A falta que nos move: sobre zumbis digitais e narcisismo lacaniano
“O eu é um objeto”. Ao repensar o narcisismo primário proposto por Freud (1914), que pretendia analisar a libido do indivíduo sem interferência de objeto externo, Lacan (1953) definiu a reestruturação do sujeito, seu imaginário e psicoses através de “O Estádio de Espelho”: uma releitura da noção de narcisismo ao articular os conceitos de Imaginário, Simbólico e Real no inconsciente.
A nova ênfase colocada por Lacan sobre o narcisismo é consequência de seu interesse pela relação entre a personalidade e o meio social, entre o sujeito e seu entorno (VANIER, 1998, p. 36). Ele observara que, quandosecolocado na frente de um espelho ainda criança, o sujeito assimilaria sua imagem pela primeira vez, criando uma identificação narcísica inconsciente, o denominado narcisismo secundário. Esta identificação passaria a ser determinante para as futuras relações que o sujeito estabeleceria com seus semelhantes ao longo da vida. O espelho funciona como o lugar que o outro ocupa: através desse entendimento, cria-se um espaço virtual, onde o sujeito se vê e que é correspondente ao espaço do objeto real, onde se formou uma imagem real. Esse Outro é o que ocupará o lugar do outro no discurso, durante toda a vida.
Ainda através de “O Estádio de Espelho”, podemos analisar a relação entre demanda e desejo:
“Para obter sua imagem, o sujeito deve então regular-se sobre um ponto que pertença ao campo do Outro. Isso introduz uma disjunção entre ver e olhar. (...) Ele olha-se a partir desse ponto ideal escolhido pelo Outro, no lugar de onde pode ver-se como podendo ser amado. O olhar dirige-se sempre a alguém ou a alguma coisa: é-se olhado por” (LANIER, p.44-45).
Dessa forma, compreendemos nitidamente que o que desejamos está diretamente relacionado com o olhar do outro sobre nós. Precisamos nos sentir reconhecidos a partir do que demandamos ao outro quando nos mostramos, pedimos amor quando precisamos de reconhecimento pelo que está formado no nosso imaginário: o signo do reconhecimento é a forma como o outro nos percebe.
Correlacionando o narcisismo de Lacan com a Cibercultura, percebemos com mais clareza o que presenciamos à nossa volta: ninguém resistiu ao movimento digital. Olhem para as redes sociais: nos tornamos verdadeiros zumbis, escravizados pela tecnologia. Somos o que a realidade virtual nos projeta, identificados a partir dos nossos devices, assim como, quando crianças, fomos determinados a partir de objetos menos complexos. Incorporamos desde sempre esses objetos ao nosso eu, gerando a libido, que determina nossa capacidade amorosa. Nossos significantes gerados a partir do que nos identifica, a formação do simbólico que desde sempre permite que o humano seja dialetizado pela linguagem.
No ciberespaço, apropriação é a regra do jogo: todos incorporam o que lhes acontece, vítimas de suas existências. O narcisismo universal pede curtidas e reconhecimento pelo olhar do outro nas redes sociais. Minha presença é o outro que determina. Minha imagem é a percepção dele. Meu espelho é o outro, sempre vou buscar equivalências. Aceito o desafio velado de aparecer mais no ciberespaço e posto uma foto de ambiente artificialmente criado para aquele instante: finjo uma alegria que não tenho só para ostentar a popularidade que não consigo alcançar. Vivo para clicar o melhor ângulo dos meus desejos reprimidos. Vou ganhando mais interações, o que me determina é meu nível de contas impactadas nas redes que marco presença. Quero e vou ser mais do que o outro, ao menos ali, no ciber. Posso estar deprimido agora, mas ninguém precisa saber, continuo a fingir. Não tenho sido tão notado quanto gostaria. Preciso de mais um gole para abstrair isso... Posto a foto do drink. Continuo triste, mesmo depois das curtidas no Instagram... Está bem difícil suportar a vida real, cada vez menos interessante, mais vazia de pulsões, graças à tecnologia. Olho em volta... todos olham para suas telas, teclam com quem não está presente. Mas no fundo estão todos ali, conectados, inconscientemente revelados nos vazios de seus discursos... Será que esse relato está distante da nossa realidade ou já percebemos identificações?
Sabemos que necessidade gera desejo que gera demanda. O que me torna dependente do meu device? Preciso dele para me sentir completa. Como não amar meu celular? Ele está praticamente incorporado aos meus movimentos, é um facilitador da vida. Não o largo por nada, é ele que me mostra o que quero ver. Só preciso dele e de mais nada quando estou sozinha, só ele precisa estar comigo até a bateria terminar. Como num gesto de amor, vou revivê-lo para que ele possa voltar a me servir. Preciso que ele não me desaponte, nem pensar em travar o sistema e me deixar sem tocá-lo. O objeto fálico, meu objeto de prazer, meu celular. Quem nunca gerou esse significante para si, por um momento sequer?
Se a mensagem não chegar, vou teclar infinitas vezes no ícone do aplicativo, vai que tenho sorte, vai que deixo o sistema mais rápido por ativação... Posso nunca ter, mas sempre vou buscar. O não atingimento gera a repetição, observou Lacan. Sempre vou olhar pro que não conheço, sempre me estimula o que não sei de onde vem. O significante é meu, sou eu que dou significado a tudo o que vejo, desde que tenha uma tela na minha frente. Sou eu que transfiro minhas admirações para o que me determina.
Tentamos socializar para sermos melhores diante dos outros, através das telas que nos “corrigem”. Alguém nos vê do outro lado e interage com nossas imagens, só precisamos disso. Nem tanto... nem tão pouco. Porque o que está cravado na rede é esquecido no minuto seguinte. Precisamos de mais. Acreditamos sermos melhores do que o que vemos, somos a imagem que projetamos ser, somos o ciber, somos o que acreditamos ser, ai de quem duvide disso! Meu espelho é o olhar dos outros. Aqui e somente aqui as coisas fazem sentido. No silêncio de cada pulsão .
Entendemos que já não podemos mais pensar e dispensar prazer de outra fonte: sem telas na totalidade, não vislumbramos mais. Não poderemos mais conseguir em outro lugar a satisfação da palavra lida e devolvida de repente, precisamos aceitar isso. Nosso inconsciente se estrutura como informação e nos deixamos escapar nos vazios do que não dizemos. O virtual escancara nossas entrelinhas. A gente continua a recalcar o que incomoda, tendo telas ou não entre nós. Se a mensagem não chegar, a ansiedade vai bater, cronicamente, desesperadamente, impiedosamente. Transferimos muito para o outro, identificamos demais, estamos progressivamente alienados. Seguimos a lidar com nossas neuroses, cada vez mais acentuadas, sobretudo quando tentamos nos fechar na bolha do nosso olhar na tela dos nossos telefones. Vamos continuar a buscar a mensagem que nunca chega. Isso é humano, é pulsional, determina nossa natureza. Não queremos e não vamos sair desse ciclo. O ciberé muito mais sedutor do que a vida fora dele. A tecnologia esvaziou nossas pulsões. Queremos compulsivamente o que não nos chega. E só porque não recebemos, queremos com tanto vigor.
A indústria nos oferta inúmeros “objetos a” – pontuados por Lacan - travestidos por devices, itens do consumo projetados para satisfazer nossas necessidades infinitas. E nos incorporamos deles sem questionar as renúncias que fazemos em nome de uma satisfação maior. “O gozo para todos” é a promessa perfeita e está inscrita subliminarmente no horizonte do mundo real, como um arco-íris. Vamos fazer uma selfie com ele?
REFERÊNCIAS:
- FREUD, Sigmund. Obras completas vol. 12 – Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e outros textos (1914-1916).São Paulo: Companhia das Letras, 2010.Tradução de Paulo César de Souza.
- VAINER, Alain. LACAN. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 1998. Tradução de Nícia Adan Bonatti.