A escola virtual e a autonomia estudantil

A escola virtual e a autonomia estudantil

(segundo capítulo) O ensino virtual e a socialização

Duas grandes questões tem sido amplamente discutidas pelos praticantes da educação domiciliar e podem ser aplicadas ao ensino escolar à distancia : a socialização dos alunos educados em casa e seu efeito na preparação para o exercício da plena cidadania.

Estas são questões que têm preocupado famílias e governos, já que a escola ocupa atualmente um lugar privilegiado para o desenvolvimento da socialização de crianças e jovens. O desenvolvimento comportamental das crianças se dá em três esferas complementares - em casa, na escola e com seus pares - a socialização de crianças virtualmente escolarizadas representa um desafio. Em tempos de distanciamento social, a socialização, antes parte ativa dentro de uma educação do sensível e exercitada no ambiente escolar, doméstico e social, encontra-se agora substancialmente sob a responsabilidade das famílias. As consequências são o empobrecimento das possibilidades de uma socialização à maneira tradicional. Nesse contexto inédito cabe também aos atores do sistema educativo encontrar soluções para suprir as necessidades dos estudantes.

A educação básica virtual é bastante recente em nosso País e no exterior. Assim, para melhor explorar as questões ligadas à socialização de crianças escolarizadas em casa - uma prática antiga e que evoluiu junto com o desenvolvimento tecnológico, abordaremos a educação doméstica, mais conhecida como homeschooling, e que tem procurado nas últimas décadas criar estratégias visando à socialização de crianças e jovens. Por sua semelhança à atual escolarização virtual em tempos de distanciamento social, a escolarização em casa pode nos apontar os problemas mais recorrentes e as melhores soluções encontradas para a promoção da socialização e do pleno exercício da cidadania. Este será o objeto de estudo do primeiro capítulo.

 

1.1. O Homeschooling e a socialização: o que a escolarização virtual pode aproveitar deste modelo

O modelo de educação doméstica pode ser percebido em alguns países, tais como a Inglaterra e os Estados Unidos. Eles começam a ser empregados como forma de possibilitar a escolarização de crianças em ambientes rurais ou de difícil acesso às escolas. Nesse sistema, as crianças são educadas em casa, geralmente com o apoio de um dos pais e eventualmente com o auxílio de professores particulares. Os estados proporcionam o material didático de apoio às famílias que exercem assim um grande controle sobre a educação de seus filhos, definindo metodologias didáticas e o tipo de socialização a ser provido no ambiente exterior à casa. Geralmente, as famílias apoiam-se em atividades extracurriculares para desenvolver a socialização de seus filhos, bem como os integram em suas interações sociais.

De fato, os partidários da educação doméstica questionam o tipo de socialização proporcionado pelas escolas, que segundo estes, simplesmente aproximaria crianças da mesma idade e que geralmente compartilham níveis socioeconômicos similares, sem contribuir para o contato com a diversidade - este último amplamente disponibilizado pela participação social ativa. A socialização escolar é percebida como limitada se comparada à que as famílias de crianças educadas em casa podem proporcionar a seus filhos, como o contato com crianças de várias idades, com adultos e com os demais membros da sociedade.

De fato, em países onde a escolarização doméstica é considerada como uma alternativa legal, proliferaram associações que propõem agir em complemento à socialização proporcionada pela família. Estas associações preveem formas de interação social alternativas, tais como a prática de esporte, a participação em grupos de estudos, ou ainda viagens. Por exemplo a Home School Legal Defense Association, uma das mais conhecidas:

“As associações de defesa ao homeschooling defendem que a socialização infanto-juvenil não acontece somente no ambiente escolar. Nesse ponto, chama a atenção o papel das associações de homeschooling para o sucesso da socialização das crianças. Essas entidades, entre outras, são responsáveis por promover a interação das crianças nos estudos em grupo, grupos na internet ou viagens de campo”[1].

Observa-se que mesmo as homeschooling associations recorrem à internet para viabilizar alguma de suas práticas de socialização, propondo atividades em grupo virtuais. Nota-se que não existe uma definição precisa do que pode ser considerado como uma prática de socialização, mas somente um espectro de possibilidades mais ou menos definidas tais como as atividades colaborativas, sejam elas virtuais ou presenciais, educativas, escolares ou paraescolares.

No Brasil, os tipos socialização complementares mais vistos são os cursos suplementares tais como a prática de esportes, os estudos de idiomas estrangeiros ou os grupos de estudo virtuais. Observa-se que, isoladamente ou combinadas ao ensino doméstico, estes tipos atividades associativas não têm sido consideradas como suficientes ao pleno desenvolvimento social dos estudantes. Para mais detalhes sobre o educação doméstica e a socialização recomendamos a leitura do trabalho de TCC de Luciane Muniz Ribeiro, constante na bibliografia.

No que tange à legislação brasileira sobre a possibilidade do ensino no ambiente familiar anterior à pandemia do COVID-19, em setembro de 2018 o STF decidiu, por maioria, que apesar de não haver vedação constitucional explícita, a prática é ilegal, por não haver lei regulamentando o ensino domiciliar. Em interpretação diversa, podemos citar o parecer da promotoria em processo aberto pela família Silva do Paraná, emitido em novembro de 2007, pela promotora de justiça Mônica Louise Azevedo, no qual se conclui pela possibilidade legal aberta pela LDB 9394/96 de que a escola não fosse a única entidade responsável pela educação e socialização:

 “No entanto, a análise que ela fez da LDB 9394/96 é a de que esta, ao disciplinar a educação, não a teria restringido às instituições próprias de ensino (Art 1º, §1º da LDB 9394/96), mas a apresentado como um processo formativo que se desenvolve em diversos ambientes da vida em sociedade. A esse argumento, acrescentou o fato de tal lei preconizar a inclusão escolar e o acesso dos alunos a qualquer tempo na educação básica, mediante avaliação classificatória, independentemente de escolarização formal anterior (art. 24, II, c da LDB 9394/96), bem como avanço nos cursos e séries (art. 24, V, c e d da LDB 9394/96). A promotora ainda observou que, apesar dessa modalidade de ensino não estar expressamente contemplada no sistema educacional brasileiro, ela também não estaria vedada, sendo possível admiti-la desde que garantidos os conteúdos e objetivos do ensino fundamental, como previsto no art. 32 da LDB 9394/96, para o qual se mostra necessária a realização de avaliações periódicas”[2].

           O tema da educação domiciliar será, como visto, ainda sujeito a evoluções interpretativas em consonância às recentes mudanças nas práticas e realidades sociais.

           A educação escolar virtual poderia futuramente ser enquadrada numa interpretação legal similar, o que torna extremamente interessante o acompanhamento dos processos legais relativos à educação doméstica brasileira. De fato, a mais importante alegação impeditiva à educação doméstica tem sido a limitação das possibilidades de convivência social e comunitária e sua consequente limitação a um tipo específico de cidadania aprendido num círculo familiar, este considerado como muito limitado para assegurar o desenvolvimento saudável.

           De fato, o processo de legalização da Educação à Distância nos níveis superiores teve na LDB n 9.394/1996 artigo 87, parágrafo terceiro, inciso III, seu principal apoio jurídico, ao incluir a modalidade nos programas de formação de professores. Essa abertura se originou da necessidade de incrementar o nível profissional dos educadores em todo o território nacional.

           Uma necessidade similar, de fornecer a educação básica obrigatória em tempos de pandemia e distanciamento social, tem aberto novas possibilidades à escolarização virtual, tornando desejável o acompanhamento dos aparatos legais prevendo as formas de educação básica, formação de professores e educação doméstica no intuito de prever novas possibilidades de ação educativa.



[1] BARBOSA Luciane Muniz Ribeiro, Ensino em casa no Brasil: um desafio à escola?, São Paulo, USP, 2013, p 230.

[2] BARBOSA Luciane Muniz Ribeiro, Ensino em casa no Brasil: um desafio à escola?, São Paulo, USP, 2013, p 72.

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