Feeling Good
Poderia ser uma quinta-feira qualquer... mas era hoje. Horário de almoço... a dor de cabeça incomodando um pouco lá no fundo, mas como eu tinha acabado de almoçar, a expectativa é de que passasse em pouco tempo. A cidade, como sempre, pulsava em seu ritmo hipnótico, e as pessoas seguiam apressadas de um lado para outro, postando suas fotos de xícaras de café, gatos e paisagens tropicais com #tbt no Instagram. Meu destino? Pegar dinheiro no caixa eletrônico para algumas despesas do final de semana. Tudo "normal", até que encontrei com elas.
Zona nobre de São Paulo, a Vila Olímpia, próximo ao Itaim, é o endereço de inúmeras empresas de alta tecnologia, financeiras, serviços, cartões. Um daqueles lugares que, durante a semana no horário comercial lembram a 25 de março num 24 de dezembro, mas que fora dele parece um cenário apocalíptico, onde não se encontra viva alma na rua. Em frente ao Shooping Vila Olímpia, encostadas numa cerca viva, sentadas no chão, estavam Sara, Liziane e Joana. Sara, uns 30 e poucos anos, Liziane 7 e Joana, 1. Os pés maltratados e descalços, tão sujos quanto as roupas, mostravam que vieram de longe. Sara, mãos estendidas, Liziane brincando com um pedaço de boneca, e Joana brincando com uma chupeta amarrada numa fralda velha e suja. Como todos, passei. Dei uma rápida olhada de canto de olho... mas precisava continuar meu caminho, afinal, tinha acabado de almoçar e precisava pegar dinheiro. Passei. Almocei. Tinha que pegar dinheiro. É... passei pois eu tinha almoçado e precisava pegar dinheiro. Mas, não podia passar. Peguei meu dinheiro no caixa, e voltei.
Estendi a mão e perguntei: "Boa tarde, posso falar com a senhora?" - Sara, esboçando um sorriso tímido, triste e rápido, respondeu que sim, enquanto as crianças continuavam distraídas em seus mundos, sem se importar com as pessoas passando, com os carros, com a cidade e seu mecanismo implacável a girar... a infância muitas vezes funciona como uma camada protetora. "Como é o nome da senhora, e das crianças?" - Sara me contou sua história, roteiro mais ou menos conhecido, mas que quando dito da boca do protagonista ganha notas e cores tão realistas que fica impossível não fazer parte da trama. Paulista do interior, foi morar com um paraibano que não queria mais viver em São Paulo, segundo ela, por falta de oportunidades. Seis filhos. Isso mesmo. Seis. Dois mais velhos na casa dos 15, 16. Dois na casa dos 9, 10, estavam na escola. Liziane e Joana, brincando ali ao lado, em sua bolha protetora de infância. Na Paraíba, o homem não quis mais viver com Sara e a deixou com as 5 crianças, e grávida de Joana. Sem nenhum parente, conseguiu dinheiro para voltar de ônibus para sua cidade de origem no interior de São Paulo, para morar com a mãe, uma senhora já idosa e doente. Assim que Joana nasceu, a cerca de um ano, a mãe de Sara teve complicações de saúde, e morreu. "Sara, mas antes das crianças, você não conseguiu estudar? Tinha escola na sua cidade?" - perguntei, já imaginando a resposta: "Moço, até tinha, mas a gente começou a trabalhar muito cedo pra ajudar em casa. Não consegui estudar não, moço..."
Foram alguns minutos de conversa, ali, agachado na calçada da capital das oportunidades e prosperidade do país. Talvez cinco, oito minutos no máximo. "A senhora aceita?" - pergunta um rapaz que passou, estendendo um saquinho do McDonald's. Imagine se ela não aceitou! Fiquei olhando aquelas crianças e lembrando da minha infância de escola pública na periferia da grande São Paulo, onde algumas crianças dormiam a aula toda, ou desmaiavam por não ter tomado café da manhã em casa, por não ter o que comer de manhã. Lembrei das ruas de terra sem asfalto, córregos a céu aberto que nos obrigavam a desentupir o esgoto em dias de chuva forte, para que a água não entrasse pelo encanamento. Me lembrei do péssimo serviço de ônibus que atendia o bairro, mas que era o único. Mas me lembrei também que meu pai, apesar de não ter avançado nos estudos, foi organizado o suficiente com seu salário de metalúrgico, e rígido o necessário como bom nordestino, para prover e exigir de mim e de meus irmãos o que ele entendia que poderia mudar uma vida - e estava certo: "vocês tem que estudar". Agora, maduro, me comparando aos colegas de sala que desmaiavam de fome, sei que fui um afortunado. Meu pai pôde me colocar, desde a infância, numa posição que permitiu que eu pudesse reagir. Eu já larguei na frente dos demais, e isto é inquestionável.
Ajudei com o almoço de Sara e das crianças, afinal, eu mesmo já tinha almoçado e tinha ido ao banco pegar dinheiro para o final de semana, lembram? Me despedi delas. Sara sorriu rápido e tristemente mais uma vez, enquanto as crianças continuavam em outro mundo. Melhor, talvez. Voltei para o escritório, na segurança da minha bolha social, mas extremamente sensibilizado e pensando que Sara poderia ser uma daquelas crianças que desmaiavam na aula. Coloquei para ouvir uma playlist de Nina Simone. A primeira música? Essa mesma... me desculpem os que não concordam, mas essa história de meritocracia não existe. Sugiro conversar com a Sara. Certamente ela está até agora em frente ao Shopping Vila Olímpia, provando aos incautos que antes dos belos conceitos sócio-políticos estão seres humanos, que tem sonhos, esperanças, necessidades básicas, e que precisam de ajuda que não virá com discursos e palanques. Virá com atenção, empatia, solidariedade e fraternidade. Tente explicar a Sara que elá está fora do "rating" mínimo da meritocracia, e que seu destino será este mesmo. "I'm feeling good". [A imagem acima é apenas referencial. Pensei em tirar uma foto de Sara, Liziane e Joana, mas achei que seria exposição desnecessária, afinal, elas já tem muito com o que lidar] [Penso em usar este espaço a partir de hoje, e semanalmente, para compartilhar minhas ideias sobre as relações da tecnologia com a sociedade em diferentes contextos: cidades inteligentes, privacidade, algoritmos de classificação e seus impactos, segurança e outros. Se gostar, acompanhe. Vamos ver o que vem por aí.]
Customer Success Manager l Innovation & Digital transformation professional l IT Service and delivery manager l IT Account manager
5 aExiste um livro bem incômodo que trata desse assunto, A classe média no espelho - de Jesse Souza. Trata o assunto da bolha em que vive a classe média e a diferença gritante de oportunidades que temos em relação a pessoas menos favorecidas. A meritocracia depende de igualdade de oportunidades, e quando se fala em oportunidades, não tratamos apenas estudo e trabalho, falamos em carinho, tranquilidade, nutrição, amor, cultura, amizades, e todos os fatores externos que influenciam a vida dos indivíduos. O ser humano é uma criatura social, totalmente moldado pelo meio em que vive, para o bem ou para o mal. É claro que existe a personalidade porém seu fator de transformação é bastante limitado se o meio social estiver em algum extremo. Grande artigo, humano como você é. Os que o conhecem entendem claramente. Os demais... se inspiram!
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6 aMuito bom Sr. Walker ! Meritocracia..... tecnologia.... estudos .... socialismo .... metalúrgicos, é uma mistura de palavras, conceitos e cada um tira a sua conclusão, muitos pensamentos muitas dúvidas e poucas respostas . Meritocracia.... meritocráticas