No doar, onde mora a liberdade?
Foto: Joana Mortari

No doar, onde mora a liberdade?

Estava a ouvir uma conversa, em formato de podcast, que se aventurava a desvendar a ideia de liberdade. "Existe liberdade sem que exista alguém que se sinta livre? Ser livre é poder fazer o que se quer?" formavam as perguntas-guia. Envolta pela conversa, caminhava e refletia sobre as interseções entre liberdade e doar. Quase tudo vira, em mim, uma reflexão sobre doar. 

No doar, me perguntei, onde mora a liberdade? E se ela muda de lugar, o que muda? 

O impulso que se forma dentro de um individuo e que se transforma em uma doação, nasce de um lugar de liberdade? Esta já é uma grande questão, daria para ficar só nela. Percebo já que fiz doações que me pareceram nascidas menos da minha liberdade e mais da minha percepção de algo que eu ‘tinha que fazer’. Acho que as que mais me dão prazer (sim, doar dá prazer e não é pecado) vem sim de um lugar de liberdade. A mais recente virou quase o dobro da hora que eu conversei com a pessoa até a hora que eu apertei o  botão para enviar o dinheiro. Sorriso no rosto, coração quentinho... Sei que este dinheiro vai beneficiar pessoas, um lugar, uma prática, o mundo. Este, para mim, é um lugar de liberdade. Um lugar que me conecta a algo maior e mais importante do que o dinheiro, do que eu mesma. Me sinto parte de algo que quero ver florescer no mundo. 

Da intenção passamos para o ato de doar em si que, como previsto em lei, é uma liberdade. Certo? Em outras palavras, não há lei que obrigue a doar. Já o processo de doação, ou a forma como ela é feita, é que dá notícia sobre o que aconteceu com a liberdade. Se ela fica com o doador, o processo de doação é carregado com sua visão de mundo, sua ideia de ‘certo ou errado’, normalmente em forma de restrições de uso dos recursos. Se o processo de doação é sem restrições, como por exemplo nas doações mensais e recorrentes feitas por indivíduos, a liberdade pega carona na doação e muda para a casa de quem recebe os recursos, que passa a decidir sobre seu uso. Há também a guarda compartilhada da liberdade, quando doador e donatário decidem, juntos, onde os recursos serão usados. 

Mas a liberdade, por mais importante e almejada que seja para um indivíduo ou uma sociedade, não faz parte da narrativa predominante sobre doar... Em outras palavras, é plenamente possível ser um doador reconhecido e admirado sem que a liberdade tenha sido parte da conversa ao mesmo tempo que a liberdade da doação mensal recorrente, que caminha junto com a doação até o donatário, também não é mais valorizada por ser livre. Falamos em doações grandes ou pequenas, mas não falamos em doações com ou sem liberdade. É possível proteger o meio ambiente sem abrir mão da liberdade. É possível erradicar doenças sem abrir mão da liberdade. É possível melhorar o IDEB de uma região sem abrir mão da liberdade. 

E  isso me preocupa. 

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Joana Ribeiro Mortari

  • Lembrete de que o [re]pensando o doar mudou de casa!

    Lembrete de que o [re]pensando o doar mudou de casa!

    Acesse no link abaixo e assine por lá! Em tempo esta news será desativada. Obrigada! https://www.

  • Doar e a obrigatoriedade de receber

    Doar e a obrigatoriedade de receber

    Neste último mês eu assumi um papel voluntário diferente na escola onde minhas filhas estudam e o que observei acendeu…

    1 comentário
  • doar em tempos de coerência

    doar em tempos de coerência

    Na maior onda de calor da Europa deste ano até o momento, estavamos na arena do Coliseu, em Roma. Entre gotas de suor…

    4 comentários
  • Reflexões: desenvolvimento institucional a partir da escuta do "O que será de nós?"

    Reflexões: desenvolvimento institucional a partir da escuta do "O que será de nós?"

    Esta escrita parte da escuta do segundo episódio do podcast O que será de nós?. A boa conversa se desenrola a partir…

    4 comentários
  • Por uma prática doadora reflexiva

    Por uma prática doadora reflexiva

    Recentemente participei de um webinário do Trust-Based Philanthropy Project no qual ouvi três gestores de diferentes…

  • Doar ou direcionar; eis a questão

    Doar ou direcionar; eis a questão

    Em semana de muitas reflexões, no Movimento por uma Cultura de Doação, sobre a importância do direcionamento de…

    1 comentário
  • Doar não é fazer um favor. Receber doação não é viver de favor.

    Doar não é fazer um favor. Receber doação não é viver de favor.

    Esta escrita começa de uma lembrança. Há alguns meses eu participava de uma reunião com uma organização que se sustenta…

    16 comentários
  • Doar: nem só ajuda, nem só obrigação moral

    Doar: nem só ajuda, nem só obrigação moral

    Mario Sergio Cortella, filósofo e doutor em educação, marcou presença na minha vida e nas minhas reflexões sobre doação…

    19 comentários
  • A verdade inconveniente da filantropia

    A verdade inconveniente da filantropia

    Os envolvidos no campo social e filantrópico em algum momento da vida se deparam com a verdade inconveniente da…

    18 comentários
  • Doação, uma palavra grávida de sentidos

    Doação, uma palavra grávida de sentidos

    A ideia de doação como uma palavra grávida de sentidos não me veio do dia para a noite. Comecei a pensar sobre ao que…

    2 comentários

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos