Eles ainda existem

Eles ainda existem

O ortopedista nos aguardava com a caneta (tinteiro!) pronta a preencher uma ficha pautada. Após os breves cumprimentos, perguntou: qual a sua queixa?

Myrta começou a explicar a dorzinha chata que nem com analgésicos passara e o médico anotou. Ele perguntou algo mais; ela explicou. Falar é uma forma de organizar o pensamento e, daquela dorzinha, outra foi lembrada. Mereceu uma menção, mas o médico nos interrompeu: primeiro, o primeiro.

Ele era pontual. A cada pergunta, fazia uma anotação. Comecei a me interessar pela anamnese: havia um encadeamento curioso no que o doutor indagava. E, do primeiro, a conversa caminhou fluentemente para o segundo. Até para o terceiro!

Leváramos alguns exames antigos. Em vez de vê-los, pediu que Myrta o acompanhasse. Na maca, ergueu uma e outra pernas; apalpou joelhos; avaliou reflexos. Em pé, avaliou costas, ombros, pescoço, braços.

Sentíamo-nos num consultório oftalmológico, definindo o novo grau dos óculos: assim ou assim? Dói aqui? E ali? Corpo levemente dobrado para a frente, levemente voltado para trás; pescoço para a direita, pescoço para a esquerda. A cada ai mais intenso, uma nova rota de investigação.

De volta à mesa, ele começou: você tem isto, tem aquilo; isto está relacionado a idade; isto tem a ver com isso; aquilo tem a ver com aqueloutro; provavelmente você tem tal coisa; você deve sentir assim; precisa fazer alongamento; etc.

Ficamos boquiabertos. Pensávamos que médicos desse tipo não existissem mais. Pois Doutor Ivo não só diagnosticou o que exames de muitos anos (e vários especialistas) indicavam, como o fez sem olhar qualquer laudo!

A busca pelo profissional tivera, mesmo, essa intenção. Porque andávamos meio cansados dessa história de uma questão no joelho esquerdo nos levar ao especialista em joelhos esquerdos; uma questão no tornozelo direito nos levar ao especialista em tornozelos direitos; a uma questão na região lombar nos deixar em dúvida se deveríamos procurar um especialista em costas ou em quadris.

A medicina moderna está cada vez mais especializada, mas nem sempre é isso que queremos. Quando a secretária confirmou que a clínica e o doutor eram a mesma entidade e que ali se atendia ortopedia de maneira ampla, Myrta não titubeou: qual o primeiro horário disponível?

Nem foi difícil agendar a consulta. E, como marcáramos a visita via convênio, já sabíamos que esse primeiro contato seria rápido.

Sabíamos? Pois estávamos enganados.

Logo após o exame clínico, Doutor Ivo pediu para ver a documentação que leváramos. Concentrou-se apenas nas imagens. E, mesmo revelando considerar a ressonância magnética um "exame burro", foi-nos mostrando, em cada uma delas, cada aizinho mais ou menos intenso que seus toques haviam provocado: aqui tem a ver com a dor ali; isto explica aquela reclamação; não tem por que se preocupar; não pode parar o exercício físico...

Etc. Etc. Etc. Por quase uma hora!

Não resistimos e revelamos a ele nossa impressão. Modesto até certo ponto, deu a entender que seria, sim, uma mosca branca. E fez lá suas críticas ao atual modelo de negócios da área de saúde.

Terminou a consulta prescrevendo um medicamento para poucos dias e pediu - acredite - um raio x.

Não é que saímos contentes da consulta médica? Entramos com uma reclamação, saímos com uma epifania.

No trabalho que desenvolvi há alguns meses, detectei alguns perfis de comportamento entre médicos. Encaixaria o Doutor Ivo no perfil humanista. A pesquisa parava por aí. Mas acredito que, se fosse estendida, mostraria que esse é o perfil de médico com que a maior parte dos pacientes preferiria se tratar.

E essa especialização se estende por todas as áreas. É incrível o número de provas de natação ou de corridas nas olimpíadas, por exemplo, cada uma com seus respectivos especialistas! Estava discutindo outro dia sobre os nutrólogos e os nutricionistas! Se existe um curso superior para o nutricionista porque existe uma especialização médica como nutrólogo? Acho que cada pessoa quer ser o melhor em sua área e cria a especialização em engenharia das grampolas. Será o maior especialista em grampolas, seja lá o que isso signifique para a sociedade.

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