Disseminando conhecimento
Estamos quase em Dezembro, o que para muitos significa começar a fazer um balanço do ano que passou. Fazer uma retrospectiva de 2020 significa rever um ano atípico, pesado, incerto, penoso…nem que eu usasse todos os adjetivos do dicionário eu conseguiria expressar o que foram os últimos 12 meses. Cada um de nós sabe bem como foi, então vou parar por aqui.
Prefiro me ater aos momentos positivos de 2020 (sim, eles existiram!), que me trouxeram alegria e um senso de “propósito”, aquela palavra que volta e meia nos enche de dúvida e nos faz perguntar porque acordamos pela manhã.
Caso me perguntassem hoje: “Roberta, qual é o seu propósito?” eu passaria alguns segundos pensando, gaguejaria um pouco, falaria algo um pouco convincente, mas na verdade não teria nada muito concreto pra falar. A verdade é que ainda não sei qual é a minha missão, o meu propósito, e acredito que há muitos millennials (e boomers) como eu na mesma situação, não?
Entretanto, 2020 trouxe alguns momentos que posso dizer que foram quase, mas quaaase um “Eureka!” ou como se fala em inglês, um “A-ha moment”. Aquele momento em que você desconfia que pode ter tido uma resposta, um momento de inspiração. Confesso que ainda não sei se foi isso mesmo ou se é só a falta de sol aqui na Bélgica que está mexendo com a minha cabeça. Prefiro a primeira opção.
Em meados de Agosto recebi meu primeiro convite para ser professora. Minha aula, sobre Design Systems, faria parte de um ciclo formativo em tecnologia voltado para mulheres negras composto por 10 aulas, sendo cada uma delas ministrada por um profissional diferente.
Fiquei extremamente feliz com o convite, feito pela plataforma “Minas Programam”, uma organização que visa tornar o segmento da tecnologia um ambiente mais diverso em termos de gênero e raça.
Dar uma aula para qualquer grupo já seria uma honra pra mim, mas poder compartilhar o que sei com outras meninas negras, minorias como eu, foi especial. Desde muito cedo, sempre fui a única menina negra em grande parte dos lugares em que eu frequentava. Primeiramente na escola, depois na faculdade, nas festas e mais tarde no meu ambiente de trabalho. De todos os lugares pelos quais passei, entre editoras, agências de publicidade e grandes corporações, eu via no máximo um ou outro colega negro.
Conforme fui migrando para a área do UI e UX percebi que a quantidade de profissionais negros ia diminuindo (se é que isso era possível), comprovando o óbvio: a área da tecnologia ainda é um ambiente extremamente branco e masculino.
Ainda vivemos sob um modelo social – sim, você mesmo patriarcado – que insiste em querer ver nós, mulheres negras, na base da pirâmide econômica, ainda servindo, ainda recebendo os mais baixos salários, ainda em situações vulneráveis. Por essa razão, poder de alguma forma (ainda que pequena, eu sei) contribuir para um movimento contrário a esse, estabelecido lá trás no Brasil Colônia, tem um valor muito grande pra mim. Sendo a questão racial no Brasil uma ferida (ainda) aberta, longe de ser estancada, é importante pra mim contribuir de certa forma para uma mudança, mesmo estando longe.
Por mais segura e autoconfiante que uma pessoa possa ser, é desafiador ser uma minoria no seu ambiente de trabalho e não deixar que esse fator interfira no seu desempenho. Por esse motivo, enquanto preparava a aula, decidi estruturá-la em duas partes: a primeira, mais técnica e direta, seria para falar sobre o tema central, Design Systems. A segunda, mais subjetiva, mas não menos importante, deveria abordar questões relacionadas a construção da autoconfiança, empoderamento e a necessidade de ocupar espaços ainda pouco diversos com segurança e leveza. Digo leveza, porque essa questão – a de ser uma minoria – não pode ser levada como uma bola de ferro, pesada, carregada de dor ou angústia.
O nervosismo inicial em falar com rostos até então desconhecidos, ainda que pelo Zoom, deu lugar a uma sensação incrível de troca e mais ainda, a um senso de propósito. Lembram do “aha-moment” do começo do texto? Pois é, essa aula se mostrou para mim como uma pista de que compartilhar conhecimento e trocar experiências pode ser um caminho pro futuro (um dos tantos que ainda penso em trilhar).
Preciso dizer que as meninas participantes foram incríveis e fizeram toda diferença na minha experiência como “professora” – coloquei aspas aqui porque ainda não me sinto como tal, mas vou trabalhar isso ;). O que começou como uma aula acabou terminando como uma conversa, num ambiente extremamente acolhedor.
Elaborar a aula foi um processo enriquecedor pra mim, pela pesquisa, pelo estudo, assim como pelo exercício de aprimorar minha fala e de estruturar minhas ideias de forma que todas pudessem seguir a minha linha de raciocínio. A melhor parte de toda a experiência, porém, aconteceu nos dias seguintes. Recebi relatos de algumas alunas compartilhando como a aula tinha melhorado a percepção delas em relação ao Design, ou despertado um interesse maior pela área, ou simplesmente acrescentado algo à formação delas. Ao final do curso, semanas atrás, tivemos uma reunião final onde as meninas participantes puderam compartilhar suas impressões e foi recompensador ver o impacto que o ciclo formativo teve não só sobre o conhecimento técnico delas mas também na formação pessoal de cada uma.
Ter algum impacto sobre o desenvolvimento de outra pessoa é inspirador. Às vezes, uma frase, uma recomendação de um livro ou um conselho podem mudar completamente a trajetória de alguém. Ainda que no meu caso eu tenha feito uma pequena contribuição na formação de outras pessoas, já me sinto realizada porque acredito no conhecimento como agente de transformação social.
Imagino que todos vocês sabem bem o que é “síndrome de impostor”, aquela voz inconveniente, aquela “persona non-grata” que mora na nossa cabeça e insiste em nos dizer que nem somos tão bons assim, que nosso trabalho é mediano (ou ruim mesmo), que qualquer um faz o que você fazemos, enfim, vocês sabem onde quero chegar. Apesar de ter construído a minha autoconfiança ao longo dos anos, ainda ouço, às vezes, uma certa voz que me diz “Todo mundo sabe o que você sabe, não vale a pena compartilhar”. Enquanto elaborava minha aula, entrei várias vezes em um embate comigo mesma, temendo falar o “óbvio” e não entregar nada novo, quando na verdade eu nem sabia que aquele pensamento desvalidava todo o conhecimento que eu levei alguns anos pra adquirir.
Há pessoas na internet ensinando a fazer arroz, a cama e até um rabo de cavalo e tá tudo bem, ninguém acha estranho. Porque achar que algo um pouco mais complexo do que isso – no meu caso, como construir Design Systems bem estruturados, por exemplo - seria algo de conhecimento geral? Imagino que não só eu, como várias pessoas pensam muito antes de postar ou falar algo porque partimos do pressuposto de que “vamos chover no molhado” ou “todo mundo já sabe isso”.
Não tenham vergonha de compartilhar conhecimento, afinal, nada é tão óbvio que não valha a pena ser disseminado. A mesma informação que é ridiculamente banal para uns pode ser extremamente relevante para outros e talvez seja essa a grande beleza de compartilhar o que se sabe.
Entender que o seu conhecimento e a sua experiência de vida podem contribuir para a formação e evolução de outra pessoa é algo muito valioso. Isso porque o progresso do outro nesse caso representa mais do que um ganho individual, ele simboliza uma vitória coletiva, o desenvolvimento de todo um grupo e essa é sim, uma causa muito nobre.
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