ESG: Ascensão – e Queda, será?
No Brasil e no mundo, os valores corporativos ligados a ESG (do inglês Environmental, Social and Governance) já vêm de quase 40 anos – mas em “banho-maria”, até uma ascensão repentina de 4 anos para cá. Essa aceleração desses últimos anos foi tão rápida, que está passando agora por um período de críticas, levando a ajustes e adaptações. Seria natural, não? No entanto, alguns críticos já insinuam que estamos vivendo a decadência do ESG, que teria deixado de fazer sentido para as empresas e a sociedade em geral. Será?
No Brasil, nem tempo tivemos de assimilar suas vantagens vis-à-vis aos movimentos corporativos anteriores da RSC (Responsabilidade Social Corporativa) e da Sustentabilidade. Nem mesmo sequer incorporamos o termo em português, que é ASG (Ambiental, Social e Governança)…. Tomara que essa queda vislumbrada para o ESG não se concretize; mas, para isso, o que é preciso fazer?
ESG: As duas fases da Ascenção
Podemos falar em duas fases da ascensão ESG. A primeira, de 1980 até 2018, de gestação e ascensão lenta, mais conhecida pelos nomes ‘Responsabilidade Social Corporativa` (ou RSC) e Sustentabilidade. A segunda fase, de 2018 até hoje, de ascensão rápida e já com a denominação ESG (Environmental, Social and Governance). Vale destacar que a sigla ESG surge pela primeira vez em 2005, durante uma iniciativa do Programa das Nações para o Meio Ambiente, coordenada por Paul Clements-Hunt.
Primeira fase
No campo da teoria, em contraposição à Teoria do Shareholder de Milton Friedman, que preconizava o compromisso principal da empresa como sendo o da geração de lucros para os seus donos / acionistas, Edward Freeman propôs a Teoria dos Stakeholders (1984) segundo a qual a responsabilidade da empresa não é restrita aos seus acionistas, mas diz respeito a todos os seus públicos envolvidos.
O movimento da Responsabilidade Social Corporativa (RSC) foi sobretudo baseado nessa Teoria dos Stakeholders de Freeman. Na ocasião, Freeman admitiu que a sua motivação para ampliar o foco da responsabilidade das empresas foi a de poder viabilizar a capacidade de gestão delas, sobretudo nos EUA e Europa dos anos 1960-70 frente às críticas crescentes dos movimentos sociais por direitos civis, de mulheres, antiguerra, consumo e meio ambiente.
Indo nessa mesma direção de Freeman, e inspirado no conceito do desenvolvimento sustentável trazido pelo Relatório Brundtland (1987) das Nações Unidas, intitulado ‘Nosso Futuro Comum`, em meados dos anos 1990 John Elkington propôs o modelo de gestão do Triple Bottom Line, ou dos 3 P`s (Profit, People, Planet).
Considerado como o ´pai da sustentabilidade`, no seu livro ´Cannibals with Forks` (1997), Elkington desenvolveu o método para as empresas, levando em consideração o tripé dos aspectos econômicos, sociais e ambientais. Ele buscou mostrar que é possível, sim, ter progresso quando há ‘canibalismo com garfos`. Ou seja, o capitalismo sustentável é viável se as empresas (associadas a canibais) fizerem uso dos 3 pilares da sustentabilidade (os 3 dentes do garfo), que são a prosperidade econômica, a qualidade ambiental e a justiça social.
No âmbito internacional, a implementação do conceito da sustentabilidade veio, desde então, se fazendo por meio de uma série de chamamentos, normas e padrões de relatórios (a maior parte deles surgindo nos EUA!), sendo os mais conhecidos:
No Brasil tivemos, entre 1997 e 2005, a iniciativa pioneira do IBASE de estímulo á publicação dos balanços sociais das empresas, para além dos seus indicadores financeiros. Papel relevante também entre as grandes empresas foram os ‘Indicadores Ethos`, criados em 2000 com inspiração nos padrões internacionais, sendo que atualmente a metodologia se encontra em processo de reformulação.
Cabe ainda destacar os 3 aspectos relevantes que caracterizaram esse primeiro momento ESG, de ascensão lenta.
Primeiro, a motivação central foi ligada a fatores externos à empresa. Ou seja, o movimento ESG surgiu como reação às fortes críticas ao modus operandi das grandes corporações na Europa e EUA.
Segundo, mais do que ter práticas realmente diferentes, o importante para as empresas naquele momento era modificar / ajustar a narrativa e buscar sintonia com as críticas barulhentas da sociedade. Na realidade, tratava-se mais de parecer sustentável, não precisava (ainda) ser sustentável, ou seja, mudar as práticas relevantes da empresa.
Terceiro, e de certa forma relacionado ao item anterior, basicamente todos os instrumentos e ferramentas concebidos pró sustentabilidade tiveram caráter voluntário e de sensibilização. Não havia obrigatoriedade de adesão, de cumprimento de normas até então, mesmo porque não havia clareza ( e ainda não há!) sobre o ideal do que é ser empresa ESG.
Segunda fase
Ao longo da fase anterior foi ficando cada vez mais claro que ‘ser ESG` não era uma estratégia corporativa (apenas) para incluir os interesses dos demais stakekeholders da empresa (colaboradores, clientes, fornecedores, governos e meio ambiente), até então de escanteio nas empresas. ‘Não ser ESG` foi se mostrando como sendo um risco real para os resultados financeiros da empresa no longo prazo e, portanto, questão fundamental para o radar das empresas.
O Brasil, por exemplo, foi pródigo em exemplos na década passada. Tivemos os casos de corrupção nas relações de governança da Petrobras e da Odebrecht, de destruição ambiental e mortes nas comunidades do entorno com o rompimento das barragens da VALE, de desmatamento ilegal na cadeia de fornecedores dos frigoríficos JBS e MARFRIG, de acusações de comportamento racista pelo supermercado Carrefour. E, como vimos, bastou que esses fatos viessem à tona para que essas empresas sofressem fortes prejuízos financeiros, fuga de acionistas e perda de valor de suas ações no mercado.
Larry Fink, CEO da maior gestora de investimentos do mundo (a BlackRock), conseguiu captar bem essa disfunção na gestão corporativa e, a partir de 2018, as suas Cartas anuais (aos dirigentes das empresas investidas) se tornaram referência desse novo momento. Embora ele já as viesse escrevendo desde 2012….. Foi quando, na condição de voz respeitada no mercado financeiro, Fink passou a alertar veementemente que o risco ESG seria um risco real para a lucratividade das empresas e que, portanto, punha também em risco os recursos dos investidores aplicados nessas empresas. Daí porque, segundo ele, os fundos de investimento e instituições financeiras em geral, em sua condição de ‘zeladores` do dinheiro alheio, tinham o dever fiduciário de banirem de suas carteiras empresas com práticas não sustentáveis.
Foi quando, então, se fechou o círculo virtuoso ESG no mercado financeiro: empresas que não demonstrassem ser ESG teriam risco financeiro elevado, não conseguiriam captar recursos e perderiam dinamismo. Investidores só deveriam aplicar em empresas dinâmicas, rentáveis, com baixo risco financeiro e, melhor ainda, se fossem percebidas como “empresas do bem”.
Frente a essa nova percepção, toda empresa deveria dar evidências de estar comprometida com as práticas ESG. E o mercado financeiro de ações e títulos ESG disparou de 2019 para cá, tanto a nível nacional como global. No mundo o valor total de títulos e empréstimos ambientais e/ou sociais chegou a US$ 4,0 trilhões no início de 2022 , tendo crescido US$ 732 bilhões em 2020 e o dobro disso em 2021. Ou seja, desse montante dos US$ 4,0 trilhões, praticamente metade dele foi emitido só nos 2 últimos anos. (FiBraS, 2022, Sumário)
A América Latina ainda se encontra atualmente bem atrasada no campo do mercado financeiro ESG, comparada com EUA (1º lugar), seguidos (nessa ordem) por Europa, Canadá, Japão, Austrália e Nova Zelândia. A América Latina é responsável por apenas 1% do valor total dos títulos sustentáveis no mundo, sendo que o Brasil lidera na região. Em 2021, o Brasil atingiu recordes de captação em ESG no valor de US$ 15,8 bilhões, alta de 531% em relação a captação em 2019, levando o país a um estoque de títulos sustentáveis de quase US$ 28 bilhões no início de 2022. (FiBraS, fev.2022)
ESG: Queda – Será?
De 2018 para cá, ‘ser ESG` foi deixando de ser percebido como custo para as empresas, e se tornando em oportunidade fortemente valorizada, tanto pelos dirigentes das empresas como pelo mercado financeiro. Só que as “finanças sustentáveis” explodiram a tal ponto que começaram a apresentar disfunções nítidas e as críticas só veem engrossando desde então. Alguns exemplos dessas críticas e disfunções:
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As críticas
Em post anterior (ESG – Medir o desempenho e os impactos), havia comentado sobre estudo do MIT Sloan School of Management (ago.2020) que demonstrou ter sido muito baixa a correlação entre os ratings ESG (de 823 empresas) calculados segundo 5 agências classificadoras (de 0,61), o que já não ocorrera em termos dos seus ratings de crédito (de 0,990), ou seja quase 100% de correlação. Quer isso dizer que uma mesma empresa pode ser classificada como de elevado comprometimento ESG por uma agência classificadora, e de baixo comprometimento ESG segundo outra agência classificadora.
Com essa sua fala, a consequência imediata foi que Stuart Kirk perdeu a sua posição no HSBC. Por outro lado, gerou estranheza e repúdio junto aos defensores ESG, que viram com consternação a tamanha indiferença de alto representante do setor financeiro global com a questão das mudanças climáticas. Mas ele foi também bastante aplaudido (nas mídias sociais) por profissionais do setor financeiro por sua coragem em dizer o que grande parte só pensava mas ficava calado. Inclusive, Paul Clements-Hunt, um dos pais do termo ESG, foi firme em afirmar que não concordava com Kirk, porém “saudava o debate. Pois ESG foi um tipo de vírus que plantamos em 2004, e é claro que representa hoje uma ameaça aos defensores das finanças tradicionais, uma vez que foi baseada na sua própria linguagem e modo de pensar”. (Bloomberg, maio 2022)
O que vem sendo feito?
Daí, como esses especialistas, também acredito que a agenda regulatória vem se tornando imprescindível nesse momento, devendo começar pela exigência de padrões mínimos de divulgação para ir, aos poucos, avançando na direção da transparência, simetria de informações, comparabilidade e consistência dos indicadores.
Tal como a Resolução 59 da CVM, essa iniciativa do Pacto Global não tem caráter obrigatório nem fiscalização formal.
E então? O que fazer daqui para frente?
Entendendo as críticas ESG
Como vimos, na primeira fase (1984-2018) do movimento ESG, o foco foi voltado para os demais stakeholders, para além dos interesses exclusivos dos shareholders; e as mudanças havidas foram sobretudo de caráter superficial, cosmético, sem chegar a alterar a estrutura de produção dos negócios.
Só que na sequência, na segunda fase, os shareholders das empresas perceberam que não cuidar “de verdade” das questões relacionadas aos stakeholders estava começando a colocar em risco os seus próprios interesses. Ou seja, a lucratividade deles começava a dar mostras de estar sendo realmente afetada por fatores associados à própria estrutura de operação de suas empresas – sobretudo as questões ambientais, de corrupção e governança, de evolução tecnológica e no modo da empresa se relacionar com os seus colaboradores, fornecedores, clientes e comunidades do entorno.
Foi quando (2018-2019) os shareholders abraçaram de verdade a causa ESG e, com isto, provocando forte aceleração nas questões ESG dentro da empresa (na gestão dos negócios) e fora dela (no mercado financeiro) – que, até então, vinham em banho-maria.
Dentro da empresa o mindset corporativo teve que ir se adaptando no sentido de incorporar os quesitos ESG na estrutura do negócio, ou seja, ao seu core business. Ou seja, um novo modo de atuar que é exigente em termos de novos investimentos, de abandonar padrões tradicionais (porque eles não estão mais funcionando), de pensar “fora da caixa” e de fazer diferente as coisas.
Já fora da empresa, ou seja, no mercado financeiro, os títulos ESG dispararam, sem parecer haver um embasamento real com as mudanças ESG ocorrendo nas empresas. Por isso, os fundos e títulos ESG acabaram passando a impressão de estarem inflados e forjando uma realidade ESG que não é real nas empresas, fazendo exacerbar um clima de desconfiança.
Nessa segunda fase, o que as críticas ESG estão revelando é que parece haver um forte descompasso entre os avanços ESG nas empresas e os avanços ESG no mercado financeiro. O mercado financeiro parece ir muito mais acelerado do que a realidade ESG das empresas. Será mesmo? Até que ponto? Qual(is) a(s) razão(ões)?
A impressão também é a de que há uma cortina de fumaça que se interpõe entre as empresas e o mercado financeiro de títulos sustentáveis. Precisamos romper com essa cortina. E, para isso, precisamos avançar metodologicamente e conseguir traduzir a realidade ESG das empresas para o mercado financeiro por meio de indicadores relevantes, robustos e comparáveis.
Porém, o que veio sendo feito nesse sentido até agora, por exemplo no Brasil, ainda parece ser insuficiente. As empresas continuam tendo total liberdade em divulgar apenas os indicadores que desejam tornar públicos. Não há ainda um compromisso real com indicadores mínimos e necessários de divulgação, padronização metodológica, comparabilidade, transparência e fluidez de informações entre o que as empresas fazem em ESG e a constituição dos títulos ESG do mercado financeiro.
Como crescer com as críticas?
Sem dúvida, estamos passando – não só no Brasil como no mundo todo – por um momento crítico para o ESG, mas também de euforia. Daí porque é preciso ter abertura e tranquilidade para evoluir com essas críticas, fazer as adaptações necessárias, de modo a poder seguir em frente com a Agenda ESG, imprescindível para as empresas e a sociedade como um todo.
Enfim, de forma alguma ESG está em queda, muito pelo contrário. Particularmente, sob a ótica ESG no Brasil, as condições mais imprescindíveis nesse momento me parecem ser avançar inicialmente na medição e padronização dos indicadores ESG nas empresas, e depois na obrigatoriedade de sua publicação. Só assim conseguiremos, nessa ordem, (i) consolidar o comportamento ESG nas empresas, (ii) fortalecer o mercado financeiro de títulos ESG, e (iii) viabilizar a tão desejada contribuição do setor corporativo nacional para o alcance dos ODS.
Post também publicado no meu blog.
Corporate Sustainability/ESG Consultant, Professor Associado na FDC - Fundação Dom Cabral, Advisor Professor at FDC
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