Efeito colateral
Sexta-feira, junho de 2017. É minha terceira noite sob o ar temperado do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. A quarta desde a transferência da Unidade de Atendimento Integrado. Na ala de cirurgia geral, divido espaço com Willian, 16, e Alexsandro, 30, todos com seus acompanhantes colados feito imãs nas cadeiras junto dos leitos. Ali, formamos o que chamamos de “time do corredor B”. Entre nós, ecoa uma mistura de gritos, sussurros, o tilintar do balanço das macas, de carrinhos com insumos e outros sons indecifráveis. A meta que nos atava era voltar para casa com o sabor da vitória, ainda que o apito final insistisse em respeitar o tempo de cada um. Para o último que saísse, outra luz que reacenderia. Havia muito mais em jogo.
Quis o destino que o jornalismo aproximasse-me da saúde pública e privada, mas nunca em primeira pessoa. Eis que a roupa que enverguei para o futebol semanal de toda noite de terça deu lugar ao traje de paciente. Era como se um fusca modelo 1303 colidisse no ar com um bitrem. Na dividida aérea, atacante e goleiro visavam a bola, que viajou para outro canto ao passo que o joelho do arqueiro, num movimento natural, atingia-me na boca do estômago. Tão logo meu corpo encontrava o solo, risos ressoavam de quem acreditava que o impacto ocorresse nos países baixos. Sem conseguir manter-me de pé, agarrei nas grades que cercam o gramado até conseguir, enfim, retirar-me daquele espaço, mas não era suficiente. Ao perceber a gravidade do ocorrido, pedi a um amigo para que levasse-me para a unidade de saúde.
Pernoitei sob acompanhamento depois de lançar-me no chão da unidade para galgar um olhar para a dor que irradiava, ainda que alertasse da impossibilidade de sentar numa cadeira de rodas. Passei a noite numa maca até a troca do plantão das 6h. O primeiro médico que me chegou desdenhou ao saber que estava ali por um lance de futebol. Contou-me das tantas pessoas que recebe em situações piores, acidentes de moto e afins. Ao amanhecer, o segundo estranhou a tonalidade amarelada que, segundo ele, indicava um problema no fígado, e após colher alguns exames, ressaltou que permitiria sair dali apenas com destino para o Hospital de Clínicas, referência pública na região, mediante liberação de um leito.
Enxergar o viaduto da avenida João Naves de Ávila, um dos principais da cidade, da janela traseira da ambulância, foi apenas uma das novas experiências que vivenciaria naqueles dias. O impacto do choque com o goleiro havia provocado um sangramento na região do fígado e do baço, e a dor da hemorragia já irradiava para todo o corpo.
Medo, aflição, falta de ar, náusea. Deitado, sem conseguir falar ou movimentar, observava a forma das lâmpadas do hospital. Eram tantas formas distintas, estagnadas e heterogêneas que pareciam o que viveria anos depois na maior pandemia dos últimos 100 anos, clausurado em casa em São Paulo ou em Minas, com a mesma sensação de impotência de não ter para onde correr enquanto tanto descalabro acontece sob o nariz, da porta da rua para fora.
Lembro algo que confortou a “turma do corredor B” depois de alguns dias, com o amistoso entre Brasil e Argentina, na estreia do técnico Jorge Sampaoli. Inesperadamente, o jogo não seria transmitido pela TV Globo, motivo pelo qual sintonizei o celular no canal da CBF e mobilizei todos para assistirmos ao embate, que terminaria com a primeira derrota de Tite na seleção. O resultado pouco importava para quem lidava com outra batalha. Willian havia rompido o tendão do pé ao subir em um vaso sanitário. Alex sofria de inchaço no cérebro e deixou o corredor rumo à enfermaria antes do apito final para o lugar do carismático Zé Geraldo, que completava 20 dias no hospital após cair do cavalo, literalmente.
Ainda que hoje represente um esporte coletivo de interesse individual da cartolagem, o futebol, patrimônio do povo, foi um afago para todos durante os 90 minutos que passaram, assim como as 24 horas em sequência daqueles seres prostrados nas cadeiras de plástico colocadas junto dos leitos. Deitado, observava alguém que parecia ter nascido para ser mãe ali e em qualquer outro lugar ou peleja que nos deparássemos. Atitudes simples que pareciam tornar o jogo mais fácil, ainda que entre soros, exames de sangue, glicose, raio-X, ultrassom, tomografia e um bocado de injeções. Quando os médicos descartaram a cirurgia, apertamos as mãos e nos vimos em prantos, como num trecho da obra “Não se mate”.
“Você é a palmeira, você é o grito que ninguém ouviu no teatro, e as luzes todas se apagam. O amor, no escuro, não no claro, é sempre triste, meu filho Carlos, mas não diga nada a ninguém, ninguém sabe nem saberá”, escreveu Carlos Drummond de Andrade.
Em junho, o blog que deu nome à coluna e que culminou na página homônima “Ficha Técnica” completa dez anos desde que meu irmão sugeriu-me a ideia, motivado pelos ambientes nocivos e de tenebrosas transações que emanavam dos bastidores de cada jogo. Curioso foi que, apesar da ausência material, senti como se nosso divino anjo da guarda, também conhecido como “avôhai”, estivesse ao meu lado o tempo todo durante aqueles dias no hospital. Uma sensação que ainda carrego a cada pedra que desaba sobre o caminho.
Ao atravessar o oceano em 2012 a fim de revisitar o passado e descobrir o futuro. Da euforia ao pisar pela primeira vez numa redação de jornal no mesmo ano. Da mudança de casa, cidade, país, opinião. Da nova vida em São Paulo. Do calafrio ao lidar com o presente. Da farda que arrepia. Do fardo com um presidente. Por mais comida no prato, direitos na mesa, jornalismo e muito futebol ao alcance de todos. Assim como naquele junho de 2017, quando escrevia pela primeira e única vez de uma maca de hospital, os textos nascem daquilo que vi ou vivenciei e cada palavra é uma ferida que hesita em cicatrizar. No final, tenho, para mim, que isso também vai passar, e cada linha traçada não passará de mais um efeito colateral.