Encíclica Fratelli Tutti e a defesa da concorrência
O texto da encíclica papal Fratelli Tutti, de 3 de outubro, nos traz uma mensagem de redimensionamento da vida terrena. Rever nossos papéis e nos reconectar e reencontrar como irmãos. Sugere o Pontífice a eliminação de muros, relativização de fronteiras culturais, raciais ou religiosas. E pede repensar a economia.
Por afinidade e pelo viés de minha visão de mundo, resolvi enxergar o papel da defesa da concorrência nesse processo de redimensionamento e reconexão humana.
Luigi Zingales menciona a tirania do status quo como dificuldade para aplicar o capitalismo para o povo (A Capitalism for the People: Recapturing the Lost Genius of American Prosperity). Na mesma linha, Ricardo Sayeg e Wagner Balera falam da importância de mudar o paradigma da acumulação como principal objetivo do capitalismo (O Capitalismo Humanista). Filósofos contemporâneos já anteviam essa visão trazida pela encíclica Fratelli Tutti. Assim como eles, sem desmerecer os méritos do capitalismo, concordo que seja possível que a sociedade equilibre melhor os vários interesses.
A nossa Constituição impõe uma sociedade fraternal e funda a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa para assegurar existência digna a todos, com justiça social. Um dos princípios norteadores desse objetivo é a defesa da concorrência.
Pois bem, vejo aí a intersecção entre a defesa da concorrência e a carta encíclica.
Ao referir-se à “abertura” do mundo (vide item 12), o Pontífice Máximo indica que a cultura atual “unifica o mundo, mas divide as pessoas e as nações”. Apesar de avizinhar-nos, o mundo não nos faz irmãos. As elevadas concentrações e verticalizações são exemplos de vizinhos que não aprendem a conviver com irmãos. Privilegiam a dominância. Por vezes, inclusive, abusam de posição dominante. Não por outra razão conclui a carta papal que “[o] avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes. Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes econômicos transnacionais que aplicam o lema ‘divide e reinarás’”.
Mais adiante, critica a liberdade absoluta que, para alguns, seria suficiente para garantir tudo (vide item 33). Indicando a pandemia, a encíclica Fratelli Tutti indica a necessidade de se dar contornos para a liberdade, inclusive econômica e de consumo. Prova disso, por exemplo, são os debates sobre preços abusivos e controle de preços que permearam as manchetes em tempos de pandemia e motivaram o início de investigações perante a Superintendência Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE.
Ainda nesse item, a carta faz spoiler do documentário O dilema das redes, da Netflix, afirmando “[b]uscamos o resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da realidade”. Aqui também encontra-se dilema concorrencial sobre a influência dos algoritmos, o poder das Big Techs e outros temas atuais no debate concorrencial.
Clama o Sumo Pontífice para que “[s]ejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos, em vez de fomentar ódios e ressentimentos” (vide item 77). E arremata pedindo que “[a]limentemos o que é bom, e coloquemo-nos ao serviço do bem”. Esse pedido é uma ordem de compliance concorrencial, também. Ora, não abuse de seu poder de mercado e não concentre o mercado apenas pela ganância de mais acumular, desconsiderando efeitos negativos que a excessiva concentração pode gerar.
Adiante, defende que o mercado não resolve tudo sozinho. Enfatiza ser “indispensável uma política económica ativa, visando ‘promover uma economia que favoreça a diversificação produtiva e a criatividade empresarial’” (item 168). E esclarece que deve haver uma “política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias viciosas. Não se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do Estado”. Claramente, o Santo Papa abrange a análise do impacto regulatório e outras medidas de advocacia da concorrência nesse trecho de sua carta.
Em suma, a fraternidade, qualidade essencial da sociedade brasileira, deve ser “estendid[a] a todos, Estado e sociedade, assim, uma sociedade fraternal” (As raízes cristãs do princípio jurídico da fraternidade e as crises migratórias do terceiro milênio), segundo as professoras Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos e Marilene Pereira Araújo.
Me parece impossível não perceber que a fraternidade fundamenta a livre concorrência. Somente um ambiente fraternal poderá garantir uma concorrência justa, sem abusos e com respeito ao limite do direito alheio. Isso não quer dizer, contudo, que não haverá vigor na competição.
As três vertentes de atuação do sistema brasileiro de defesa da concorrência se valem desse princípio. A prevenção controla as concentrações e preserva o ambiente o mais competitivo e menos propenso ao conclui. A repressão obsta o abuso, lado avesso da fraternidade. Seja o abuso do mais forte, que detenha efetivo poder de mercado, seja o de grupos que falseiam a concorrência através de acordos escusos. A promoção, ou advocacia, preserva os valores da concorrência na construção regulatória, que contribui para uma sociedade fraternal, através de inúmeras iniciativas.
A concorrência deve, então, relativizar a mão invisível de Adam Smith e buscar mais amparo no irmão universal para preservar a liberdade erguida sobre a base da fraternidade e da justiça.
Advogado e Sócio na Agência Brasileira de Controle de Risco
1 a👍👍👍
Consultor de Gestão | Transformação Digital | Inovação | Treinamentos | Liderança | Resultados
1 a👏👏👏
Consultor de seguros na Vicale Insurance - Corretagem de Seguros
2 a👍👍
👏👏👏
Full Professor at FCE/UERJ PPGCE/UERJ. Economist and Political Scientist
4 aQue bela análise. Segue a linha original da economia como ciência moral, tal como Adam Smith expõe em Teoria dos Sentimentos Morais, chamando atenção para a confiança e a cordialidade como condições para o bom funcionamento das relações de mercado.