Democracia Maquiavélica

Democracia Maquiavélica

Por ocasião da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP de 2014, a cidade se vestiu de Millôr para homenagear o escritor, desenhista, jornalista etc. As barracas de feira, ao longo das ruas pavimentadas com as pedras históricas recolhidas de cachoeiras, tentavam tirar renda dos pensamentos que jorraram do Millôr. Em meio a todo tipo de quinquilharia e penduricalho à venda, uma pequena quadrícula de azulejo, com ímã para geladeira, me chamou a atenção. Sobre a cerâmica se lia:

Democracia é quando eu mando em você,
Ditadura é quando você manda em mim.
(Millôr)

Tive uma pequena vertigem e segui o passeio cultural. Mas, como se fora o refrão de grande hit político-social, a ideia pegajosa já estava colada à minha cabeça!

Desde que a ditadura militar passou as rédeas do Brasil para o propalado Estado Democrático de Direito, a carga tributária escalou de 25% do PIB para mais que 36% no apagar das luzes de 2013. Quase o dobro da média dos BRICS! Sem um retorno minimamente expressivo nos segmentos que compõem a infraestrutura de qualquer economia ― educação, saúde, saneamento, transporte, telecomunicações, ciência, tecnologia, inovação... ―, assistimos um escoadouro do dinheiro público. Aqui ou ali, na imprensa, numa operação policial ou nos depoimentos prestados a uma CPI fala-se do extenso esgoto por onde corre a moeda do povo no fétido rio da corrupção. Temos ânsia de vômito, mas comemoramos. Afinal, foi descoberto o bueiro que devassará o sinistro túnel da torpeza! Infeliz suposição. Somente os ralos menores transbordam!

Millôr me transportou a Maquiavel. O pensador renascentista acreditou na democracia e a abandonou. O consentimento do povo na definição dos rumos do Estado remontava a Aristóteles ou a Thomás de Aquino, para quem o governo deveria se comprometer com a felicidade, a virtude, a condução de seus cidadãos ao Reino de Deus. Com “O Príncipe”, Maquiavel rompe com a ufania existencial, espiritual ou religiosa do poder e finca os pés na realidade política e social, na verdade tal como é. Então, “os fins justificam os meios”; a ditadura do Estado Absolutista ganha a teoria política que a põe acima da ética e da moral dominante. Devem prevalecer seus objetivos; a consecução de seus planos não sofre limites!

Mas quem diria que a democracia, erguendo-se do papel e se instalando com galhardia no seio das sociedades, se revelaria mais maquiavélica que o próprio Maquiavel?! O pior é que quem não mordisca um pedaço de poder não conhece quais são os fins e ignora por completo quais são os meios!

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