Entre a invasão dos marcianos e a «Boca da Verdade»

Eu tinha apenas dois anos quando o satélite Telstar dava início a uma nova era no campo das telecomunicações e que, duas décadas depois, alcançaria uma importância decisiva na cultura de massa e na, hoje, inegável globalização. A minha existência foi, também por isso, coetânea da grande revolução comunicacional do século xx. Com interferências directas e, muitas vezes, insinuadas ou em ricochete, ela fez e continua a fazer emergir novos meios que informam e que influenciam as nossas consciências individuais e colectivas, ao mesmo tempo que nos tornam desconfiados e receosos. Como se o Diabo estivesse por detrás de um enorme planisfério em rede, substituindo as modernas técnicas (de fios) para manipulação das inestimáveis marionetas por rápidos toques de dedos, com a capacidade de esconder as impressões digitais!

Entre a fascinação e o terror dos acontecimentos, mas sempre à procura da libertação que o conhecimento das coisas e do Mundo nos oferece, fui um jovem – como tantos outros da minha geração – que, sobretudo numa fase de transição política e de experimentação democrática no País, sucedânea do 25 de Abril, também se surpreendeu com uma reposição do teatro radiofónico «A Invasão dos Marcianos», versão portuguesa datada de 1958 e recriada pelo produtor de rádio Matos Maia, evocativa da célebre emissão da «Guerra dos Mundos», pelo cineasta norte-americano Orson Welles.

Baseada no romance de ficção científica do britânico Herbert George Wells «The War of the Worlds», sobre a invasão da Terra por marcianos inteligentes mas supostamente perigosos, a aventura de Matos Maia (voz que ainda recordo de uma época em que a rádio predominava nos lares portugueses) fê-lo passar três horas numa cela, bem como ser criticado pelos jornais desse tempo, além do «puxão de orelhas ao rapazinho» (então com 27 anos), porque Oliveira Salazar achava que «não se brinca com coisas sérias».

Na entrevista de José Tolentino Mendonça, conduzida pelo jornalista António Marujo (na edição de ontem do «Público»), o novo arcebispo e agora responsável da Biblioteca e Arquivo da Santa Sé diz que «recordar de onde vimos ajuda-nos a perceber por onde temos de continuar» e que «a palavra escrita é inseparável da voz humana». Nessa conformidade, Tolentino Mendonça considera que a sua avó materna, mesmo não sabendo ler, foi a sua «primeira biblioteca». Eu também devo muito às minhas «bibliotecas de carne e osso» (igualmente analfabetas, mas cheias de «infinito») porque, a seu modo, me transmitiram que «não conseguimos encontrar sentido na vida com os olhos colados aos sapatos», como afirmaria o novo arquivista e bibliotecário do Vaticano.

Numa sucessão de tentativas de análise profissional sobre o que é ser jornalista na actualidade, reencontrei a voz crítica de Fialho de Almeida, o qual, «à semelhança do gato […], com a graça ondulosa e o assopro, o ronrom e a garra», observava, em Setembro de 1890: «O que é o repórter? O caixeiro de fora, do jornal. Um receptor e um transmissor de casos, sem outra missão além de os inquirir imparcialmente no local onde eles se produzem, e de os trazer a julgar perante o critério do corpo de redacção.»

Talvez porque se tenha individualizado ou fulanizado um pouco mais em determinado período, o jornalismo aproximou-se dos leitores ou dos seus vários públicos, possibilitando, de certo modo, uma comunicação nos dois sentidos. Apesar de as redefinições profissionais poderem dissolver a designação de «repórter», a respectiva função não se extinguirá enquanto a notícia e a verdade derem forma à reportagem. Em Roma, existe uma máscara de grandes dimensões dedicada ao Deus do Mar, cuja lenda alude que «se uma pessoa coloca a mão dentro da boca [Bocca della Verità] e jura falsamente, a boca fecha e corta a mão». Surpreendentemente, não há nenhum caso atestado de tal ocorrência!

(«Diário de Coimbra»: DA RAIZ E DO ESPANTO, 02.09.2018)

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