Escola não é supermercado de projetos de vida para tratar alunos e suas famílias como clientes
Introdução aos apaixonados
Esta reflexão se dirige a educadores apaixonados pelo fascinante ato de ensinar que leva a uma aprendizagem efetiva. Tal fascínio é um motor na busca por metodologias, materiais, atividades e qualquer outra coisa que torne as aulas realmente significativas e, por que não, inesquecíveis. Contudo, algo está dando errado nisso e faz algum tempo. A evasão escolar no Brasil pós-pandemia está, segundo pesquisa da Unicef, em 11% entre estudantes de 11 a 19 anos. Ao comparar com informações do Censo Escolar 2015, constata-se um aumento preocupante, em especial no segmento do Ensino Médio. Essa conta não deve ser creditada de maneira exclusiva à pandemia, que agravou uma situação que vem sendo construída a muitas mãos há algumas décadas sob a alegação de reformas necessárias e que, na verdade, não só se demonstram ineficientes: estão agravando os problemas. Uma das mãos mais responsáveis por isso, sem dúvida, é a mão invisível do mercado, que nos tempos atuais, através de políticas neoliberais, molda a Educação para atender às suas necessidades. Esse processo se deu através de muitos estudos e orientações sobre o que fazer. Hoje constatamos a privatização em curso da Educação sendo propalada como solução dessa crise, mas que na verdade é sua principal causadora. Este trabalho de conclusão de disciplina quer demonstrar com exemplos utilizados durante o semestre essa relação de causa e efeito entre as teorias bem intencionadas e ações de desarticulação do processo de aprendizagem.
Boas intenções cheias de lacunas
Na obra “Os arautos da reforma e a consolidação do consenso: anos de 1990”, as autoras sintetizam as ações de revolução educacional que tinham como fundo sócio-político superar a crise econômica que fora controlada através da ascensão neoliberal. Nada mais intuitivo, no entender de promotores das necessárias reformas educacionais, do que adotar os mesmos princípios neoliberais na Educação. Assim se deu o estabelecimento de compromissos nos estudos e orientações propostos em encontros e conferências mundiais tendo em vista “definir o horizonte político e ideológico de sua atuação e as metas a serem alcançadas pelos países” (Shiroma, 2002, p.60). Embora propusessem universalizar a Educação pública e gratuita em uma perspectiva, traziam consigo também a mudança ideológica de alterar o pensamento dos trabalhadores de lutar por direitos para lutar por mais trabalho sem direitos, pois
“recomendava que os países da região investissem em reformas dos sistemas educativos para adequá-los a ofertar os conhecimentos e habilidades específicas requeridas pelo sistema produtivo. Eram elas: versatilidade, capacidade de inovação, comunicação, motivação, destrezas básicas, flexibilidade para adaptar-se a novas tarefas e habilidades como cálculo, ordenamento de prioridades e clareza na exposição, que deveriam ser construídas na educação básica.” (idem, p.63)
onde tais habilidades exigiam dedicação intensa dos educandos e educadores perdidos, pois não havia planejamento ou gestão em tal empreitada, para entregar tal conhecimento. Para o século XXI, o relatório Delors aprofundou essa reforma com mais lacunas para a mão invisível do mercado preencher: “assegurar uma educação básica para os alunos continuarem aprendendo (mesmo que não seja através de institutos formais)... dualismo da educação – separando a educação das classes populares (básica) e elitista (média e superior)” (idem, p.68). A ideia geral é boa, mas as lacunas, providenciais ou não, prepararam terreno para a privatização em curso da educação. E isso ainda permeia a elaboração dos documentos mais relevantes voltados para a reforma do ensino. Uma leitura do que está escrito para compreensão do que não está dito mas permitido é obrigatório para quem precisa compreender como se construiu um ensino tão ineficiente e desmotivador aos estudantes de hoje.
Privatização em curso da Educação
Todo arcabouço teórico que comprometeu governos com as reformas educacionais, motivados em especial pelos recursos financeiros para aplicar nesse sentido, serviu de base para a elaboração de leis e ações executivas ao longo das últimas décadas. A prática não se mostrou tão dissimulada quanto a teoria, revelando de maneira explícita a entrega do controle de ações educacionais à iniciativa privada, sob a alegação de ações mais dinâmicas e efetivas do que o Estado teria condições de promover. Dagnino 2004 apresenta, por exemplo, a ascensão das ONGs como privatização velada:
“As relações entre Estado e ONG parecem constituir um campo exemplar da confluência perversa que mencionamos antes. Dotadas de competência técnica e inserção social, interlocutores /’confiáveis’ entre os vários possíveis interlocutores na sociedade civil, elas são frequentemente vistas como os parceiros ideais pelos setores do Estado empenhados na transferência de suas responsabilidades para o âmbito da sociedade civil… Por mais bem intencionadas que sejam, sua atuação traduz fundamentalmente os desejos de suas equipes diretivas.”
Se tais movimentações convergissem para um aumento da aprendizagem efetiva, qualificação para empregos ou fomentação de pesquisa científica, seria controverso mas no sentido geral positivo. Contudo, uma evasão de 11% não pode ser considerada um resultado, que dirá positivo. Trata-se de um fracasso agravado por um remédio que a mão invisível do mercado insiste em administrar no paciente que não sabe mais como e a quem pedir socorro.
E, mantendo o paralelo com tratamento de saúde, a reforma do Ensino Médio está se mostrando um verdadeiro tratamento com Cloroquina contra a COVID-19: não é apenas ineficaz, mas se revela mortal ao paciente. A nota técnica de 2022 sobre o agravamento das desigualdades escolares graças ao Novo Ensino Médio na rede estadual de São Paulo mostra como o aumento da carga horária, uma medida positiva para melhorar a qualidade do aprendizado, está se perdendo por causa da escolha do modelo EAD para implementar essa expansão de horário e itinerários formativos. E por um motivo simples:
“… em todas as escolas consideradas os/as professores/as consultados/as reportam que a grande maioria dos/as estudantes não acessa os conteúdos dos cursos a distância no CMSP, e comparam a atual oferta regular do NEM com a precária oferta emergencial de ensino remoto durante a pandemia. Conforme dados apurados pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP), 29% dos/as estudantes da rede estadual simplesmente não interagiu com o CMSP ao longo de todo o ano de 2020; entre os que interagiram, 81,2% (2,62 milhões de estudantes) permaneceram no máximo duas horas conectados/as no aplicativo.”
E essa falta de engajamento dos estudantes acontece por falta de recursos das famílias, falta de itinerários realmente escolhidos pelos estudantes, falta de acompanhamento eficaz do modelo EAD, falta de capacitação dos professores. Tudo o que precisava estar acontecendo segundo os estudos elaborados e compromissos assumidos pelos governos até para receber apoio financeiro. Onde aconteceu o problema para isso ter falhado? Segundo Mézáros (1994, pg. 120) o problema está na adoção do modelo neoliberal:
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“A adoção do modelo neoliberal corresponde e expressa uma enorme fatia dos interesses, desejos, crenças e aspirações presentes nos países latino-americanos: nas suas sociedades civis e nos seus Estados… De facto, da maneira como estão as coisas hoje, a principal função da educação formal é agir como um cão de guarda autoritário ex officio para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de interiorização, de forma a subordiná-los às exigências da ordem estabelecida.”
Contra a falácia neoliberal, que tal a disrupção propositiva?
A construção da falência constatada da falácia neoliberal na Educação tem um propósito bem claro: tornar o aprendizado um produto como outro qualquer, não mais um direito a que todos têm acesso de maneira igualitária (por mais que se lute para que direitos se mantenham com equidade), mas sim algo regido pela mão invisível do mercado. Sujeita portanto às regras de oferta e procura. Isso que vemos claramente na proposta dos itinerários formativos do Novo Ensino Médio, fazendo com que escolas de periferia não tenham opções a oferecer a seus alunos. Se parece algo novo e sujeito a interpretações equivocadas, o quadrinho da Mafalda demonstra um cenário mais consolidado em nossa sociedade:
Escola não é supermercado de projetos de vida para tratar alunos e suas famílias como clientes. Talvez o erro seja essa visão cíclica que se renova todos os anos ao invés de uma visão de um processo em mutação constante. É preciso propor uma disrupção desses ciclos equivocados que só fazem perder oportunidades de formação significativa de seres humanos em desenvolvimento e, por conseguinte, dos educadores comprometidos com isso. Em uma proposta assim, a lógica neoliberal não encontra espaço para florescimento, pois não consegue se esconder nas orientações de reforma.
Bibliografia
Evangelista, Olinda, Eneida Oto Shiroma. Política educacional. Rio de Janeiro DP&A. 2002. 2a edição.
MÉZAROS, István. A educação para além do capital. Boitempo editorial, 2015.
DAGNINO, Evelina. ¿ Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando?. 2004.
REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. Novo Ensino Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]. São Paulo: REPU, 02 jun.2022. Disponível em: www.repu.com.br/notas-tecnicas.