Diário de bordo #2: meus dias de silêncio na Tailândia
Fazia uma semana que eu passava os dias dentro de um pequeno quarto de hotel em Bangkok. Depois de sofrer um acidente de moto na ilha Ko Tao e lesionar a musculatura do meu braço esquerdo, voltei à capital para me consultar em um hospital com mais estrutura do que o pequeno - e único - posto de saúde da ilha.
A recomendação médica era de repouso absoluto, por 7 dias, e retorno ao hospital para um novo exame. Depois de ser liberada para viajar - com os devidos cuidados - preparei uma mochila com poucas roupas e fui para Chiang Mai, no norte do país. Três dias depois, saía em direção a um monastério zen-budista "escondido" na região montanhosa da Tailândia.
O monastério, chamado Wat Pa Tam Wua, é situado exatamente no meio do caminho entre Chiang Mai e Pai - um vilarejo charmoso e bucólico, de poucas ruas, mas muitos turistas. A distância entre os dois locais, em quilômetros, é pequena. Mas o trecho sinuoso, com mais de 700 curtas (é isso mesmo!), faz a viagem durar muito tempo! Por saber que o trajeto até Pai seria uma aventura, decidi dividir a viagem e passar alguns dias no monastério. Tomei o remédio pra evitar o enjoo no caminho, peguei a van e fui.
O Wat Pa Tam Wua fica em uma área muito verde, bem preservada, perto do distrito de Mae Hong Son. Ele tem uma estrutura grande, mas como não cobra nenhum centavo pela hospedagem e pelas práticas de meditação, pede para que os visitantes escrevam com antecedência, falando do interesse em conhecer e permanecer no local. O prazo máximo para a hospedagem é de uma semana e a contrapartida é estar presente em todas as práticas de meditação – três, por dia – e nas cerimônias para oferecer comida aos monges. É preciso, também, fazer uma hora diária de seva (que é o serviço voluntário), ajudando a manter limpos os quartos, salões e cozinha.
Há quartos individuais e dormitórios e eu, por sorte ou acaso, fui acomodada em um quarto só para mim. A estrutura é bem simples, mas muito limpa e organizada. As rotinas diárias começam às 6h da manhã e vão até as 21h. O contato com os monges é pequeno, apenas durante as aulas de meditação e cerimônias.
A prática de meditação é a Vipassana, que, de uma forma bem resumida, está muito ligada ao que hoje conhecemos como mindfulness. A gente medita sentado, deitado ou caminhando. E aprende a se tornar um observador da mente, para não ser tão tomado pelos pensamentos e emoções. Não existe nenhuma exigência em fazer o retiro em silêncio, mas eu decidi colocar esse desafio a mais na minha experiência.
Na mesma mesa em que é feito o check-in, ficam os cartões que a gente coloca na roupa para avisar as outras pessoas que estaremos em silêncio. Eu quis começar logo de cara, então ajeitei minhas coisas no quarto, desliguei o celular e pronto, fim de papo! No começo foi super tranquilo, principalmente porque as pessoas viam a minha plaquinha e já sabiam que eu estaria por perto, mas sem dizer uma palavra.
O exercício de ouvir, muito mais do que falar, já é algo que tenho feito há algum tempo e, pra ser sincera, me dá bastante prazer. Gosto muito de escutar histórias, saber o que as pessoas pensam, como veem o mundo, etc. Mas ficar em silêncio vai além de simplesmente não falar. Abrir mão da comunicação em prol de um mergulho interno profundo revela muitos detalhes da nossa personalidade – e é aí que a gente tem grandes surpresas!
A primeira, que percebi em mim, é que os rituais de cumprimentar e puxar pequenas conversas com as pessoas não são apenas uma questão de gentileza e educação. Acredito que exista uma necessidade grande, em todo ser humano, de se conectar ao outro e, com isso, a gente não só cumpre papéis sociais, como cria alguns hábitos e mantém comportamentos para viabilizar a vida social e ganhar a simpatia e o afeto das pessoas. Quando me percebi "impedida" de manter esses rituais sociais, senti um certo vazio e fiquei me perguntando como seria me relacionar com quem eu encontro todos os dias sem poder expressar minha reação ao vê-los.
Sim, nós podemos nos comunicar de diversas formas além das palavras. Mas a proposta do silêncio, naquele momento, era exatamente romper com todo tipo de comunicação. Era uma espécie de invisibilidade - não porque eu era ignorada, mas porque eu me convidava constantemente a conter os impulsos de me expressar.
A segunda ficha que caiu – e essa caiu bem no colo, de uma vez só – foi a de como eu “comprei” esse discurso tão disseminado de que precisamos ser proativos – e levei isso muito a sério! Eu via as pessoas se perguntando como fazer determinada coisa, ir a determinado local, pedindo informações a respeito do que eu conhecia, e sentia um impulso muito grande de responder, de agir. De novo, não há nada errado em ajudar alguém, principalmente quando a pessoa pede ajuda, mas o que eu vi é que eu sou tão acostumada em fazer, em apresentar soluções, que certamente já “atropelei” muita gente que ficaria bastante satisfeita em também ser útil e descobrir, por si só – ou com a ajuda de outras pessoas – o que estava precisando ou buscando.
Por fim, percebi que não falar – ou, pelo menos, não falar em excesso – deixa a gente menos cansada - e com mais foco na ação. Quantas vezes, por exemplo, esvaziamos nosso incômodo e indignação em uma postagem nas redes sociais e sentimos aquele alívio - como se tivéssemos realmente caminhado em direção à alguma mudança ou proposta com repercussão real de transformação?!
Eu entendi a energia da fala como um combustível que pode ir desaparecendo à medida que "soltamos o verbo". Eu sou jornalista e sei o quanto a fala é importante. Chega a ser crucial, em alguns momentos, e se torna mais investimento do que desperdício de energia. Mas existem inúmeras situações onde a fala é desnecessária ou exagerada. E por focar tempo e atenção a ela, perdemos de vista as outras etapas que nos direcionam à ação.
Isso fez tanto sentido pra mim que, até hoje, volta e meia me calo pra sentir se é hora de direcionar a energia para as palavras ou se é melhor manter a boca fechada e colocar a mão na massa.
* artigo escrito durante meu ano sabático, em 2018, e publicado no site Brasileiras Pelo Mundo.
* grande parte da minha viagem foi compartilhada no meu canal no Youtube. E no meu perfil no Instagram.
*sou graduada em jornalismo, trabalhei por mais de 15 anos em emissoras de tv e atualmente participo de formações em Comunicação Não-Violenta.