Falta de tato, notícias falsas e o cassino do clique fácil
(Originalmente publicado no Numeralha, em dez.2016; levemente atualizado)
Nos últimos meses, roçamos várias vezes no debate sobre economia da atenção. Houve o debate sobre as notícias falsas na eleição dos Estados Unidos (aliás, houve no Brasil em 2014 também, lembram?). Depois, com a reação do público do Facebook à falta de tato com que o site Catraca Livre apelou para o caça-clique quando houve o desastre de avião que matou o time da Chapecoense. E quando foi a última vez em que você ficou tão furioso com a última daquele deputado cujo nome rima com dinossauro que não conseguia parar de postar a respeito, ajudando com isso os seus voluntários?
Todo dia tem alguma novidade, e já tem gente comparando a maneira como se usa as redes sociais ao hábito do tabagismo: segundo vários especialistas, isso ocorre porque os incentivos econômicos que dirigem o ambiente mobile, ou seja, publicidade, se baseiam fundamentalmente na ciência do vício. "Como aprendemos com a indústria do tabaco e das comidas processadas, toda indústria baseada no vício foca nos jovens", escreveu o especialista em busca John Batelle.
O que eu quero fazer aqui é tentar articular um raciocínio mais amplo sobre a busca desesperada por cliques que leva gente geralmente respeitada a meter os pés pelas mãos e cria um ambiente onde gente que não merece respeito acaba ganhando terreno.
Tenho experiência nisso dos dois lados do balcão, como leitor ávido e como alguém que analisa audiência de sites há um bom punhado de anos.
Thomas Baekdal, uma das melhores cabeças de estratégia de conteúdo neste planeta, publicou um gráfico interessante hoje sobre a curva da desilusão com o caça-clique:
Gosto dessa ideia de “intent”, que ele menciona na subida da curva. Quem lê tem uma intenção, uma expectativa. Quando se passa a forçar a mão, usa-se material mais genérico e atrai-se um público maior mas menos engajado. E pode-se deixar de lado quem estava lá fundamentalmente do seu lado o tempo inteiro.
Outra coisa legal no gráfico é a ideia de que o acidente nunca vem na hora em que a apelação começa, e sim quando a apelação chega ao pico.
O que leva alguém a se tornar leitor ávido de uma publicação, de um site, de um blog? Aquilo que ele tem de especial; é a sua “marca”. É como se fosse uma promessa ao leitor.
SEM PELE NO JOGO
Foi o que aconteceu de certa maneira com a “Playboy”, nos Estados Unidos. Para poder entrar no imenso mercado chinês, a revista desistiu de publicar fotos de nudez, sua maior marca já há mais de 60 anos. Logo na primeira edição, conseguiu colocar Dree Hemingway na capa, mas lá dentro a moça mostrava relativamente pouca pele.
Convencer uma mulher amplamente considerada interessante a posar nua custa caro. Foi por contar basicamente com anônimas, em parte, que a edição brasileira perdeu leitores. A última edição de aniversário, em agosto de 2015, tinha na capa uma moça tão anônima que sequer seu rosto aparecia. Um levantamento meu sobre as vendas em banca e assinaturas da edição nacional, ao longo de 15 anos, mostra isto:
Na Playboy americana, até agora as notícias são otimistas: aumentaram as vendas avulsas, em 28%. Mas o que geralmente entra no quinto parágrafo desses textos é que as assinaturas — os leitores fiéis — vêm caindo. Nesse texto linkado, isso aparece assim:
Unfortunately, barely 10 percent of Playboy readers these days pick up a copy on newsstands. Most readers are subscribers, and there the nudes — er, news — isn’t as sexy. Paid subscriptions dropped 23.2 percent, to 582,765, in the same six-month period, revealing the title’s larger challenge of replacing older subscribers with a new generation of male readers.
Não é tão boa notícia, certo? Você teve um aumento de 28% das vendas em 10% da sua circulação, mas em compensação teve queda de 23% nos outros 90%. OK, 28 é maior do que 23, mas 90 é MUITO maior do que 10.
E será que quem comprou a revista com a Dree Hemingway na capa não esperava a “velha” Playboy? Enfim, desejo sorte a eles na tentativa de crescer na China, mas sei não.
POR QUE FICO, POR QUE VOU
Já fui leitor assíduo de várias revistas. Lembro com carinho do momento “Ratatouille” em que ganharam minha atenção. A Millenium Issue de “The Economist”, lançada em dezembro de 1999, foi algo que passei mais de um mês lendo e relendo. Até hoje faço questão de comprar todas as edições de final de ano da revista.
Meu amigo Eduardo Ohata passou décadas colecionando quadrinhos (eu também). Há uns três anos, em nossas conversas, compartilhávamos insatisfações como numa espécie de Gibílatras Anônimos. Eu lia, mas com tédio; ele já não lia, mas ainda comprava. Tínhamos a impressão de que as histórias já lidas se repetiam de um jeito mais raso, forçado, esticado ao máximo.
Aí, descobriram lá fora que zerar a numeração das revistas fazia crescer as vendas por algum tempo (depois elas caem) e começaram a zerar uma vez por ano títulos com meio século de existência. Ele, que já não tinha mais saco de ler, desistiu de comprar também. Um dia me telefonou: a Marvel ia zerar tudo de novo e ele cancelou de vez suas assinaturas. Eu parei com os quadrinhos do dia-a-dia quando a DC Comics criou a enésima série que dizia que o que eu vinha lendo há 30 anos deixou de ter sido do jeito como eu li no século passado.
APELAÇÃO DIGITAL
O ambiente digital, onde tudo é mensurável, acaba tornando mais rápido o descumprimento de promessas, se é por esse caminho que você envereda.
A lógica do caça-clique funciona como a lógica do caça-níquel: você aposta e fica olhando o resultado, de olho mais na tela da maquininha do que de olho no contexto maior. Você vê na hora se funcionou ou não. Se funcionou, será que faria mal dar mais uma apeladinha pra ver o que rola? E se eu desse mais uma apeladinha?
O cassino do clique fácil, como qualquer cassino, mexe com a adrenalina. Quem não gosta de ver um sucesso de público? Mas essa hora da adrenalina é a pior hora de tomar decisões.
Quando se muda a promessa, você de fato ganha muitos leitores casuais. Só que os leitores fiéis — aqueles que estavam lá pela sua promessa de qualidade, talvez inclusive aqueles que pagam — percebem e, em certo ponto, podem se sentir naquela famosa cena de Guerra nas Estrelas : “I’m altering the deal”.
Além disso, quem comprou “sites virais” esperando que fossem uma bala de prata quebrou a cara. Não existe bala de prata.
Caso você já tenha tido paciência de abrir caixas de comentários de páginas de jornais no Facebook, pode ter se deparado com alguns padrões. Primeiro, o conjunto das notícias lá compartilhadas difere um pouco da visão de conjunto que se tem lendo a publicação original. Há mais material popular/popularesco. Segundo, se você abre as caixas de comentários do conteúdo tradicional, as pessoas estão falando de outra coisa, falando sozinhas ou xingando o jornal. Quando se abre as caixas de comentários do conteúdo popularesco, os leitores estão xingando ou dando receita de gelo.
Um bom argumento para o conteúdo popularesco — eu mesmo já o usei bastante — é o seguinte: estamos oferecendo um cardápio completo; temos salada, temos arroz, temos feijão, temos bife e temos um chocolatinho no final. Se você só vem pelo chocolate, não nos culpe pelo que a balança diz. O chocolate traz leitores que de outra forma não viriam, o que aumenta o alcance. Só que esses leitores não querem saber do bife.
E aí se cria uma situação bastante desagradável, em que quanto mais leitores, mais difícil agradar aos leitores. Porque eles estão querendo o cumprimento de promessas das mais variadas. Quanto maior a audiência, mais “low-intent” se recebe, para retomar o termo do Baekdal.
Isso aumenta muito a chance de um dia você cometer a gota d’água.
TÁ, MAS E AS NOTÍCIAS FALSAS?
Foram os “leitores falsos”, de baixa intenção de leitura, aqueles que leem títulos e repassam sem ler, que abriram espaço para as notícias falsas.
Quando você passa a contar com uma grande fatia de leitores de “low-intent”, algumas coisas acontecem:
- Você perde frequência média dos leitores; grande parte na verdade é de usuários de redes sociais que caem na sua página por acaso, porque apareceu na tela deles. Não querem ler exatamente o que você tem a dizer, pois o interesse deles é bem específico; por acaso, você disse algo a respeito.
- Esses leitores vão julgar seu conteúdo como um todo pelo pequeno fragmento que leram. A pluralidade de opiniões publicadas por uma publicação funciona muito melhor dentro de um pacote, onde é possível ter visão de conjunto, do que num ambiente desempacotado, onde se julga o todo pela parte. Por favor, não depreendam disso que eu sou contra a pluralidade. Pelo contrário. Mas quem lê pouco — e no ambiente das redes sociais as pessoas leem absurdamente pouco — se confunde.
- Seu leitor tradicional, que também está nas redes sociais, pode ficar confuso também, ao interpretar que você está rompendo uma promessa feita aos leitores fiéis para atrair leitores casuais. Mais ou menos como furar um jantar com sua mulher porque estava ocupado contando piada no bar da esquina. Não é uma vez em que isso ocorra que vai levar ao divórcio, mas experimente fazer isso todo dia para ver o resultado depois de alguns meses.
Com isso, as marcas acabam perdendo importância. Já que todo mundo publica notícias sobre celebridade, tanto faz de onde elas vêm. Gradualmente, tanto faz de onde qualquer notícia vem.
Se todo mundo apela, por que vou me dar ao trabalho de ler quem cobra? Por que não ler só o que aparece entregue de bandeja?
Publicidade é vendida por volume, então espertos criam sites com nomes às vezes enganosos (às vezes remetendo aos nomes e layouts de publicações consagradas) para publicar notícias falsas —notícias verdadeiras é mais caro produzir — e ganhar uma graninha em cima com anúncios programáticos. Se for estridente o bastante, corre o risco de viralizar.
Já escrevi muito, então não vou entrar na questão da era da pós-verdade ou das bolhas de filtro. Acho algo interessante para pensar, mas o que eu queria dizer é mais específico:
Quando você tem uma marca e a corrói, abre ainda mais espaço para os oportunistas que não precisam se preocupar com ter ou não uma marca. E isso ferra o ambiente de informação como um todo.
Os leitores fiéis demoram a perceber a corrosão da qualidade. Mas percebem. Percebem e passam a se tornar indiferentes — o que é péssimo, porque a indiferença do leitor ferra qualquer tentativa de modelo de negócio. E eles podem até nem fazer nada a respeito no começo, mas um dia a ficha cai.
E aí, meu amigo, é que o bicho pega. É fácil tirar pasta de dente do tubo, mas tentar colocar de volta complica.
Tem jeitos bem razoáveis de ganhar audiência com conteúdo bom, que não descumpre promessas. Acho importante aproveitar todas as oportunidades de leitura que o seu conteúdo tiver. Ninguém escreve para não ser lido, enfim. Um título bom, uma imagem esperta, o momento certo, tudo isso é bom. Só que, como tudo na vida, o contexto é fundamental e exige trabalho e acompanhamento.
Nada contra ter audiência; muito antes pelo contrário. Entrar no cassino do clique fácil é que é uma roubada.