A DESONESTIDADE NÃO É INEVITÁVEL: questões para o combate ao capitalismo de vigilância no Brasil - Parte 2

2. O CAPITALISMO DE VIGILÂNCIA: O DESDOBRAMENTO DESONESTO DO CAPITALISMO INFORMACIONAL E SUAS REPERCUSSÕES COLONIAIS

This means that technological inevitability does not exist. (ZUBOFF, 2018, p. 15)
[...] we now pay for our own domination .(ZUBOFF, 2018, p. 10)

Antes de abordarmos desdobramentos nefastos da vigilância ilimitada das big techs, é importante recordar que o capitalismo informacional passou por um processo de digitalização e, durante a primeira década do século XXI, estabeleceu os fundamentos para o surgimento de um mercado de dados pessoais, que não resultou exclusivamente da evolução das tecnologias digitais (SILVEIRA, 2021).

Na literatura, conforme leciona o professor Hoffmann-Riem, os dados são considerados sinais ou símbolos de mensagens que podem ser formalizados e reproduzidos de forma arbitrária, além de serem facilmente transportados com o auxílio de meios técnicos apropriados. Os dados, por si só, não possuem significado, mas podem ser portadores de informações. O significado é atribuído a eles por meio do processo comunicativo, ou seja, quando dados são enviados por um remetente e interpretados pelo destinatário, tornando-se o objeto de comunicação. Isso ocorre entre humanos, entre humanos e máquinas ou entre máquinas. Podemos identificar uma pessoa de diversas formas (e dados), por “um identificador como um nome, um número de identificação, dados de localização, um identificador on-line ou um ou mais fatores específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, econômica, cultural ou social dessa pessoa” (HOFFMANN-RIEM, 2022, p. 52-53).

O professor alemão continua seu alerta, observando que, diferente de outros insumos produtivos, a desmaterialização dos dados digitais facilita a ocultação dos resultados de seu processamento pelas empresas. Ainda, seu caráter sui generis e seu tratamento “são pontos de referência para sua particular importância econômica, mas também política, cultural, ecológica e social em muitas áreas da vida social” (HOFFMANN-RIEM, 2022, p. 65). Dados são gerados por dispositivos concebidos, desenhados e modelados especificamente para permitir sua extração.

A gênese do desdobramento do mercado de dados digitais se dá em 2004, quando a Google examinou correspondências privas de seu produto gmail para a geração de anúncios de publicidade direcionados. Muitos usuários se sentiram repelidos e ultrajados, enquanto outros ficaram confusos, fato é que a empresa deixou claro que aproveitaria essa situação, uma vez que esses anúncios geravam lucros. 

Google foi assim, a pioneira do capitalismo de vigilância , termo cunhado por Shoshana Zuboff, referindo-se à mercantilização de dados pessoais por meio da vigilância com fins lucrativos. Essa prática envolve a coleta e análise de grandes quantidades de dados pessoais de indivíduos, muitas vezes sem seu conhecimento ou consentimento. Seu comportamento foi imitado por novas empresas digitais, que tornaram modelo de negócio a monetização de dados coletados de forma oculta de seus usuários. Hoje as plataformas digitais realizam a catalogação e análise de todas as informações coletadas, empregando algoritmos de alta complexidade com o objetivo de identificar o perfil psicológico da pessoa-usuário. A partir dessas informações, é construída artificialmente uma identidade dessas pessoas envolvidas, que posteriormente é negociada no mercado digital visando o lucro.

O capitalismo de vigilância, portanto, diverge do capitalismo digital ou informacional, enquanto este indica  “um conjunto específico de tecnologias”, aquele descreve “um processo socioeconômico baseado na coleta generalizada de dados” (SILVEIRA, 2021, p. 42). Nos referimos, assim, a um modelo de mercado que emprega a tecnologia, não à tecnologia de dados em si . Não obstante, a ascensão do capitalismo de vigilância foi possibilitada por avanços tecnológicos, particularmente no campo da análise algoritmica de big data e inteligência artificial. 

Aliado à crença social da inevitabilidade tecnológica, identificamos o solucionismo digital, baseado na crença da certeza dos algoritmos. Algoritmos são modelos matemáticos criados por pessoas falíveis. Modelos matemáticos são fórmulas que visam a simplificação de um domínio de dados. A escolha de quais dados são importantes para o modelo e quais não são é humana, portanto,  defectível, ideológica, enviesada. Conforme sintetiza Cathy O’Neil, “modelos são opiniões internalizadas na matemática” (O’NEIL, 2016. p. 21).

O objetivo dessa opinião? Normalmente é  identificar perfis de consumidores para prever seu comportamento e características que o indicam como potencial comprador ou tomador de determinado produto ou serviço. “Prever necessidades, antever afetos, predizer gostos, presumir vontades são objetivos cada vez mais presentes no capitalismo de vigilância que vai transformando a sociedade em agregações de predição” (SILVEIRA, 2020, p. 165).

Márcia Tiburi analisa a precarização da linguagem como risco da  vida digital a partir do fenômeno da incomunicabilidade e da medialidade. A primeira, pensada em dois níveis: i) a crise dos encontros (termo spinoziano), ainda que a sociedade tenha potencializado a ideia do contato; e ii) a incomunicabilidade atravessada pela “racionalidade técnica que nos ‘conecta’, e, ao mesmo tempo, vem empobrecendo a linguagem e, dessa forma, o pensamento e a sensibilidade, e controlando as narrativas coletivas para os objetivos do poder”. Tal incomunicabilidade multidimensional contribui para o fenômeno da medialidade, uma nova forma de ser submetida à racionalidade técnica. Conclui a autora que “nesse apagamento do nosso ser, fomos nós mesmos transformados em veículos de comunicação, em meros transmissores de mensagens. Somos hoje menos emissores e receptores de mensagens, somos ‘mediadores’” (2020, p. 91) . Anotamos que a ideia de mediadores de Tiburi e a perda de nós mesmos (ideal da modernidade) é resultante das dinâmicas de vigilância aqui exploradas.

Essa mediação aniquila, em realidade, as liberdade individuais, na medida em que o comportamento dos indivíduos é desenhado, incentivado e manipulado à sua revelia. Ademais, as mensagens mediadas por nós-usuários não tem compromisso com a verdade e o movimento de desinformação ocorrido durante a pandemia de COVID-19 demonstrou por meio do negacionismo científico. O fenômeno da pós-verdade, alimentado pelas fake news, desestabiliza o repertório do senso comum da sociedade com a incerteza (TAVARES et al, 2022).

A vigilância por vezes é suavizada no plano do consumo , porém a ele não se restringe. Nessa banda, Byung-Chul Han destaca o caráter psicopolítico dessas tecnologias, por permitir acessar a lógica inconsciente do comportamento social das massas. Em contraponto ao regime disciplinar, o autor denomina “regime de informação a forma de dominação na qual informações e seu processamento por algoritmos e inteligência artificial determinam decisivamente processos sociais, econômicos e políticos”. Ainda, este nem tão novo regime “está acoplado ao capitalismo da informação, que se desenvolve em capitalismo da vigilância e que degrada os seres humanos em gado, em animais de consumo e dados" (HAN, 2022) . Por esse motivo, Shoshana Zuboff o menciona como um desdobramento desonesto do capitalismo informacional. 

Tal desonestidade (e outras semelhantes) é abordada por Donski e Bauman em seu trabalho dedicado mal líquido, que “se apresenta como uma aceleração da vida aparentemente neutra e imparcial [...]; além disso,o mal líquido avança disfarçado de ausência e impossibilidade de alternartivas. O cidadão torna-se consumidor e a neutralidade de valores oculta a desmobilização” (DONSKIS, 2019, p. 13). Essa aceleração é também excludente, apresenta-se como único caminho possível: não aderir à determinadas plataformas tecnológicas, ou seja, negar a geração de (seus) dados, relega o indivíduo às margens da participação política, cidadã e no mercado de trabalho.




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