Fogo no canavial

Fogo no canavial

No surrealismo político brasileiro, os criminosos querem se anistiar e julgar os xerifes

Quando a Câmara dos Deputados tenta votar na surdina uma anistia secreta a todos os parlamentares processados ou condenados por caixa dois, e um ministro de Estado diz que o caixa dois não deve ser criminalizado, e sim discutido sem preconceito, sem patrulha e sem histeria, atingimos um novo patamar de cinismo e de afronta ao eleitorado e à inteligência alheia.

Fraudar o processo eleitoral, corromper a democracia, manipular as escolhas dos cidadãos, levar vantagem ilegal sobre os outros candidatos, lavar dinheiro sujo e criar vínculos criminosos entre empresas e políticos, que os deputados e o ministro Geddel chamam carinhosamente de caixa dois, é um crime muito mais grave do que um roubo individual contra uma empresa ou o Estado, porque rouba direitos de toda a sociedade e pode mudar a história do país. Não há preconceito, patrulha ou histeria que desminta isso.

Ao mesmo tempo, o multidenunciado Renan Calheiros ameaça a independência do Ministério Público e do Judiciário com leis aparentemente justas contra abusos de autoridade, mas que podem ser manipuladas pelos interesses dos políticos ameaçados pela Justiça e virar o jogo. Os primeiros alvos seriam os procuradores e policiais da força-tarefa da Lava-Jato e os juízes: no surrealismo brasileiro, os xerifes serão julgados pelos bandidos.

Numa ação rápida e heroica, um grupo de parlamentares de pequenos partidos de oposição denunciou e fez abortar a conspiração multipartidária da anistia do caixa dois em cima da hora. Mas os que estão sujos na Lava-Jato são brasileiros, não desistem nunca: eles são muitos, andam em bandos e, quando a manada é ameaçada, se unem e são capazes de tudo.

Na Itália, a Operação Mãos Limpas começou a naufragar quando os partidos tradicionais foram destruídos e os políticos desesperados por impunidade votaram leis que limitaram a ação do Judiciário e abriram caminho para leniências e anistias — e para Berlusconi e seus novos corruptos, entre eles, os velhos, em novos partidos. A Itália ficou pior, e a política continuou tão suja como antes da Mãos Limpas.

Enquanto isso, em Brasília...


Nelson Motta - O GLOBO

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