Desconstruindo o velho sábio
É preciso desconstruir já o estereótipo do velho sábio. Esta é uma percepção que fazia sentido na Antiguidade e Idade Média, mas não se encaixa na contemporaneidade, embora ela ainda circule pelo nosso imaginário. Basta pensar em personagens como o Mestre dos Magos, de “Caverna do Dragão”, ou Gandalf, de “Senhor dos Anéis”, universo fictício claramente inspirado no período medieval. A desconstrução não significa, de forma alguma, um ataque à terceira idade. Não! Com os anos é possível acumular muita sabedoria, mas, lamentavelmente, em alguns casos (espero que minoritários) também se pode acumular muita burrice.
Na Antiguidade e Idade Média, envelhecer era uma tarefa difícil. Tanto que a expectativa de vida era mais baixa (pelo menos na Europa). Era preciso ser bom em alguma coisa para envelhecer: bom em lutar ou, quem sabe, bom em correr da luta; bom em manter certa diplomacia para preservar a própria vida. Havia pestes, doenças e poucas respostas da medicina. Então era preciso também ser bom em manter a própria saúde de alguma forma. Viver era bem difícil. Envelhecer era privilégio. De fato era preciso ser sábio (ou rico).
Aí vêm a Idade Moderna, o iluminismo, a ciência moderna, o estado moderno… Figuras como Galileu e Copérnico possibilitaram o avanço de métodos científicos, que se refletiriam em ganhos para a medicina, entendimento do mundo microscópico de vírus e bactérias, desenvolvimento de vacinas, popularização de noções básicas de higiene, como a ocorrida por meio das pesquisas da enfermeira Florence Nightingale, pioneira da enfermagem moderna, etc.
O Direito também se desenvolveu, com novas percepções de mundo e sociedade, a fim de se evitar a barbárie. Os chamados “autores contratualistas” foram fundamentais nesse processo. Um deles era Thomas Hobbes. Se “o homem é lobo do homem”, como ele defendia, então seria necessária a consolidação de um estado, com um regramento que possibilitaria um convívio minimamente harmônico em sociedade. Mais tarde, Montesquieu, um dos principais pensadores do iluminismo, em sua obra “Espírito das leis” (1748), propôs a tripartição do poder em Legislativo, Judiciário, e Executivo, como forma de evitar abusos por parte das autoridades. Duzentos anos depois, em 1948, um outro avanço jurídico e civilizatório seria a Declaração dos Direitos Humanos. Também no século 20, surge o estado de bem-estar social e a ideia de um estado provedor de recursos básicos, como saúde e educação.
Assim chegamos ao século 21 em um cenário que, apesar das consideráveis variáveis quanto à localidade e classe social, é mais fácil envelhecer do que era em séculos anteriores. Até idiotas conseguem, bastando para isso usufruírem das benesses que nem sabem que obtiveram. Afinal, são idiotas! E, como tais, para piorar mais ainda iniciam uma cruzada contra tudo aquilo que os possibilitou chegar à terceira idade. Porque idiota que é idiota tem que dar tiro no pé. Lutam contra o estado moderno, suas instituições democráticas, sua interdependência e tripartição de poderes, seu processo eleitoral. Lutam também contra a ciência, contra a vacina. Enfim, lutam contra a modernidade e o iluminismo, embora pensem que estão lutando contra outras coisas.
Mas esses guerreiros de Whatsapp não aguentam 15 segundos de spray de pimenta, um tapa na cara dado por um PM ou duas refeições de macarrão com nuggets ou com salsicha. Imagina se estivessem no meio de um ataque viking em pleno medievo!
Vida longa aos velhos sábios! Temos muito o que aprender com eles. Quanto aos outros, o lance é romper o ciclo, estudar história, investir em educação midiática e pedir a um neto ou neta que não tenha sido contaminado(a) pelo vovô e vovó para monitorá-los no tempo de uso de celular.
Referências:
Iluminismo: o que foi e qual a sua importância?
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