Entre o real e o distópico: como os filmes “What happened to monday” e “Ugglies” refletem Foucault e nos fazem questionar nossa realidade
Estou escrevendo um artigo sobre o uso de IA Generativa e Deepfakes nas eleições e escolhi utilizar como fundamentação teórica os conceitos de dessubjetivação, semióticas a-significantes e servidão maquínica apresentados pelo sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato que se inspira nas obras de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari.
No meio dessa imersão encontrei dois filmes que são baseados na obra de Foucault e que apresentam uma visão muito crítica da realidade que estamos vivendo. O primeiro se chama “What happened to monday” que em Português foi traduzido para “Onde está a segunda?” e o outro “Ugglies”, que foi traduzido para "Feios", em Português. Achei tão interessante que li as críticas sobre esses filmes e transcrevo aqui os pontos que se relacionam com a obra do Foucault e principalmente com a nossa realidade.
Comecei a assistir “What happened to monday” e logo de cara fiquei bem perturbada com a cena inicial que começa no ano de 2073, em que os recursos naturais da Terra estão cada vez mais escassos por conta do aumento populacional e somado a isso (a parte que mais me chocou), a América do Sul tornou-se um imenso deserto obrigando o restante do mundo a produzir alimentos geneticamente modificados, onde o resultado acaba gerando um efeito catastrófico, pois ao consumir esse tipo de alimento, as famílias passam a ter um aumento no nascimento de gêmeos, trigêmeos e múltiplos, agravando ainda mais aumento populacional e fazendo com que o Governo adote uma política de controle de natalidade, denominada “Lei da Alocação Infantil”, onde cada família somente poderá ter um filho, e caso tenha outros, esses serão confiscados pelo governo e confinados em um ambiente criogênico para serem acordados futuramente quando a situação estiver voltado à normalidade. Aqui percebe-se uma dura crítica à política do filho único na China, lei que vigorou de 1980 a 2015.
A cena inicial mexeu comigo devido a todas essas mudanças climáticas que vem assolando o mundo com temperaturas extremas, e a situação atual de queimadas e seca dos rios da América Latina, principalmente aqui no Brasil. Agora em setembro de 2024, a cidade de São Paulo, por dias consecutivos, teve a pior qualidade do ar do planeta. Os incêndios no Brasil, estão destruindo árvores e matando animais e a seca está diminuindo drasticamente o nível dos rios. Infelizmente uma cena inicial de um filme de ficção científica que deveria mostrar um futuro distópico me fez refletir se ao invés de uma distopia isso não acaba sendo uma previsão do nosso futuro.
Recomendados pelo LinkedIn
E qual a relação desse filme com o pensamento de Foucault? O filme mostra o controle por meio de uma sociedade disciplinar, conceito esse apresentado por Foucault. Este tipo de sociedade visa controlar tudo e utiliza o poder das instituições e do corpo técnico/científico para essa finalidade. Além disso, o controle também é operado por meio de sistemas fechados como a escola, trabalho, hospital, presídio, ect. No filme as pessoas são controladas por uma pulseira de identificação e cada família só tem direito a uma pulseira, ou seja, somente poderá ter um filho. Elas são constantemente vigiadas pelo governo e punidas quando descoberta a existência de mais de um filho. Vigiar e Punir é um famoso livro do Foucault que aborda esse conceito de sociedade disciplinar.
Já o filme “Ugglies”, que estreou nesta sexta-feira 13 de setembro de 2024, e já na minha lista, aborda a obsessão, principalmente a feminina, pela beleza e o desejo de atingir padrões estéticos estipulados pela sociedade. O filme é uma adaptação do livro homônimo, de Scott Westerfeld, publicado em 2005, onde Tally Youngblood, é uma jovem prestes a completar 16 anos e que irá submeter-se a uma cirurgia que eliminará suas características individuais. Esse tipo de procedimento mostra um futuro potencialmente dominado por sociedades uniformizadas, onde o sujeito perde a sua individualidade. Foucault, brilhantemente conseguiu identificar esse tipo de situação e criou o termo dessubjetivação que descreve exatamente o efeito das práticas de poder e saber que, ao organizarem e regularem a vida social, produzem sujeitos de maneira normatizada, muitas vezes esvaziando sua autonomia. Além disso, outro ponto muito importante destacado no filme é o impacto da tecnologia e da biotecnologia no controle da sociedade e na vida das pessoas.
Portanto, ao estudar as teorias de Foucault e relacioná-las com as narrativas de " What happened to monday" e "Ugglies", percebemos que as distopias retratadas funcionam como espelhos de nossos próprios desafios sociais e ambientais. Essas obras nos alertam sobre os perigos da conformidade excessiva por parte da população, do controle governamental exacerbado e da perda da individualidade frente às normas impostas. A realidade atual, marcada por crises climáticas e avanços tecnológicos que possibilitam formas inéditas de vigilância, manipulação e modulação, torna urgente a discussão sobre até que ponto estamos caminhando rumo aos cenários previstos nessas ficções. É essencial que, como sociedade, reflitamos e atuemos para preservar nossa autonomia e diversidade, evitando que essas previsões se concretizem.