doar em tempos de coerência
Foto: Joana Mortari

doar em tempos de coerência

Na maior onda de calor da Europa deste ano até o momento, estavamos na arena do Coliseu, em Roma. Entre gotas de suor escorrendo por todos os cantos, nos maravilhamos com a possibilidade de pisar em terras e histórias de outros tempos. O guia aponta escritos nas arquibancadas mostrando os nomes dos romanos que contribuiram para a contrução do Coliseu. A prática de reconhecimento da doação pela atribuição do próprio nome é milenar. Foram os romanos que a fizeram famosa. Gaius Maecenas, conselheiro de um dos primeiros imperadores romanos, financiou vários dos grandes poetas da época, inclusive Virgílio e Horácio, e dele nasce a palavra mecenato. Para o guia, os nomes da impressionante arquibancada representam os primórdios do marketing; a filantropia não faz parte do seu repertório. Ou, talvez, ambas leituras sejam a mesma leitura. 

"A cultura romana valorizada doações. Elas eram a cola que unia familias, casamentos e hierarquias sociais. A sociedade romana era obcecada por manter distinções sociais e a íngrime pirâmide social de poder, privilégio e prestígio" (Vallely; 2020). Dos receptores das doações era esperado reverência e ajuda em assuntos da vida pública e privada. Para os romanos, a filantropia não era sobre generosidade, mas sobre responsabilidade cíviva. Aristóteles dizia que as doações deveriam ser proporcionais à riqueza do doador e à necessidade do receptor. E nós aqui, dois mil anos depois, suando para convencer as pessoas a doarem 1% da sua renda anual. Um por cento...

Por volta de 60 DC, Seneca, tutor do famoso imperador romano Nero, afirmou que o propósito da filantropia pela elite era para gerar gratidão dos plebeus, funcionando como a cola mantém erguida a hierarquia social romana. Assim, dizia ele, era importante que a seleção dos beneficiados fosse feita de maneira que o doador receba a maior e melhor publicidade possível. Soa familiar? 

Seria ótimo se pudéssemos dizer que tudo é parte de um passado remoto, exceto pelo fato de que ao lermos, não é difícil fazermos paralelos com o presente. Paul Vallely escreve que a filantropia do mundo grego-romano era sobre a educação da mente, corpo e espírito dos cidadãos, sobre participação política e espirito público, sobre honra, prestígio, fama, status e reputação. Era sobre o desenvolvimento do caráter do doador, sobre manter a ordem social. E, acima de tudo, era sobre o doador, não o receptor de recursos.

Ainda que os séculos seguintes tenham trazido mudanças, o que havia antes não se transforma por completo, mas fica menos explícito, toma novas formas, recebe novos nomes.

Saímos da arena mais sabidos, e sem dúvida ainda mais encalorados. O termometro marcava 42 graus e, ao contrário do que as notícias eurocentradas retratarem no dia, com foto do próprio Coliseu, não foi o lugaram mais quente do planeta; Marrocos beirou os 50 graus.

Que possamos sair deste texto com uma visão ampliada da arena filantrópica para que possamos, a partir dela, fazer escolhas sobre nossas práticas de doação e de mobilização de recursos que nos levem à cultura de doação queremos. Coerência entre visão de mundo e prática é o único caminho possível, e já está claro que não temos mais 2000 anos.



VALLELY, P. Philanthropy: From Aristotle to Zuckerberg. 1st. ed. London: Ed. Bloomsbury Continuum, 2020.

Bea Johannpeter

Consultora de familias empresarias ,Diretora do Instituto Helda Gerdau e Conselheira do RegeneraRS, ICE e Aliança pelo Impacto

1 a

Ótimo reflexão. A história se repete…

Cássio Aoqui 🏳️🌈

Polinizador de iniciativas de mudança social e bem-viver | Filantropia | Fortalecimento institucional de OSCs e Coletivos | Pesquisador aprendiz sobre os movimentos da sociedade civil

1 a

Recomenda o livro, Jo?

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