Educação médica baseada em valor
Na última semana eu estava indo em direção à unidade onde sou preceptor pela manhã cedo, como de costume, escutando um dos meus podcasts. No caso, era um do Estadão sobre a reforma do ensino médio. A fala de uma estudante do ensino médio do Colégio Bandeirantes me chamou a atenção. Disse algo como não ter preocupações com o futuro, como faculdade, ou algo assim, pois seria rica de qualquer forma, e o dinheiro é o que move o mundo.
Paro no semáforo na esquina da padaria onde sempre pego meu café da manhã. Uma mulher que nunca tinha visto no semáforo me pede dinheiro para comer. Olho nos seus olhos e vejo a fome. Não carrego dinheiro comigo. Não tinha. E a voz daquela aluna não saia da minha cabeça.
Estaciono. Pego meu café da manhã. Compro um lanche para a moça do semáforo. Na minha cabeça não parava de escutar. O dinheiro move o mundo. Como preceptor, outro pensamento me veio à mente. Que tipo de educação estamos proporcionando na saúde? Estamos formando profissionais para agir baseados em valor ou em dinheiro? Qual a diferença?
Expansão do número de vagas em cursos de medicina, seus diferentes perfis e o impacto dessa expansão no mercado da saúde.
Quando nos propomos a discutir os rumos da educação em saúde, e principalmente da educação médica, sempre cairemos nas diferentes visões sobre a expansão do número de vagas em cursos de medicina, desde a lei dos mais médicos durante o governo Dilma. Mas geralmente estas discussões se resumem a argumentos protecionistas como "temos médicos suficientes" ou "não precisamos de cubanos para financiar uma ditadura". Não entrarei nestes méritos. Nem farei uma análise profunda da demografia médica que ainda privilegia profissionais em cidades grandes e médias em detrimento do Brasil profundo. Não é sobre isso que quero falar. Mas em linhas gerais, qual o comportamento das escolas médicas na formação profissional nesse contexto? Vou dividir estas escolas em alguns grupos que, como toda generalização, cometerá seus erros.
Escolas médicas antigas e já conceituadas, a maioria delas públicas, estaduais ou federais.
Como egresso da Universidade Federal da Bahia, Primaz do Brasil, trago com muito orgulho o brasão desta instituição na manga do jaleco. No entanto, num exercício de imparcialidade, devo admitir que, por mais sólida que tenha sido minha formação e a dos meus colegas, vejo alguns vícios na minha Alma Mater que se repetem em colegas de instituições como USP, UNIFESP, e tantas outras antigas e conceituadas.
Nosso ensino é baseado, na maior parte do tempo, em métodos pouco didáticos, decorebas, que privilegiam professores sem o menor estímulo aos resultados dos seus trabalhos. Claro que temos ótimos professores, mas os processos educacionais inibem o exercício de excelência. Somos formados em um regime de clínicas, que divide o paciente em órgãos e sistemas, com métodos de humilhação e desumanização, como se a saúde do paciente dependesse da quantidade de gritos que recebemos no internato, como um Master Chef da medicina. Formamos pequenos soberbos com reis na barriga, que reproduzem com seus pacientes as mesmas práticas que aprendem com seus professores no internato. Estas instituições ainda mantém seu prestígio social, na minha opinião, com os dias contados, caso não mudem drasticamente seus meios formativos.
Frases que escutava de alguns colegas de plantão colaboram com minha visão. "Você não é o médico aqui, e quem sabe disso sou eu". "Eu sei que você é a família, mas não é você quem tem que tomar esta decisão". "Se você acha que sabe tanto sobre sua doença, por que não fez medicina no meu lugar?"
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Escolas privadas novas, pertencentes a grandes grupos educacionais, que se expandiram principalmente para cidades no interior do país.
Tendo contato com muitos profissionais formado nas chamadas "escolas de grupo", as críticas são inúmeras. Instituições atreladas a grupos educacionais cujo foco nunca foi entregar saúde, mas reduzir custos para entregar diplomar e maximizar os lucros e dividendos destas organizações. Neste processo, professores são colocados em segundo plano, alunos são colocados em segundo plano, e a sociedade não é colocada em plano nenhum. "Qual o indicador que você olha no final do dia?" Pergunto eu. "Rentabilidade". Eis a resposta.
Tais instituições continuarão a abrir cursos à torto e à direita, e continuarão lucrando muito com este processo, enquanto a formação em medicina ainda for muito lucrativa, até que a tão falada bolha estoure, e estes não estão preocupados com a qualidade da formação destes profissionais, pois uma vez que tenham um diploma não mão e não paguem mais suas mensalidades estratosféricas, "são problema de outro".
Escolas privadas novas, atreladas a instituições conceituadas na área, que se concentram em grandes capitais.
Depois da faculdade, fiz minha residência médica no Hospital Israelita Albert Einstein, onde tive a oportunidade de conviver com os estudantes da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde. Logo ficou muito claro pra mim a diferença e o foco da instituição. Métodos de ensino baseados em evidências, com ensino focado em formação de raciocínio clínico e liderança, com contato com pessoas desde o início da formação e um currículo baseado em competências para profissionais generalistas, com conceitos de atenção primária à saúde em todos os semestres.
A diferença foi enorme para mim, não que o ensino não tenha seus pontos de melhoria, mas abordar comunicação clínica faz toda a diferença para que estes profissionais possam acolher as queixas de seus pacientes com informações de qualidade e de forma empática e acolhedora. Em minha opinião, estas instituições estão a caminho do destaque no mercado da saúde, com a qualidade dos profissionais que têm formado para a sociedade.
Como preceptor no Centro Universitário São Camilo, vendo a reforma na grade curricular e a seriedade com a qual a instituição tem lidado com este processo de longo prazo, fica muito claro pra mim o comprometimento com a qualidade dos profissionais que instituições como estas têm formado.
O que se espera dos médicos e médicas recém formados?
Como abordei em postagem anterior, a maior parte das pessoas esperam que bons médicos sejam capazes de realizar bons diagnósticos, indicando tratamento eficazes e promovendo cuidado com qualidade. Não conseguiremos isso enquanto saúde for encarada como a quantidade de consultas e exames que conseguimos ofertar. Pior, quando formamos profissionais que não aprendem raciocínio clínico, e acreditam que processos em saúde não passam de algoritmos, temos pessoas substituíveis por qualquer inteligência artificial que consiga minimamente fazer as perguntas pertinentes. Temos formado profissionais inaptos a lidar com a complexidade que a saúde demanda, e que com sua arrogância social calam a voz mais preciosa neste processo: os pacientes e seus familiares.
Propor modelos avaliativos que sejam condizentes com o que se espera destes novos profissionais é algo urgente na sociedade. Ou lidamos com estas questões com a seriedade que o tema exige, ou continuaremos à mercê de protocolos rasos elaborados por sociedades enviesadas onde uma cascata de hiper utilização da saúde não se traduz em valor para pessoas, mas em balanços patrimoniais.
MD, MHPE, PhD | Health Sciences and Educational Sciences
10 mO artigo, convoca-nos a uma reflexão crítica sobre um elemento fulcral na formação médica: a imperiosa necessidade de abordagens mais humanizadas e centradas no paciente. Torna-se premente a formação de médicos não só com competências técnicas de excelência, mas também dotados de empatia e habilidades comunicacionais eficazes. Para superar este desafio, é fundamental inovar na educação médica, privilegiando currícula que enfatizem a empatia, a comunicação eficaz e o raciocínio clínico. A integração de tecnologias educativas, aprendizagem baseada em problemas e experiências clínicas diversificadas poderá enriquecer a formação médica, preparando os futuros médicos para uma prática mais humana e personalizada.