Delegar a Autoridade e Manter a Responsabilidade
"Delegar a Autoridade e Manter a Responsabilidade" por Marcelo Henriques de Brito em 26/abril/2020

Delegar a Autoridade e Manter a Responsabilidade

   É sempre sensato e oportuno refletir e debater um princípio de administração que possibilitou o desenvolvimento da civilização organizada com instituições públicas e organizações privadas de diversos tamanhos e níveis de complexidade. O princípio “delegar a autoridade e manter a responsabilidade” consiste em conferir um grau de autonomia específico a cada subordinado inserido em uma hierarquia organizacional para que cada subordinado (no exercício de suas atribuições profissionais associadas ao seu nível hierárquico) possa priorizar, decidir, agir e também ser responsabilizado pelas consequências daquelas prioridades, decisões e ações, sem que o superior ao delegar possa abster-se ou desvincular-se de qualquer responsabilidade por tais consequências. Este princípio vale também para uma equipe (time ou força tarefa), para qual é designado um responsável (coordenador, líder ou facilitador, eufemismos para chefe), o qual, por sua vez, reporta a algum tipo de estrutura superior, que está inserida no contexto de cumprimento de missão e valores de uma instituição pública ou de uma organização privada.

    Assim, o princípio “delegar a autoridade e manter a responsabilidade” é aplicável a todos os chefes (incluindo presidentes, sócios-administradores, líderes, dirigentes, gerentes, ocupantes de cargos executivos etc.) de corporações com fins lucrativos, instituições privadas sem fins lucrativos e também órgãos da administração pública. Cada chefe detém autoridade na medida das suas atribuições e tem que prestar contas de metas e desempenho (“accountability”) e, consequentemente, pode ser responsabilizado no contexto das atribuições do cargo pelas consequências, com a perspectiva de ser punido por desfechos adversos ou premiado por resultados favoráveis. Consciente de que uma responsabilidade é no máximo compartilhada e jamais transferida, um chefe precisa:

  • comunicar-se regular e claramente com o subordinado de forma franca e privada;
  • estar disposto a ouvir com atenção as sugestões, ponderações e críticas do subordinado tão logo seja possível;
  • verificar se o que foi acordado foi plenamente compreendido;
  • acompanhar se o acordado está sendo cumprido de forma adequada e nos prazos estabelecidos;
  • identificar o porquê de eventuais problemas e atrasos de forma a corrigir e mudar procedimentos quando necessário.

    O relacionamento de um chefe com o subordinado transcorre com mais fluidez quando existe confiança, respeito mútuo e alinhamento de objetivos e valores. Consequentemente, a responsabilização de cada chefe faz com que o ocupante de um cargo executivo deseje ter suficiente autonomia (empoderamento) para na sua gestão priorizar, agir e decidir sempre corretamente. Acontece que isto é uma opinião, a qual pode ser implementada de diversas formas por haver diferentes maneiras de abordar, priorizar e resolver problemas envolvendo pessoas (sendo que, aliás, existem vários problemas matemáticos que possibilitam diversas soluções). É precisamente aqui que podem surgir os conflitos entre um chefe e um subordinado, podendo ser polêmico identificar quem tem razão. No contexto de impasse do que seria priorizar, agir e decidir sempre corretamente, o subordinado será voto vencido aplicando o princípio “delegar a autoridade e manter a responsabilidade”, pois a responsabilidade do chefe é maior do que a responsabilidade do subordinado. É preciso lembrar sempre que o chefe delegou ‑ em confiança ‑ uma parte de sua autoridade a seu subordinado, mas reteve toda a responsabilidade. Se discordar de uma diretriz imposta pelo seu chefe, cabe a um subordinado adaptar-se ou haverá uma demissão (forçada ou solicitada), o que pode possibilitar que o subordinado demissionário encontre e exerça outra atividade onde haja mais sintonia com suas crenças, habilidades e competências.

    É possível neste contexto que permaneçam em uma instituição pública ou numa organização privada subordinados desmotivados, amedrontados e até eventualmente irritados, sendo esta ameaça um fator que todo chefe deve ponderar antes de entrar em conflito aberto com um subordinado direto. Ademais, o status do cargo e a remuneração financeira são maiores quanto maior for o cargo de um chefe dentro de uma estrutura hierárquica organizacional e, portanto, cabe a um chefe avaliar se tais recompensas advindas de um cargo mais prestigioso compensam eventuais desgastes em relacionamentos humanos, lembrando sempre que quem ocupa um cargo com mais autoridade para priorizar, decidir e agir, invariavelmente tem também mais responsabilidades, inclusive pelos maiores riscos dos desdobramentos (ou seja, incertezas dos sucessos ou fracassos) aos quais os superiores estão submetidos e com perspectivas de premiação ou punição, tal como já exposto.

    Um demissionário pode estar sendo no mínimo deselegante quando leva a um público externo uma divergência com seu superior, podendo tal conduta ser enquadrada como um desvio ético e eventualmente uma postura ilegal ao desrespeitar a confidencialidade no exercício das funções de um cargo. A sabedoria popular reconhece que “roupa suja se lava em casa”. Todavia, um demissionário pode de fato desejar se livrar de um superior que agiria de forma contrária à ética ou à lei em vigor. Para estas situações, uma instituição pública ou uma organização privada deve ter uma estrutura (designada com termos tais como: “compliance”, “auditoria interna” ou “ouvidoria”) para receber denúncias de violações a fim de que haja uma investigação. Como pode haver subjetividade tanto na avaliação do que seria um desvio ético quanto na interpretação do que seria uma ilegalidade, a denúncia e a investigação devem ser mantidas em sigilo dentro da instituição pública ou da organização privada, pois a denúncia pode ter sido apenas resultante de uma divergência pessoal. Ocorre que podem funcionar de forma ineficaz as estruturas internas para acolher denúncias e sugestões. Neste caso, uma denúncia pública só pode ocorrer no que for possível comprovar de forma incontestável um ato criminoso segundo a legislação em vigor, caso contrário é uma difamação pública de uma presumida e polêmica falha de gestão.

    Compreensivelmente um servidor público pode desejar que o encaminhamento de sua atividade profissional na gestão pública esteja sempre em sintonia com seus ideais de cidadão. Neste caso, este servidor pode sinceramente estar motivado de forma patriótica para priorizar, agir e decidir sempre corretamente, sem necessariamente observar que tal postura pode envolver opiniões, tal como exposto anteriormente. Esta polêmica aumenta quando é suposto que alguém do alto escalão de um governo poderia estar agindo de forma indevida ao desejar ter acesso a informações sensíveis e sigilosas de um servidor público em um nível hierárquico inferior numa linha de autoridade na cadeia de comando. A análise de uma eventual improbidade requer ter em mente que alguém do alto escalão, com mais autoridade para exigir acesso a tais informações, tem também mais responsabilidade e poderá estar no cargo por ter sido eleito em sufrágio democrático, o que requer uma prestação de contas mais complexa e abrangente comparada àquela exigida de um servidor público não eleito, ainda que concursado ou indicado por mérito ou por notório saber.

    Assim, supondo que alguém em um escalão inferior de uma instituição pública ou numa organização privada identifique um problema grave, o desafio e as opções para lidar com tal problema não podem vir a surpreender alguém nos escalões mais altos na linha de comando. Seria inaceitável que as consequências adversas só viriam a ser conhecidas de forma incidental e pela imprensa. A presunção de que alguém nos escalões mais altos na linha de comando agiria de forma incorreta ou ilegal ao ter acesso a informações sensíveis e sigilosas não é necessariamente um fato incontestável e objetivo e, portanto, não justificaria a retenção de informações por subordinados. Sem o respaldo de uma decisão judicial, é uma opinião pessoal pressupor que o alto escalão não agiria em prol do interesse de uma instituição pública ou de uma organização privada. Seria de fato possível responsabilizar um gestor público ou privado por prioridades, decisões e ações equivocadas se ele não puder ter acesso livre e sem constrangimentos a todas as informações de funcionários e servidores em níveis hierárquicos inferiores numa linha de autoridade na cadeia de comando?

    Um presidente de uma corporação ou um gestor público no alto escalão pode ser responsabilizado por problemas na sua cadeia de comando, tais como: danos ambientais que decorreram de uma falha operacional, uma falha de biossegurança que provoca um surto epidemiológico ou fraude financeira de um funcionário. Quem aceitou e assumiu cargos mais altos, aceitou os benefícios das perspectivas de maior vulto, visibilidade e remuneração, mas estava ciente dos riscos, em sintonia com o ditado português: “maior a nau, maior a tempestade”. Acontece que o processo de avaliação dos riscos requer acesso livre e sem qualquer constrangimento a informações externas e internas, que podem ser conhecidas e analisadas com detalhes por funcionários assalariados (remunerados pela atividade com dinheiro público ou privado) em níveis hierárquicos inferiores em uma instituição pública ou em uma organização privada.

    A expansão de instituições públicas e de organizações privadas na nossa civilização decorreu da disseminação do princípio “delegar a autoridade e manter a responsabilidade”, que está na lista abaixo. Esta tríade viabilizou o sucesso da nossa civilização pelo crescimento da população, pela maior expectativa de vida e pelo aumento do conforto de forma geral (a grande maioria - mesmo os mais pobres - vivem melhor do que na Idade Média) (*):

  • o princípio de administração “delegar a autoridade e manter a responsabilidade”;
  • a circulação de meios de pagamento (moeda) para as transações domésticas e internacionais;
  • o desenvolvimento tecnológico associado ao marketing

    Uma civilização estruturada com hierarquias produz mais e melhor em decorrência da divisão do trabalho e de economias de escala. Para haver investimentos na produção e pagamentos por produtos e serviços ofertados, é fundamental uma circulação eficaz de meios de pagamento, cuja disponibilidade precisa crescer no que aumentam as transações, ainda que com produtos e serviços eventualmente considerados desnecessários ou supérfluos. Tais padrões de consumo decorrem em grande parte do desenvolvimento tecnológico associado ao marketing que introduziu novos produtos e serviços antes considerados impossíveis ou inconcebíveis e também ensinou a população a usá-los e valorizá-los muito (como visto nos casos de caixa eletrônicos e Smartphone). Este estímulo ao consumo, o aumento da produção de produtos e serviços e as facilidades das transações financeiras ampliaram em muito as oportunidades de ocupação da população com atividades sofisticadas, prazerosas e intelectuais, além de absorver o aumento populacional e possibilitar a existência de locais com certa estabilidade social apesar da altíssima densidade demográfica (como em grandes centros urbanos).

    A atual quarentena (“lockdown”) no mundo evidencia a genialidade e a complexidade do sistema administrativo, econômico-financeiro, produtivo e mercadológico que a nossa humanidade concebeu e desenvolveu. Acontece que sistemas complexos por melhores que sejam podem infelizmente entrar em colapso por causa de detalhes mínimos, tal como um vírus invisível pode infectar, adoecer e matar o maravilhoso sistema complexo que é o corpo humano que contempla funções que outros seres vivos simplesmente não têm. Por isso, mais do que nunca, temos que proteger o nosso corpo humano durante a pandemia e igualmente salvaguardar o sistema administrativo, econômico-financeiro, produtivo e mercadológico com profundo encantamento e respeito, o que também requer de todos a aceitação, a divulgação e a implementação generalizada do princípio: “delegar a autoridade e manter a responsabilidade”.

 Rio de Janeiro, 26 de abril de 2020

Marcelo Henriques de Brito, Administrador, Tec. Contábil, Engenheiro, Ph.D., CNPI, CFP®

Nota em 26 de abril de 2020:

(*) Estas ideias estão com mais detalhes no livro “Crise e Prosperidade Comercial, Financeira e Política” de minha autoria, que foi publicado em 2003 e cujo conteúdo continua atual desde sua publicação.

#administração #gestão #rh #lideres #chefe #equipe #motivação #hierarquia #delação #pandemia #fiqueemcasa #estudeemcasa #fiquebem #covid19 #homeoffice #wfh #workfromhome

Caro Marcelo, em primeiro lugar, parabéns por esse artigo baseado na delegação da autoridade, aliada à manutenção da responsabilidade, como o princípio básico de administração que possibilitou o desenvolvimento, no mínimo, de nossa civilização ocidental, conforme depreendi de seu texto. Com grande argúcia e sentido de conveniência, nele você fez uso, inclusive, de expressões populares que resolvem, com suficiente clareza, questões que muitas vezes são formuladas de maneira complexa e confusa. Entendendo também esse artigo como uma oportuna e bem estruturada contribuição aos estudos sobre liderança e gestão, fiquei pensando, ao final da leitura,  em que circunstâncias eu próprio poderia me utilizar de algumas de suas afirmações e conceitos para um balizamento técnico em situações de impasse, capazes de me levar a um discernimento correto, que me traria como consequência uma formulação clara em casos de necessária emissão de juízo e, daí, a finalização convincente de um processo decisório. Na prática: à luz de suas reflexões, na atual crise política que vivemos entre o Presidente da República e seu agora ex-Ministro da Justiça, portanto entre o relacionamento de um chefe com o seu subordinado, quem agiu de forma correta ou, pelo menos, menos errada? Houve egoísmo e traição, visando benefício político próprio, por parte do subordinado, ou promessas rompidas pelo chefe, que legalmente nem poderiam ter sido feitas no início, como no caso da "carta branca" dada ao subordinado, quando na realidade ele detinha a prerrogativa de determinadas decisões? Sei que esse 'case' é complexo e não pode ser reduzido a questões tão simples sem a devida consideração às suas tantas variáveis. Mas, acredite, provocado de maneira positiva por seu texto, tais dúvidas não têm outra intenção que não a da curiosidade de utilização de seus argumentos como instrumentos eficientes de avaliação e balizamento. Desde já, obrigado pelo brilhante texto e eventual resposta. Abraço! RR

Marcelo, mais uma vez brilhante em sua exposição! Obrigado por compartilhar seu infinito conhecimento.

Paulo Sérgio Goncalves

Professor - Logística e Operações - Manufatura e Serviços

4 a

Parabéns! Um artigo de fôlego e oportuno! 👏👏👏👏👏👏

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