Derrubar monumentos racistas ou preservar a história e seu patrimônio? A História tem o seu maior valor em si mesma?
Monumento Anhanguera, inaugurado em 1924. Homenagem a Bartolomeu Bueno, chamado de Anhanguera, 'espirito do mal', pelos índios poiás

Derrubar monumentos racistas ou preservar a história e seu patrimônio? A História tem o seu maior valor em si mesma?

Depois do assassinato brutal de George Floyd, nos EUA, passeatas antirracistas ganharam as ruas de muitos países. Em Bristol, no Reino Unido, manifestantes jogaram no rio a estátua de um antigo traficante de escravos e, na Bélgica, a estátua de Leopoldo II, rei responsável por um massacre no Congo, também foi arrancada. Em 2017, nos EUA, houve briga e morte no confronto de grupos a favor e contra a retirada da estátua de um general das forças sulistas, defensores da escravidão, na Guerra Civil (1861-1865).

A questão chegou ao Brasil e recaiu sobre as estátuas e símbolos bandeirantes. Por muito tempo, considerados heróis do progresso, desbravadores de terras selvagens e descobridores de ouro, hoje é consenso que esses homens, que lideravam grandes grupos armados, invadiam tribos indígenas e grupos quilombolas para escravizar e vender pessoas. Derrubar a estátua do bandeirante Borba Gato ou destruir o Monumento às Bandeiras, o famoso empurra-empurra, em São Paulo está dividindo a opinião de movimentos, jornalistas, pensadores e historiadores.

Diante da questão, muitos historiadores reagiram contrários à ideia de destruição. Ao pensar que as políticas de preservação do patrimônio e memória ganharam impulso somente na última década, estudiosos e pesquisadores lastimam a perda desses artefatos históricos. Valores artísticos, chances de estudos e ressignificações seriam perdidas. Fala-se sobre a não eficácia do ‘apagão’ da história como forma ideal de lidar com o passado. Paulo Garcez Marins, curador do Museu Paulista (Museu do Ipiranga) e professor da USP, em entrevista concedida recentemente, disse da importância da discussão dessa memória bandeirante como um método mais eficaz do que, por exemplo, tirar o objeto incômodo da sala, como se aquilo nunca tivesse existido.

Depois desses argumentos, então por que insistir na derrubada dos machões de pedra, cheios de pose e excrementos de pombo? Por que não deixá-las para serem preservadas, estudadas e ressignificadas?

Homens criam monumentos em praça pública para enaltecer outros homens que legaram feitos, empreendimentos ou construções que beneficiaram, principalmente, os primeiros e sua prole. Geralmente, o reverenciador e o reverenciado possuem uma relação comum por terem ocupado, em diferentes momentos históricos, posições de poder dentro da mesma sociedade. Mediada por um artista de renome, o monumento chancela essa aliança de poder, entre passado e presente, objetivando a mesma ocupação no futuro. Ao existirem em praça pública, a ideia é alçá-los ao mais alto bastião para serem admirados como heróis, e seus atributos e visões de mundo capitaneariam a sociedade nas águas do tempo. No caso de São Paulo e dos bandeirantes, exemplo de coragem, destreza e valentia empreendedora para desbravar as florestas fechadas e todos seus perigos em nome do estabelecimento da civilização e comércio perante a selvageria.

Pois bem, a narrativa é bonita. Mas e se nós não queremos mais chegar ao futuro delineado pelos homenageados e seus patrocinadores? É fato que a sociedade mudou e uma nova ética está posta. Grandes feitos, desenvolvimentos, conquistas e elaborações de impacto social do presente e passado, por mais importantes que possam ser, devem ser questionados se infringem ou não esse novo imperativo ético. Se tais feitos são controversos, deve-se pensar na visibilidade dessas memórias em praça pública, o mais admirável palco da democracia. Se, no tempo dos bandeirantes e da sua heroicização, não existia a preocupação e empatia com grupos sociais distantes do poder hegemônico - como negros e índios -, hoje existe. Antes, o heroísmo desses ‘eternos’ homens não foi manchado pelo fato de antepassados de pessoas, tidas como ‘inferiores’, terem sido escravizadas. Quando se tratava dos grandes e sua força para “desbravar a História”, todo o resto era nada. Porém, a empatia passou a existir por esse sofrimento e luta social e abalou a respeitabilidade de outrora pelos ‘grandes’ monumentalizados.

Sobre a História, a responsável por ser mestra da vida ou marcar as pegadas do homem na alameda do tempo ou reveladora dos discursos que atravessam nossos corpos e nos tomam, algumas considerações precisam ser tecidas. Segundo Nietzsche, os historiadores modernos, tomados pelo senso científico dogmático da época, eram tolos em acreditar no resgate do passado na sua totalidade global. Para ele, tais homens estariam mais perdidos do que nunca. Pois, submersos numa gula sem fim por dados e documentos, eram vassalos de uma objetividade tosca que os incapacitava à relevância. Como ermitões esses não atacavam, afirmavam ou negavam mais nada e, apenas, descreviam.

O que o filósofo bigodudo pode nos dizer é que nós, historiadores, e nossas instituições não podemos cair novamente no erro de alegar uma pretensa ‘objetividade científica’ a favor da História e sermos inócuos diante de inquietações sociais. Não podemos esquecer que a escrita do passado nunca foi neutra. Documentar e monumentar sempre requereu um processo de escolha calcada em diretrizes institucionais que escondem, na sua maioria, interesses pessoais, afinidades políticas e aproximações de caráter social, partidário ou ideológico. Em nome dessa ânsia pelo guardar e reconstruir o passado, não se pode achar que o mausoléu bandeirante que adorna nossa democracia é intocável. A paixão nostálgica não pode arrefecer uma causa política por justiça social.    

A iniciativa de ressignificação do patrimônio e problematização dessa memória heroicizada, sem dúvida, deve fazer parte da atuação de arquivos, órgãos de preservação e, também, diretrizes de sistemas educacionais. Contudo, em alguns casos tal política pode parecer conciliatória com tais ‘mitos fundadores’ e levemente tolerante com seus modus barbárie sobre carne e sangue de pessoas escravizadas. Visto a visibilidade privilegiada de tais obras no cenário público, uma ruptura e aversão sistemática a esse passado heroicizado pode ser incompleta.

A destruição de monumentos públicos que enaltecem um passado indesejado está longe de ser algo novo. Isso se deu, por exemplo, na Revolução francesa e Revolução Russa de 1917 com a destruição de símbolos monárquicos, na queda da União Soviética com as estátuas de Lenin e Stálin e tantos outros. Sabe-se, é óbvio, que a cidade de São Paulo e os paulistas não deixariam de ser violentos e preconceituosos se fosse derrubado a estátua do bandeirante Borba Gato ou trocassem o nome da Rodovia Anhanguera ou Rodovia Bandeirantes. Um exemplo disso podem ser os norte-americanos que, desde 2015, retiraram quase 60 monumentos de alusão à escravidão, e isso não impediu que o policial de Minneapolis colocasse seu joelho contra o pescoço George Floyd até sua morte. Apesar do resultado, talvez, pouco prático da uma derrubada de estátua, romper com raízes tão bravas, profundas e fortes nos exigirão esforços dos mais variados, tanto no campo prático como no simbólico.

O estado de direitos e de reconhecimento de injustiças sociais históricas precisa tomar decisões duras se quer realmente ser efetivo. Continuar a concessão de espaços públicos tão avultosos a esses monumentos pode nos tirar a chance de usá-los para novas cerimônias e construções que selem um novo pacto ético e social. Isso não significa o apoio a um movimento iconoclasta irracional, como já se deu em outros momentos da história. Significa marcar cerimônias de remoção, junto com movimentos sociais e sociedade civil, de peças pontuais que poderiam continuar preservadas e estudadas em museus.

Acredito que os valores históricos e artísticos não devam ser santificados. Se eles não podem estar abaixo das causas sociais, no mínimo devem estar em constante diálogo e concessões. Essa discussão é longa, visto que nem sabemos ainda o que falar para as nossas crianças sobre os adjetivos de Lobato à Tia Nastácia, como “negra de estimação”, “macaca de carvão” e "preta beiçuda". Peço para os historiadores serem ativos nessas questões para não deixar que Nietzsche reine absoluto quando diz que não passamos de eunucos, que apesar de guardiões do harém jamais fecundaríamos nada.

Bruno Rezende Spadotto

Pesquisador (Pós-doc) no Departamento de Geografia e Planejamento Ambiental, IGCE, UNESP

4 a

Muito bom, irmão. Gostei de lei isso. Parabéns!

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