, principalmente, lá para o lado do curtume Campelo, em Juazeiro, onde se estiravam as peles e as almas dos animais sacrificados em nome do paladar carnívoro do ser humano. De qualquer modo, o fato é que as enchentes ainda não haviam justificado a praga petrolinense, camuflada de profecia, e atribuída a um célebre clérigo local, de que Juazeiro, de resto, efetivamente, a mais atingida, ainda seria “cama de baleia, local bom para se lançar redes de pesca”. Quando alguém indagava a respeito, a resposta estava na ponta da língua de qualquer cidadão bem-informado da época — apenas quando o sertão virasse mar e o mar virasse sertão.
Bom, mas isto ainda não havia ocorrido. O cetáceo não aparecera para ocupar o seu leito, que também não existia. Visível mesmo, de plano, era a vetusta contenda paroquial entre pernambucanos e baianos, que já durava mais de uma centena de anos. Fazê-los atravessar o rio a nado, ou, algum tempo depois, através da ponte Presidente Dutra, debaixo da pancadaria de vinte nativos petrolinenses, era sinônimo de bravura. Motivo para blasonar durante muito tempo, nem que o escorraçado fosse apenas um só, sozinho, solitário baiano amedrontado. Os pernambucanos só atacavam de reca, vinham de magote, os cornos, segundo os denunciavam os baianos.
Conforme contam os historiadores oficiosos, tudo começou quando o herdeiro de uma sesmaria, que ficava na Bahia, deflorou a filha do seu colega da outra margem do rio, e, insulto dos insultos, não se casou. O sesmeiro pernambucano, atingido fortemente no âmago, deixando de lado os seus extensos interesses em prol de uma tentativa incerta de lavar a honra, prometeu vingança. Vingar-se-ia do agressor baiano para evitar que ele infelicitasse outras moças, ou então rasgaria sua carta foral da posse do seu latifúndio, firmada com o donatário da Coroa de Portugal, e levaria os pedaços para registrar na paróquia. Assim, organizou a primeira incursão belicosa à Bahia para punir o audacioso infrator da lei, da moral, das regras de convivência e dos bons costumes. No entanto, tendo fracassado na empreitada, na volta, atirou-se do barco e deixou-se afogar no rio, ferido no seu orgulho e honra. O corpo foi encontrado a duas léguas de distância, no atual distrito de Jatobá, semanas depois, completamente dilacerado pelos peixes. Até hoje, os petrolinenses não perdoam aquela morte e o quebrantamento da reverenciada membrana mucosa formadora do cabaço, apesar de terem abrandado as formas de escoarem o procedimento atávico.
Como era de se esperar, existe outra versão dando conta das circunstâncias do episódio. Esta é, digamos assim, mais favorável aos pernambucanos. Dizem que o sesmeiro desonrado, que atendia pelo nome de Cândido Manuel de Freitas Santana, não deixou barato a afronta. Tresloucado, ainda mais, pelo fato de que o deflorador vivia contando para todo o mundo que tinha “passado o ferro” numa pernambucana formosa da outra margem do rio, inclusive revelando detalhes picantes que eram servidos e saboreados nas rodas de Juazeirenses, organizou efetivamente incursão ao outro lado. Sequestrou o afoito jovem, trazendo-o para a outra margem. Este, então, foi despido e amarrado com as mãos voltadas para as costas em um pé de umbuzeiro, enquanto Cândido amolava uma faca tipo peixeira numa pedra-pomes a poucos metros do infeliz que a tudo via e amarelava cada vez mais, prevendo pelo fim tenebroso que o esperava.
Cândido fez o serviço!
Aproximou-se do sujeito bem devagar. Enfeixou na mão esquerda, segurando pela base do talo, o cacho dos órgãos genitais do infeliz, repuxando para frente o conjunto de rola associado com os quibas. Com a mão direita, de forma célere e precisa, fez um volteado de trezentos e sessenta graus com a faca. Como se estivesse castrando. No entanto, o contorno macabro foi feito com as costas cegas da faca, fato que o desgraçado só percebeu depois, pois havia desmaiado há muito, envolvido na reciclagem pastosa e fedorenta que acabava de verter, tanto era o medo. Foi assim que Cândido Manuel de Freitas Santana terminou os seus dias com o sugestivo apelido de “Candinho Capador”.
Nada irritava mais os Petrolinenses do que serem chamados de baianos. “Eu sou é homem!”, diziam. A rixa não refletia apenas as farpas assacadas por conta da questão de masculinidade do sexo forte. Os baianos também eram acoimados de preguiçosos, desorganizados, falsos, parvos e levianos, adjetivos pinçados de apenas duas edições de A VOZ DO RIO e que se constituem verdadeiras “baianíticas”. O Catão a desfiar vitupérios de forma renhida e sistemática, era o próprio editor, Betinho da Voz, que, se soubesse latim, certamente diria:
— Quosque tandem Juazeiro abutere patientiam nostram.
(Tradução livre: “até quando Juazeiro abusarás da nossa paciência?”)
Quando José Marcelino da Silva, esbaforido, chegou na Praça Dom Malan, botando os bofes para fora, nada lembrava uma revolução na acepção mais ampla da palavra. Viera correndo sob o alcance do fundo musical, das propagandas e das notícias da rádio de Menininho, que também informava sobre o evento. Esse meio difusor era ouvido em todas as artérias principais da cidade, através das cornetas de alto-falantes pregados nos postes. No entanto, as palavras ecoadas estavam bem distantes da percepção intelectual dele. Perdera tempo? Pois, o que via na praça do centro, lembrava, sim, muito mais um carnaval temporão e não uma revolução. Era só alegria e confraternização. Não entendeu nada. Pensava encontrar armas, cadáveres, brigas, sangue, marchas militares, sacrifícios, presos, feridos, mas o que viu foi festa regada a muitas brahmas, uísque, cachaça e até bisnagas de lança-perfume.
Transeuntes, homens, mulheres, moçoilas, crianças e velhos mendigos (nessa época, os pedintes eram sempre vetustos). Pessoas de todas as idades, de ambos os sexos, de todas as condições sociais e trajando as suas melhores vestes. O povo multicolorido, congregado, comemorava feliz, como se tivesse sobrevivido a uma hecatombe. É verdadeiro que a maioria, a exemplo dele mesmo, nem sequer soubesse efetivamente do que se tratava. Os ambulantes vendiam beijus, cachorros-quentes de carne moída (com muitos tomates crus verdes); pastéis com azeitonas dentro, que eram bons para quebrar dentes; refrescos de raspas de gelo inundadas com as cores tonantes dos xaropes de groselha ou uva, além de outras guloseimas. A sinuca de Milton corria solta, cheia de jogadores malandros jogando bilhar, lançando dados à sorte ou cortando baralhos de cartas. Os políticos riam à toa, muitos deles armados, com armas diferentes das espingardas do avô de José Marcelino da Silva. Os automóveis trafegavam buzinando. Jeeps, alguns sem capota. As rurais Willis. Os dkwmags. As camionetes. Uma station wagon (perua) importada, com carroceria de madeira no lugar da funilaria. Um renault Gordini, que apareceu ninguém sabia de onde. Caminhões possantes, inclusive um antigo e belo FNM (FeNeMê), da Fábrica Nacional de Motores, criada por Getúlio Vargas. Até alguns simcas chambords apareceram. Os automóveis carregavam um montão de felizes proprietários, e outras pessoas que conseguiam se acomodar de carona. Feliz cidade!
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Era o segundo dia de abril de 1964. Era o segundo dia da denominada Revolução Brasileira de 1964, com a tomada do poder pelos militares. O Presidente João Goulart deslocara-se, em movimento tático, para o sul do país, o que acarretou a declaração de vacância do cargo em virtude dele não se encontrar na “sede do Governo”, embora ainda estivesse no solo pátrio da nação que governava. Foi substituído pelo presidente da Câmara e, dias depois, por uma Junta Militar, fugindo em seguida para o exterior. Havia entusiasmo e comemoração, mas nada que parecesse uma revolução, pelo menos nos termos do que José Marcelino entendia o significado do vocábulo naquele momento. Era uma festa sem maior conhecimento de causa pela população, mas era motivo de alegria e pronto. A ordem era aproveitar. Segurança existia de sobra para todos. Além de membros sisudos e circunspectos da polícia militar, distribuídos por toda a área para garantir a lei e a ordem. Ademais, via-se a preparação de um desfile cívico, um encadeamento de automóveis, máquinas e semoventes dos Batalhões de Infantaria e de Engenharia do Exército, radicados na região.
Era também o dia da cooperação alimentar. Era o dia da distribuição de leite pelo programa cooperativo de John F. Kennedy, e caminhões leiteiros da Aliança para o Progresso, estrategicamente posicionados na área, distribuíam o produto em pó a quem quisesse, de graça. A exemplo dele mesmo, José Marcelino da Silva, que abocanhara três pacotes do produto nas mãos de um agente da CIA. A sua mãe, algum tempo depois, relataria com muita segurança e admiração que o leite recebido era bem melhor do que aquele aguado vendido por Joaquim da Burra, useiro e vezeiro na arte de enxertar água da lagoa no leite colhido nas roças. Certa feita, encontraram até piabas boiando nos barris leiteiros de metal que ele levava, escanchado em jumento de carga, um de cada lado, preso em cangalha, e ele reinando no meio, em cima. O fato veio a se constituir uma prova exposta do crime e um deslize profissional quase fatal. José Marcelino da Silva, no decorrer da vida, jamais olvidaria da memória a imagem de Joaquim da Burra descendo desaprumado do animal. Aproximava-se balançante e rodava a perna curta por cima dos barris de aço, retirando o leite do recipiente com o uso de uma espécie de concha. Utilizava, na verdade, como concha, uma lata reaproveitada de flandres de um litro de óleo Havoline, improvisada com a aplicação de um cabo com solda.
Esse mesmo dia, coincidentemente, registrava também a comemoração do retorno da imagem da santa, Nossa Senhora Rainha dos Anjos, padroeira da cidade, que voltava a se fazer presente no nicho que ocupava na igreja matriz, após nebuloso incidente de subtração nunca completamente esclarecido. O editorial escrito por Betinho da Voz, com seu estilo rebuscado e publicado na edição de 02/04/1964, adiante transcrito, dá bem conta dos dois fatos. O retorno apoteótico da santa, cumulativamente com a deflagração do movimento político-militar de 1964:
“Bem-vindas a vocês, bem-vindas!
Que outra palavra poderia expressar melhor o aconchego que suas presenças nos trazem? Feliz coincidência esta que, em meio às agruras em que nos debatíamos, em meio às nossas preces e súplicas veementes, em meio ao tormento da carência e da fome, uniu e trouxe de uma só vez, como se nós ordinários pecadores o merecêssemos, a imaculada Santa e a novel Revolução. O ar está impregnado de um fluido benfazejo que envolve e dilui as nossas tristezas, aniquila as nossas desgraças, extermina as nossas desesperanças, e, concomitantemente, determina a estipulação de um armistício em pleno fragor da aflição do espírito, para gozarmos, na acepção mais lata da palavra, a alegria de viver.
Bem-vindas!
Uma, que traz o pão que alimenta o espírito faminto; o vinho que inebria a alma por demais sóbria; o néctar que robustece a fé em Deus; a certeza da preservação da alegria de ser crente e de ter um comandante. A outra, que atende aos nossos apelos temporais; que fortalece as nossas instituições políticas e sociais; que patrocina o soerguimento da nossa combalida economia; que expurga a incompetência e a corrupção da res pública.
Bem-vindas!
A imagem de Nossa Senhora Rainha dos Anjos, tão sordidamente subtraída do seio da nossa comunidade, mas que, graças aos esforços encetados por nossos lídimos representantes, ora retorna para assumir o lugar que lhe compete junto ao povo que a aguardava ansioso. Que retorno apoteótico! O povo emocionado acompanhava o cortejo triunfal com os olhos fixos na imagem que, lá de cima do andor, ornamentado com flores naturais, inspirava calma, alegria, mansidão de coração e parecia velar diligentemente os fiéis que a seguiam.
A revolução que veio para resgatar a liberdade e a dignidade do cidadão brasileiro, subjugadas através da subversão do sufrágio popular. O movimento político sadio que veio para banir o ateísmo comunista, o populismo de esquerda e o desvirtuamento das instituições nacionais. O engajamento popular que veio para restaurar a pureza do regime republicano, a reconstrução nacional. A revolução que veio para atender aos clamores populares e possibilitar uma participação efetiva do povo na riqueza nacional. UMA REVOLUÇÃO POPULAR.
Bem-vindas! Bem-vindas!”
Esses dois fatos — o teor do discurso constante do editorial da Voz do Rio e o retorno da imagem da santa — tinham, nos bastidores, duas proeminentes figuras locais tilintando os chocalhos. O atinado clérigo e diligente bispo da Diocese de Petrolina, Dom Antônio Campelo de Aragão, dotado de paixão de arqueólogo. Além da sumidade de artista, Celestino Gomes, misto de pintor, escultor e escritor, que rodava a cidade em uma Kombi velha com a lataria cheia de pinturas com motivos da sua bela arte baseada na vida e nas duras paragens sertanejas. O profissional das artes era considerado uma joia do sertão, tão valiosa quanto um olho d’agua. Um primor da localidade.
Tão logo soube do roubo da santa, o afoito bispo não esperou o resultado das providências policiais. Encomendou de logo uma réplica ao artista, que esculpiu, com denodo ímpar, um excelente exemplar para substituição. O resultado, no entanto, apesar da beleza e da justeza da peça confeccionada, não foi aceito pelos fiéis da igreja. “Santo de casa não faz milagre”, afirmou o bispo ilustre, indignado com a repulsa popular, que não recompensou a fria preparação e até a data escolhida do retorno — o mesmo dia da comemoração da Revolução Militar de 1964.
“Não sabem o trabalho que deu para sair tudo direito, no cronograma previsto”, reclamou o bispo.
“Falei para o senhor que era melhor pegar essa imagem que fiz e jogar na beira do rio, deixar que alguém a achasse por acaso. Já saia santificada da água como que por milagre. É assim que o povo gosta, se não for assim vira santo do pau oco”, disse o artista popular do alto da sua sabedoria brejeira, dando lições ao bem letrado bispo, beneficiário de uma acumulação de cultura que se media por milhares de anos.
Celestino Gomes, homem da roça interiorana, que, conhecedor do ditado sobrevindo ainda da Roma imperialista, muito repetido em Petrolina à época (“Quem tem boca vai a Roma”), atravessou, primeiro, o rio e depois os oceanos, e foi efetivamente à cidade dos césares render homenagem às artes milenares. Ao fim do percurso, escreveu dois livretos, se não memoráveis, pelo menos curiosos, a respeito das experiências vividas, quando saiu da roça em direção à cidade de Roma e depois retornou de Roma à roça. “Da roça à antiga Roma” e de “Roma à roça”, foram os títulos cravados para a história.
No final do passeio, José Marcelino da Silva voltava feliz para casa com suas caixas de leite. Caminhava tendo como fundo musical o som dos alto-falantes da rádio de Menininho, noticiando que no Cine Petrolina iria ser exibido, naquela noite, o filme Salomão e a Rainha de Sabá, com Yul Brynner e as famosas atrizes Gina, Lolô e Brígida. Na verdade, era a atriz italiana Gina Lollobrigida. Contagiado pelo clima festivo e completamente alheio ao ambiente de dúvidas e da movimentação política e social que ocorria em todo território nacional, ele definiu o evento com o uso de sua compreensão geral infantil:
— Não era revolução, não! Foi a chegada da Santa, e, também, do leite, concluiu, pragmático, José Marcelino da Silva.
Recebera o laticínio, gratuitamente, das mãos de um senhor branco, alto, caladão, parecido com os tipos da família diferenciada conhecida como “cancão”, na região. Era um norte-americano da CIA, operando nas hostes da Aliança para o Progresso. Os norte-americanos estavam ansiosos para manter os sertanejos felizes a troco de espelhinhos e migalhas. Somente anos depois é que ele saberia que até um incrível motorzinho 0,5 HP, adquirido pelo seu avô por um preço simbólico, foi praticamente uma doação dos estrangeiros. A novidade substituiria a roda-de-farinha e os homens fortes que a mantinham em movimento, quando da colheita sazonal da mandioca. Por essa época, ele possuía uma feliz ignorância. Imaginava que a Ave Maria de Sebastian Bach/Charles Gonoud, que tocava invariavelmente às dezoito horas na rádio de Menininho, na “Hora do Angelus”, e se tornara referência de horário e bênçãos, havia sido composta diretamente no céu pelos anjos do senhor, portadores de harpas douradas. Quando o som do violoncelo, e depois dos oboés, precedidos pelo tilintar vigoroso do piano, invadia as ruas e trazia concomitantemente a voz apascentadora de Maria Callas, ele se encolhia por dentro e pedia a benção aos mais velhos. O primeiro que aparecesse na frente. Com o início do entoar da canção, parecia que logo em seguida, embalados pela harmonia celestial, desceriam cavaleiros do céu montados em nuvens brancas, ou cavalgando carruagens de fogo, trazendo a bordo, em pessoa, a mãe de Jesus Cristo.
Quando, muito tempo depois, soube que a composição era simplesmente coisa dos homens, ele passou a acreditar que poderia realizar uma igual. Não conseguiu, nem tentou, mas adquiriu o hábito de ouvir a Ave Maria (e sempre na voz de Maria Callas) todos os dias, lá pelas dezoito horas. Naqueles momentos, sentia a falta de um velho para pedir a benção. Estava convencido de que o mais velho na área era ele mesmo.
Afirmava existirem duas coisas que nunca faltaram em Petrolina naquela época, e sem as quais a cidade não existiria como a conheceu nos primeiros anos de vida. Primeiro, uma cópia do disco de Maria Callas, na rádio poste de Menininho. Depois, uma cópia do filme A Vida de Jesus, de propriedade de Cordeiro, o dono do Cine Petrolina, morador em Juazeiro, que ele exibia todos os anos por ocasião da semana santa.
No seu entendimento de adulto saudoso, sedento de retorno, passou a defender que ambas as lembranças — o disco de Maria Callas e a cópia do filme A Vida de Jesus — deveriam ser tombadas como patrimônio histórico tangível da cidade.
(José Marcelino da Silva se fazia presente naquele episódio, ocorrido no Cine Petrolina no início dos anos setenta, em que os cinéfilos, irritados, quebraram as instalações do cinema. Até os sofás da sala de espera foram arrastados e lançados na beira do rio, nas imediações do colégio estadual. O problema foi o seguinte. Cordeiro, o dono, tinha outro cinema em Juazeiro, cidade vizinha, e teimava em exibir os mesmos filmes nos dois locais, com pequena diferença de horários. Isto exigia uma boa logística em transportar os rolos dos filmes, separados, de um lado do rio para o outro. Assim, muitas vezes terminava a exibição de um rolo de filme e a plateia ficava aguardando, impaciente, o outro chegar para ser posto na máquina. Até que um dia, os cinéfilos surtaram com a demora e quebraram tudo. Pouco antes do episódio, no início da projeção, ao ouvir o rugido do leão da Metro-Goldwyn-Mayer, ele, acompanhando a plateia em uníssono, havia emitido um chiado característico de saudação, como era costume em Petrolina ao assistir filmes com a logomarca da produtora norte-americana).