FLEXIBILIDADE E TOLERÂNCIA PARA LIDERAR NA REALIDADE CAÓRDICA DAS ORGANIZAÇÕES.
O conceito de realidade caórdica foi proposto por Dee Hock, ex-CEO da VISA e autor do livro Nascimento da Era Caórdica, publicado em 2006, pela editora Cultrix.
Hock tenta elucidar as contradições da complexidade em que vivemos, pois longe de ser ordenada e previsível, é caótica e probabilística.
Na verdade, tal concepção nem é tão moderna, pois remonta a várias fontes muito antigas, tais como o Velho Testamento, que descreve o nascimento do mundo a partir do caos, usando a alegoria de um Deus que fez a luz (Fiat Lux) emergir das trevas primordiais. E, antes disso, na visão taoísta oriental, o universo, assim como a vida, é sempre um emergir da ordem a partir de um estado primordial de desordem, operado pela ação de duas forças antagônicas que se repelem e se complementam: o Yin e o Yang.
Do mesmo modo, no campo da física teórica, o velho castelo da mecânica de Newton foi desconstruído pela Teoria da Relatividade de Einstein e, mais ainda, pelo novo paradigma da física quântica, com suas desconcertantes descobertas sobre o comportamento caótico do fóton (é onda e também é partícula, dependendo do modo como é observado) e dos elétrons, localizados apenas pelo uso de equações probabilísticas. Depois disso, nada ficou de pé para sempre. Tudo passou a ser questionado, inclusive a própria existência da matéria, enquanto massa estável.
Na verdade, Albert Einstein demonstrou que a massa de um corpo qualquer constitui a expressão do fenômeno energético, sintetizado genialmente em sua famosa equação E=MC2, que propõe que a Energia é igual à massa multiplicada pela velocidade da luz ao quadrado.
Portanto, é claro que esta avalanche de descobertas da filosofia e da ciência iria também interferir em nossa compreensão do universo, do mundo e da própria vida humana, em suas expressões individual e coletiva. E quanto falamos em vida coletiva, nos reportamos às sociedades, aos grupos, às instituições e às organizações, de um modo geral.
Este é o ambiente onde iremos encontrar a liderança se expressando em suas mais variadas formas, para se adaptar diante dos constantes desafios impostos pela realidade, que combina sempre a permanência com a mudança, a ordem com o caos, a causalidade com a casualidade.
As teorias tradicionais de liderança, que nos legaram uma concepção de líder autossuficiente e isolado em seu poder de construir a realidade, não conseguiriam dar conta da realidade caórdica que caracteriza, cada vez mais, nosso século XXI.
Em seu lugar surgiram as teorias situacionais, contingenciais e relacionais da liderança que poderão cumprir esta tarefa.
Kenneth Blanchard (2007), um dos expoentes da teoria da liderança situacional, afirma que o líder situacional precisa desenvolver três habilidades fundamentais: diagnóstico, flexibilidade e parceria para o desempenho.
Outro autor da liderança situacional, William Reddin, concordando com Blanchard, também sugere que o líder deve desenvolver três habilidades essenciais:
1. Sensibilidade situacional: habilidade para perceber as peculiaridades de cada situação, além de suas tendências futuras. Com esta habilidade, o gestor pode fazer um diagnóstico mais preciso da realidade, pré-condição para as outras duas habilidades.
2. Flexibilidade ou resiliência de estilo: habilidade de adequar-se às situações com as quais se depara, quando não é possível, necessário ou prudente alterá-las.
3. Gestão situacional: habilidade para administrar a situação na qual está inserido, alterando suas condições visando ao cumprimento de seus próprios objetivos de trabalho. Nós acrescentaríamos uma quarta habilidade, ao nosso ver tão fundamental quanto as demais:
Simbolicamente, Reddin sugere que a prece de São Francisco de Assis poderia ser a prece do líder situacionista:
PRECE DO SITUACIONISTA:
“Senhor, dá-me a serenidade para aceitar o que não pode ser mudado”
(Flexibilidade de estilo).
“A coragem para mudar o que deve ser mudado”
(Gestão situacional).
“E a sabedoria para distinguir uma coisa da outra”
(Sensibilidade situacional).
(Extraído do meu livro Liderança Cidadã, lançado em 2015 pela www.amazon.com.br capitulo 8 – Visão Panorâmica da Liderança, pag. 132 e 133)
Em ambas as abordagens de liderança, a flexibilidade está presente, demonstrando a sua importância como fator fundamental nestes tempos caórdicos em que vivemos.
Afinal, a flexibilidade é a capacidade de mudar de atitude, opinião e, até mesmo, de comportamento em decorrência da influência que recebemos de alguém ou da situação na qual estamos inseridos.
Ao sermos flexíveis, demonstramos que podemos perceber, aceitar e assumir como nossa, a opinião, ideia ou posicionamento de outros como mais adequados ou aplicáveis a uma determinada situação. Esta habilidade nos torna mais adaptáveis e, portanto, mais competentes para construir relações interpessoais mais sólidas e duradouras, que são fundamentais para a construção de relações de liderança mais eficazes.
Juntamente com a flexibilidade, há outra habilidade que o líder precisa desenvolver, que é a tolerância.
A tolerância, do latim tolerare (sustentar, suportar), é um termo que refere-se ao grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moral, cultural, civil ou física.
Do ponto de vista da sociedade, a tolerância define a capacidade de uma pessoa ou grupo social de aceitar, noutra pessoa ou grupo social, uma atitude diferente das que são norma no seu próprio grupo. A tolerância é também a atitude pessoal que nos permite aceitar as diferenças de personalidade e de comportamento de outras pessoas, em relação à nossa. É um fator imprescindível ao exercício do reconhecimento e da valorização da diversidade que tanto caracteriza os grupos e as organizações, e que irão promover a riqueza de nossas relações interpessoais, especialmente as de liderança.
Flexibilidade e tolerância constituem, juntas, uma díade comportamental da maior importância em nossa atual era caórdica, pois há momentos em que precisamos mudar nosso comportamento para melhor lidar com a situação adversa e há outros em que precisamos aceitar a situação e esperar por uma melhor oportunidade para atuarmos positivamente, evitando ou reduzindo danos maiores.
Lideres presentes em nossa história nos ensinaram sobre isso em momentos críticos. Talvez aquele que melhor represente esta atitude tenha sido Mohandas Gandhi, o grande líder pacifista indiano, que fez da flexibilidade, tolerância e paciência seus pilares mais fortes, ao confrontar a política segregacionista do império britânico, durante anos, até conseguir alcançar seu objetivo maior, a libertação da Índia.
No campo empresarial, não poderíamos deixar de citar Steve Jobs, que se reinventou depois de ter sido demitido por John Sculley, que ele mesmo havia contratado para gerenciar sua própria empresa, a Apple. Diante deste evento, ele declarou que “o peso de ser bem-sucedido foi substituído pela leveza de ser de novo um iniciante com menos certezas sobre tudo. Isso me libertou para entrar em um dos períodos mais criativos da minha vida.” Depois de demitido, Steve Jobs criou a Next, que mais tarde foi comprada pela Apple. Ao voltar para sua empresa com a missão de recupera-la do estado crítico em que se encontrava, Jobs doou os antigos computadores e máquinas em geral para a Universidade de Stanford, por que precisava deixar o passado para trás e precisava de espaço para construir o Novo. (www.oficinadanet.com.br).
Aprofundado um pouco mais na compreensão da flexibilidade e da tolerância como comportamentos essenciais da liderança, vamos encontrar as relevantes pesquisas realizadas pelo Dr. Reuven Bar-On e James D. A. Parker sobre os fatores que compõem a Inteligência Emocional.
Eles demonstraram que flexibilidade e tolerância são imprescindíveis, não só para a qualidade de vida, mas também para o exercício da liderança eficaz.
Segundo Bar-On: “as pessoas com resultados baixos em Flexibilidade provavelmente exibem rigidez em seu pensamento e comportamento, o que é característico no transtorno obsessivo-compulsivo e na paranóia.” Além disso, na pesquisa desenvolvida por Bar-On, foi observado que as pessoas com baixos resultados no Fator Flexibilidade apresentam também altos resultados em outro teste que avalia a tendência ao comportamento neurótico, com alta correlação entre estas pesquisas. As pessoas com baixa Flexibilidade ou alto grau de neurose, tendem a pensar e comportar-se de acordo com padrões rígidos, exibindo rigidez na maneira com reagem emocionalmente a certos eventos. Além disso, identificou-se que as pessoas que apresentam um resultado baixo em Flexibilidade, resistem a mudanças em geral e, particularmente, em si mesmas. (BAR-ON, Reuven e PARKER, James D. A. - Manual de Inteligência Emocional – Editora ArtMed, 2002. Porto Alegre – RS. (Pag. 277 e 278).
Por essas descobertas já é possível avaliar o quanto a flexibilidade precisa ser cultivada pelos líderes, inclusive como antídoto para os comportamentos neuróticos, típicos da rigidez autocrática diante de mudanças pessoais e organizacionais. De fato, as lideranças autocráticas tendem a transformar suas opiniões pessoais em verdades absolutas e suas decisões nas únicas corretas e aceitáveis para eles.
A respeito da Tolerância, as pesquisas do Dr. Bar-On classificam, entre os 15 fatores da Inteligência Emocional, dois fatores que se encontram bem relacionados a esta questão. Trata-se da Tolerância ao Estresse e do Controle de Impulsos.
Há pessoas que possuem maior tolerância a fatores estressantes, dentre os quais aqueles derivados de atitudes e comportamentos incompatíveis ao sistema de valores que cada pessoa mantém e defende. Quando diante destas diferenças, a pessoa mais tolerante ouve, inclusive atentamente, porém não se deixa impregnar pelo sistema de valores do outro.
Por outro lado, pessoas intolerantes transformam em adversários e inimigos aqueles com os quais discordam, criando posições antagônicas que se potencializam em agressividade, preconceito, violência e guerra. As lideranças autocráticas são pródigas em transformar diversidade em inimizade, criando conflitos e exacerbando crises que poderiam ser resolvidas com negociação e maior compreensão mútua.
Poderíamos dizer que muitas estruturas organizacionais representam territórios de poder construídos por comportamentos de intolerância mútua. As empresas e instituições burocráticas, com suas hierarquias rígidas, tornam-se ambientes de desconfiança, que reduzem a possibilidade de se construir projetos e processos transversais e interdepartamentais, com a decorrente perda da sinergia organizacional. Em lugar disso, o que se observa são departamentalizações e especializações exageradas protegidas “com unhas e dentes” por seus intolerantes defensores do poder segmentado. Esta é uma das maiores disfunções observadas na grande maioria das empresas e entidades públicas.
Além da resistência ao estresse, Bar-On realça o Controle de Impulsos como outro fator que, ao nosso ver, possui correlação com o comportamento de tolerância.
O controle de impulsos refere-se à capacidade da pessoa de resistir ou de adiar uma necessidade, um desejo, ímpeto ou tentação de agir. Quando ela dispõe desta competência, tem mais facilidade de resistir a uma ameaça ou até mesmo a uma agressão, controlando sua impaciência ou raiva. Por outro lado, uma pessoa sem autocontrole de seus impulsos tenderá a entrar em confronto, inclusive violento, mais rapidamente, o que certamente demonstrará a sua atitude de intolerância diante da ameaça.
Concluindo, podemos afirmar que diante da realidade caórdica que caracteriza nossa era atual e na qual estão imersas as organizações e as pessoas, precisamos de lideranças mais flexíveis e tolerantes, capazes de criar ambientes negociais pautados por atitudes inclusivistas e culturas pacificantes, que façam da cooperação e do consenso comportamentos sociais mais comuns do que os primitivos comportamentos competitivos, discriminatórios, exclusivistas e destrutivos, que ainda estão presentes em nossos ambientes de trabalho.