EM TERRA DE SAPO, DE CÓCORAS COMO ELE

EM TERRA DE SAPO, DE CÓCORAS COMO ELE

No mês de julho de 1977 eu ainda cursava o último ano do curso Técnico em Mecânica da Escola Técnica Federal de São Paulo, quando incentivado por alguns amigos que já haviam concluído o segundo grau, resolvi prestar o meu primeiro vestibular ainda como “treineiro”, uma vez que ainda fatavam seis meses para concluir o curso técnico.

Meus amigos que haviam cursado o curso colegial normal já estavam há seis meses tendo aulas em um cursinho e já haviam participado de vários exames simulados, o que foi muito bom para mim, pois eles me instruíram na dinâmica da prova e do preenchimento da folha de respostas para que eu pudesse administrar bem o tempo da prova, no entanto, foi como aprender a nadar numa sala de aulas, a aula prática iria ser o próprio vestibular.

 A prova escolhida foi a da FEI – Faculdade de Engenharia Industrial de São Bernardo do Campo, uma vez que meu plano era concluir o curso técnico e ingressar numa faculdade de Engenharia Mecânica.

Não me lembro bem de todos os detalhes daquele exame, mas se não me falha a memória foram dois ou três dias de prova, porém isso não é o mais importante.

Enquanto eu estava totalmente tranquilo pois não sentia qualquer tipo de pressão para aquele exame, meus amigos estavam todos nervosos e passavam horas e horas em aulas complementares no cursinho e estudando até tarde em casa.

Eu já tinha passado por duas experiências anteriores deste tipo de exames, uma vez que pertenci à última ou penúltima turma que precisou fazer Exame de Admissão para o Segundo Grau e posteriormente, um Vestibulinho extremamente concorrido para a ETFSP com cerca de sessenta candidatos para cada vaga, o que obrigou a escola a fazer o seu exame seletivo no Estádio do Morumbi.

A falta de obrigação e as experiências de sucesso anteriores me deixaram muito tranquilo e confiante para aquelas provas. Eu tinha total consciência do que sabia e não fazia a menor ideia do que não sabia, afinal eu só conhecia as matérias que havia estudado durante o curso e não tinha dimensão do que havia deixado de aprender e naquele momento precisaria saber.

Eu acreditava que as provas de Matemática e Física seriam tranquilas e Química um verdadeiro desastre e, como sempre gostei muito de Português, Inglês e História, acreditava que poderia ter um bom desempenho nestas matérias. 

Chegando o grande dia, fomos todos para a FEI bem cedo pois naquela época não existia GPS e ninguém conhecia bem o caminho, o que se mostrou desnecessário, pois de um ponto da Via Anchieta em diante, a fila de carros nos mostrou o caminho.

Ao que me lembro, o primeiro dia foi o dia da prova de Português e o grande terror de todos os meus amigos era a famigerada redação, o que nunca me assustou pois sempre gostei muito de ler e escrever e estava muito confiante.

As perguntas relacionadas à Gramática não estavam muito difíceis e para minha sorte, a interpretação do texto era sobre um texto do poema Navio Negreiro de Castro Alves. Quando comecei a ler os versos do poema comecei a rir sozinho o que causou espanto em várias pessoas, pois enquanto eu ria todos estavam muito tensos. Felizmente eu havia interpretado uma peça na ETFSP na qual encenamos este poema e eu o conhecia de cor e o havia estudado “de cabo a rabo”, certamente gabaritei na prova.

Foi então que voltei minha atenção para a redação que havia deixado por último, apesar de ter sido orientado pelos meus amigos para fazer o contrário, pois tinha confiança de que ela não seria um problema para mim. O título era muito intrigante e dava margem a muitas interpretações:

“Em Terra de Sapo, de cócoras como ele”.

O bom de não ter compromisso com o resultado e fazer as coisas seguindo a intuição mais do que a razão, dei asas à minha criatividade e escrevi um texto muito consistente e interessante sobre uma Terra onde os governantes tinham como primeiro princípio constitucional esta frase, ou seja, quem não seguisse o que o governo mandasse estava seria condenado a penas severas e até à morte. Segui a linha satírica que o autor inglês George Orwell utilizou ao escrever o seu livro: A Revolução dos Bichos e me diverti escrevendo aquela fábula moderna.

A sorte estava lançada, sai da prova depois de todos os meus amigos e enquanto eu estava feliz com o que havia feito, todos os demais estavam muito tensos por terem achado o tema da redação muito difícil e diferente de tudo o que haviam treinado no cursinho.

Nas demais provas, excetuando-se a prova de inglês em que acertei todas as questões, eu fui pior do que os meus amigos, mesmo por que, descobri que haviam matérias que eu nem sabia que existiam. A única prova que era uma incógnita completa era a de redação, uma vez que não há gabarito e eu dependeria do senso de humor de quem fosse corrigir minha prova que era uma crítica aos regimes totalitários feita com bom humor.

No último dia de prova todos estavam muito nervosos, afinal haviam se dedicado muito para passar naquela seleção e eu estava torcendo para que eles tivessem conseguido a tão esperada vaga na faculdade, com minha consciência tranquila e sem qualquer esperança de ter passado, pelos resultados das provas comparados aos deles.

Infelizmente na primeira lista nenhum dos nossos nomes apareceu e isso fez com que a pressão e a tensão deles ficasse muito maior, no entanto, quando saiu a segunda lista, para o espanto de todos, inclusive o meu, o nome que constava da lista de convocados era o meu.

Infelizmente eu não pude me matricular e nenhum deles conseguiu sucesso naquele vestibular, o que me deixou muito triste, afinal não havia como ceder meu lugar para nenhum deles.

A conclusão a que chegamos foi que a minha prova de Português e, principalmente a redação que eu fiz haviam sido as responsáveis pelo meu resultado positivo, ou seja, na nossa Terra de Sapo, eu fiquei de cócoras como eles, mas, em algum momento, muito antes de chegar àquele vestibular, eu consegui com meu hábito de ler, dar um salto que me deixou ir um pouco além.

Estes mesmos amigos sempre me chamavam de Rei da Cultura Inútil pois eu lia coisas e me interessava por assuntos que eles consideravam inúteis. Felizmente vi que cultura nunca é inútil!

É muito difícil ser diferente numa Terra de Sapos, principalmente na adolescência e início da juventude, mas tenho certeza de que valeu a pena o apelido.

A lição que aprendi para a minha vida a partir desta experiência foi que mesmo quando estamos em uma família, uma empresa ou um país de sapos onde somos obrigados a ficar de cócoras como todos os demais, sempre temos que ousar e arriscar mais do que os outros para, mesmo de cócoras podermos nos destacar na “saparia”. Enquanto o medo deles os fez ficar de cócoras, a minha ousadia me fez dar um salto, o que fez toda a diferença!

Desde então, tenho como um dos meus paradigmas pessoais que:

“O medo nos mantém vivos, mas é a ousadia que nos faz viver”!

Muito interessante a história. Sem dúvidas, cultura nunca foi inútil e não ocupa lugar, mas enriquece seu conhecimento e experiência, destacando-o daqueles que pensam ao contrário. Na vida, além de termos que "andar de cócoras" como sapos, engulimos muitos deles para sobreviver no "pantano" da concorrência profissional e dos relacionamentos em todos os níveis. Cabe a nós, aculturados, escolher a lagoa mais confortável.

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