Estamos de saco cheio do home office, mas estamos com medo de abrir mão dele
Existe uma frase, que não sei quem escreveu, que é uma das mais cruéis sobre nosso convívio social:
“Uma das coisas mais tristes da infância é que as crianças não sabem que aquele dia em que estão indo brincar com os amigos será a última vez que todos vão brincar juntos.”
Não sabíamos disso naquele churrasco de 13 de março de 2020, quando, na semana seguinte, quase todo o time ia viajar para diversos lugares do mundo e ficaríamos algumas semanas sem nos encontrar. Nunca mais nos encontramos como um time e também nas semanas seguintes ninguém viajou.
Estou em home office desde o dia 16 de março de 2020, aquele dia em que o mundo parou. Sim, quando as coisas melhoraram tive um período híbrido, indo 1 ou 2 vezes por semana ao escritório, mas ficando muito pouco tempo, pois levar o computador para outro lugar só para fazer reunião no meio de um monte de gente não fazia muito sentido.
Tenho o luxo de ter um home office extremamente confortável: cadeira de primeiríssima linha, computador de última geração, três monitores, ar-condicionado (fundamental nesse período de aquecimento global), cômodo exclusivo, Nespresso sempre abastecida, Red Bull, cookies, almoço feito e etc. Ninguém quer sair disso. Meu trabalho envolve pesquisas, análises, reuniões com pessoas em vários locais do mundo, programação, nos ultimos meses o ChatGPT (meu colega de trabalho preferido). Para que eu vou querer sair daqui?
Até outubro do ano passado, trabalhava em um desses unicórnios brasileiros. Tinha vários amigos por lá, o CNPJ tinha virado minha segunda família, meu círculo de convívio principal, companheiros de cerveja, estádio, clube, churrascos e viagens. Viajava mais com eles do que com minha família. Eles entraram na minha casa sem pedir permissão em março de 2020 e se instalaram lá. Meus filhos os conheciam, minha esposa tinha virado minha talent partner, pacientemente ouvia minhas reclamações de colegas, projetos, decisões de alguém e também compartilhava as festas de fim de ano virtuais, os happy hours virtuais e tudo mais virtual que inventamos fazer naqueles anos
Um dia, o CNPJ, que não era uma ONG, resolveu que aquela matrícula deveria ser cancelada. E do dia para a noite, o parágrafo acima acabou. Virei consultor, mentor, analista, freelancer, empresário, designer, programador, motorista, pai, marido. Me tranquei ainda mais em meu escritório. Fiquei mais tempo em casa. Ainda mais presente, a porta do final do corredor que ficava sempre fechada passou a ficar mais aberta. Como um gás ocupei trodos os espaços do meu apartamento, daqueles antigos, espaçosos, Se antes meu escritório era meu posto de trabalho em um unicórnio, naquele momento minha casa inteira era a sede de um conglomerado.
Abria o iPad no sofá da sala de TV para rabiscar projetos inovadores de novos projetos, fazia ideação de produtos na mesa da sala com post-its sobre o vidro, discutia com meus filhos no café da manhã um novo jogo de Roblox, no quarto com a esposa fazia testes de UX em um novo mockup. O home office chegou até o hall do prédio.
Mas eu não tenho colegas de trabalho. Encho a paciência de alguns amigos com quem discuto algumas ideias de negócios, projetos e tudo mais. Alguns clientes com quem converso durante o dia a dia, algumas trocas. Alguns aprendizados. Estou aqui dentro sozinho. E isso é perigoso. Você fica mais burro. Você fica menos útil. O dinheiro pode até vir, mas o dia a dia é burro e chato..
Não posso ser um nômade digital. Além de não ter mais idade, nem ser bonito o suficiente, muito menos sou cool o bastante para ter essa vida. Tenho de uma família com dois filhos lindos e uma esposa (sim, de saco cheio, que quer que eu vire nômade digital e só volte daqui uns 2 meses).
Então, nas últimas semanas, comecei a procurar um emprego de verdade. Algo que me faça sair de casa, que me obrigue a viajar, que mude o tema. Que me tire do meu TDAH e pare de inventar modas quase compulsivas dentro de casa: Legos, marcenaria, carrinhos de controle remoto ou a última da vez: plastimodelismo; claro, pensei em comprar uma impressora 3D, uma serra de mesa e um fatiador de frios nesse período de 3 anos e meio de home-office. Resolvi aplicar para inúmeras vagas, estou procurando emprego (como é chato e difícil). Já fiz de quase tudo no digital, sou ótimo em um monte de áreas e mais ou menos em outro monte. Sou um pato muito, muito bom. E mais cedo ou mais tarde, alguma vaga vai surgir.
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Mas…
Nesse momento, começa a bater aquele medo de quem está dentro de um casulo confortável e quentinho (geladinho nesse momento): o que eu estou inventando? A volta da discussão: “Tá quente, diminui a temperatura! Tá frio, desliga o ar-condicionado! Quem roubou minha cadeira? Alguém libera uma sala de reunião? Trocaram a marca do café?”. Medo do trânsito, medo de ter horários, de colocar roupas de gente (e não só na hora de entrar em call). Medo do colega chato, da menina que fala alto, de dividir banheiro.
Vamos virar a noite trabalhando, qual pizza vamos pedir? Hoje tem churrasco, gente, quem não come carne? Chopp ou cerveja; divide igual quem bebe e quem não bebe! Tem festa junina, vamos comprar fogos. Aniversário do fulano, vamos comprar glitter para pôr no fone dele…
Aquelas velhas discussões da hora do almoço:
Onde vamos almoçar? No Curly, Salitre, Espanholas, Miguxa, Medievais, HelloKit, Chinês de baixa qualidade, “E você?”, Charuto, Barbiekill, Vegano, Feijoada da Ofensa, Morte Lenta…
Quantas histórias fazemos em um escritório. Sim, amamos nossa casa, adoramos nossa zona de conforto. Mas, no fundo, no fundo (exceto os desenvolvedores hardcore), somos criaturas sociáveis. Precisamos conversar com pessoas diferentes todos os dias. Precisamos de novos assuntos, novos apelidos para restaurantes, novos pequenos conflitos inúteis e eternos. Novos desafios de gostar de gente nova e diferente.
Todo mundo tem medo de abrir mão de conforto, privacidade e tranquilidade. É assim desde o dia que criamos o conceito de quarto com banheiro. Mas se continuarmos isolados, não vamos evoluir, não seremos pessoas melhores, não nos divertiremos e não faremos festas, viagens, eventos, não trocaremos experiências e cultura inútil, não aprenderemos músicas novas e tudo mais que o convivio obrigatório de um dia a dia nos traz. A trincheira corporativa nos faz falta.
Acho que estou pronto para voltar para isso, quero voltar e enfrentar todos os desafios sociais existentes nesse mundo tão longínquo. Mas quero também o meu cantinho, quero alguns dias por semana ficar em casa no meu esconderijo, fazendo meu trabalho do mesmo jeito, mas sem brigar pelo ar-condicionado ou pelo café de baixa qualidade.
Claro, um dia ou outro em casa não faz mal nenhum, e também todos os dias no escritório, ou talvez todos os dias em casa. Não existe uma fórmula certa ou errada. Não existe uma cultura só. Cada pessoa, cada empresa, cada gestor, cada colaborador conhece sua realidade, seu momento, sua verdade, sua necessidade.
No meu caso? Estou pronto para voltar ao escritório, mas as vezes fazer Home office, de preferência no dia em que a Sílvia, minha esposa, não esteja fazendo home office.
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1 aSaudade de escutar um "sexta é dia de read only"... kkk Esse lance de home office tb não é comigo... um dia ou outro, ajuda bem, claro! Mas aquele 2020 foi muito! Voltei pro presencial em mar2021, praticamente full... 🙂
Senior Business Analyst na Plan A Technologies
1 aÓtimo texto, muito sensato e que representa muita gente! Quem te mal-interpretar é porquê estará buscando motivos para se ofender de qualquer jeito... Para estes, não há nada a ser feito.
HRBP Industrial | DHO | DE&I | Mentora
1 aRodrigo Ranieri eu ainda não te conhecia, e seu artigo chegou como um abraço quente (geladinho!) por aqui. Acabei de abrir mão do home office por não ter me adaptado. Sofri por não ter trocas presenciais, me isolei, me vi distante dos meus amigos e muitas vezes sequer conversava com alguém presencialmente. Me fez questionar a minha vida inteira, minha relação com minha casa, com o que eu construí pra mim. Me deprimi. Entendi que o híbrido é perfeito e me atende bem demais, e que eu, bem como você, precisaria estar num outro momento de vida para que o full home office tivesse dado certo. Sorte pra tu, que as discussões do almoço cheguem logo!
Product Designer | UX Designer | Service Designer
1 aBoa provocação, Rodrigo. Minha experiência recente foi no modelo híbrido (2x semana) e gostei do formato. Entendo perfeitamente que achei a experiência positiva por alguns motivos. Gosto de estar perto de pessoas (apesar de ser introvertido), acredito muito no trabalho em grupo - acho que o formato presencial facilita as interações - e não posso deixar de citar a proximidade com o local de trabalho. Mas, certamente, as variáveis desta equação são gigantescas.