Frodo e a Educação Personalizada: encontrando a própria voz
As Duas Torres: Mina Morgul e Orthanc

Frodo e a Educação Personalizada: encontrando a própria voz

Cláudio Rigo[1] e Vladimir Gonçalves[2] - 02 de outubro de 2020

- As pessoas parecem ter sido simplesmente embarcadas [nos feitos das velhas canções e histórias]: seus caminhos apontavam naquela direção, como se diz. Mas acho que elas tiveram um monte de oportunidades, como nós, de dar as costas; apenas não o fizeram…

(Sam, personagem de J.R.R. Tolkien em O Senhor dos Anéis, Livro II – As Duas Torres)


Acabo de ler a história de Pino Lella, contada no livro Beneath a scarlet sky, do autor americano Mark Sullivan. Giuseppe “Pino” Lella tem 17 anos quando, sob a orientação do Padre Re, se torna guia de expedições de grupos de judeus através dos Alpes italianos durante a ocupação nazista na Itália a partir de setembro de 1943. Cumpre uma missão perigosa e importante dentro da rede católica de auxílio aos judeus perseguidos durante a II Guerra. Com o apoio e a ação do Papa Pio XII e do Cardeal Schuster, de Milão, milhares de judeus foram escondidos em instituições católicas na Itália ou enviados à Suíça através da fronteira. Pino fez parte dessa rede por cerca de um ano. Depois, várias ocorrências fortuitas o levaram a servir como motorista ao General Hans Leyers, uma das figuras mais misteriosas e poderosas das forças nazistas no norte da Itália. Essa posição completamente inesperada, facilmente interpretada como traição pelos seus compatriotas, deu a Pino a oportunidade de espionar e transmitir informações preciosas e decisivas para o sucesso da resistência italiana e da retomada do norte da Itália pelos aliados. Essa é uma história real de um adolescente que decidiu assumir os riscos altíssimos do apoio a uma causa que ele considerou merecedora do ato de entrega da sua própria vida. Pino Lella não morreu na guerra, mas esteve perto disso várias vezes.

A história de Pino nos introduz ao tema do presente artigo. Nesse texto comentaremos a segunda nota definidora da pessoa humana, o autogoverno ou autonomia, com grande impacto na educação que seja personalizada. Olhando para Pino, como um adolescente pode ter a maturidade de tomar decisões tão comprometedoras? Em tempos de guerra, esperaríamos essas atitudes de homens maduros, experientes, não de um jovem de 17 anos. Por outro lado, em tempos de paz e normalidade, seria mais natural esperar de um adolescente de 17 anos que seja capaz de se comprometer com causas vitais importantes: dedicar parte do seu tempo a ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade, preocupar-se em escolher uma carreira profissional que o leve a colocar seus talentos a serviço da comunidade, estudar e adquirir skills para essa carreira, ajudar seus pais e irmãos, pensar na família que um dia irá formar e se preparar para isso. Infelizmente, você irá concordar que é raro esse nível de compromisso nos jovens que nos rodeiam? Seja para as gerações Z, Millennials ou Snowflake, a fortaleza e a constância para perseguir um ideal estão em baixa. O problema está na cultura atual, na família, na escola? E, no entanto, a solução não está distante de nós, pois todo processo educativo bem-sucedido deve desembocar na formação de pessoas capazes de autodeterminar-se, mesmo sendo muito jovens: educar é formar no domínio de si; é ajudar a desenvolver o autogoverno para o reto uso da liberdade pessoal.

A educação é, então, um processo de aquisição de uma série de virtudes que fazem aflorar a “voz” singular de cada um. O papel do educador é ajudar o aluno a encontrar essa sua “voz”, que é só dele e de mais ninguém, através da ação consciente de conduzi-lo por um plano inclinado exigente e desafiador na medida certa, alentado pelo exemplo e o carinho do mestre. A essas virtudes - forças interiores - e a essa voz só se chega através do esforço. Victor García Hoz expressava essa realidade em uma frase muito gráfica: o que realmente educa é a tarefa bem-feita. Aqui está sintetizada a mensagem dessas páginas.

No livro Educação Personalizada, Víctor García Hoz diz que não se pode viver humanamente a não ser partindo da capacidade de critério próprio para apreciar as pessoas, coisas e situações, escolher o caminho mais adequado entre várias possibilidades e ater-se às consequências dessa escolha. Nesse trecho, García Hoz sintetiza o caminho da pessoa bem educada, ou seja, da pessoa que alcançou o domínio de si: possui capacidade de critério para examinar as situações, escolher e assumir as consequências das suas escolhas.

Agora estamos prontos para retomar a saga de Frodo para levar o Um Anel a Mordor. Em As Duas Torres, segundo livro da trilogia, duas histórias transcorrem paralelas. A primeira, que dá título ao livro, gira em torno da aliança entre Sauron e Saruman, as torres de Orthanc e Minas Morgul, para criarem seus terríveis exércitos mutantes de orcs e os lançar em ataques a Rohan e ao Abismo de Helm, na tentativa de destruir e se apoderar das terras dos homens. Enquanto ocorrem grandiosas batalhas, com a participação decisiva de Aragorn, Legolas, Gimli, Gandalf e os hobbits Pippin e Merry, na outra história Frodo e Sam avançam ocultamente em direção a Mordor. É um plano extremamente ousado e Sauron nem sonha desconfiar que o golpe que o derrubará venha de um lado tão improvável.

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Nesse ponto da história, Frodo tem muito clara qual a sua missão e já se decidiu completamente por ela. Em vários momentos, o hobbit afirma - ora para si mesmo, ora para algum companheiro - que tem um objetivo e que fará tudo o que estiver a seu alcance para cumpri-lo. Sam também já sabe qual o seu papel na história, a missão que foi chamado a cumprir - proteger e ajudar Frodo a destruir o Um Anel no fogo de Mordor - e está decidido a perder a vida nessa lide se necessário. É nesse segundo livro que Frodo revela-nos o “segredo” do autogoverno… muito ligado à ideia de vocação. Na história de Tolkien, o domínio de si está intimamente ligado à noção de vocação, ou, em outras palavras, de missão. Dificuldades não faltam na história para justificar uma possível desistência de Frodo e Sam. No entanto, a missão para eles já é tão grande e suas vidas já se identificaram tanto com ela, que voltar atrás está fora de cogitação.

Em um dos diálogos mais marcantes do livro, em que estão exaustos depois de vencerem as escadarias de Cirith Ungol, uma sombria e mal habitada cadeia de montanhas, Sam, pensando em tudo por que eles já haviam passado, diz para Frodo:  

- (…) Os feitos corajosos das velhas canções e histórias, Sr. Frodo: aventuras, como eu as costumava chamar. Costumava pensar que eram coisas à procura das quais as pessoas maravilhosas das histórias saíam, porque as queriam, porque eram excitantes e a vida era um pouco enfadonha, um tipo de esporte, como se poderia dizer. Mas não foi assim com as histórias que realmente importaram, ou aquelas que ficam na memória. As pessoas parecem ter sido simplesmente embarcadas nelas, geralmente - seus caminhos apontavam naquela direção, como se diz. Mas acho que eles tiveram um monte de oportunidades, como nós, de dar as costas, apenas não o fizeram…

As pessoas parecem ter sido simplesmente embarcadas, seus caminhos apontavam naquela direção. Frases tão simples, mas que dão indício de algo profundo. Faramir, capitão de Gondor, irmão de Boromir, chega a dizer que Frodo assumiu essa missão involuntariamente, a pedido de outros. Frodo e Sam não se elegeram para a demanda do Anel nem sequer eram as pessoas certas e adequadas.

No livro Em Busca de Sentido, o neuropsiquiatra Viktor Frankl, criador da logoterapia - uma das três correntes mais influentes no campo da psicoterapia - afirma que não existe um sentido abstrato da vida, como se fosse possível encontrar uma definição geral que servisse para toda e qualquer pessoa no mundo. Frankl diz que para cada pessoa existe um sentido da vida único: cada qual tem sua própria vocação ou missão específica na vida; cada um precisa executar uma tarefa concreta, que está a exigir realização. Nisso a pessoa não pode ser substituída, nem pode sua vida ser repetida. Curioso é que Frankl diz que é a tarefa que exige que a pessoa vocacionada a ela a execute; e é esse, na visão da logoterapia, o sentido de vocação: o homem é chamado a realizar um feito, ou dito de outro modo, o homem é indagado pela vida e precisa reconhecer essa indagação, respondendo com sua própria vida

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Há na história de Tolkien duas dificuldades poderosas que se oporão ao cumprimento da demanda do Anel. Por um lado, a escuridão. À medida que os exércitos negros de Sauron e Saruman vão vencendo e se estendendo pela Terra Média, uma nuvem escura os acompanha. A escuridão que se alastra tem um efeito psicológico negativo muito forte sobre Frodo, o portador do Anel. O desejo de desistir e a atração que Sauron exerce sobre o Anel se tornam cada vez mais fortes. Gandalf e Aragorn sabem muito bem disso, e colocam todos os esforços em derrotar os orcs, para que a escuridão não se apodere de toda a Terra Média. Esse é um modo muito concreto de ajudar Frodo a prosseguir. Essa imagem tem uma força poderosa para pais e professores, cuja tarefa em muitos momentos é simplesmente iluminar. Acompanhar, conversar, fazer pensar, ter paciência diante dos maus momentos, ser firmes com coerência nas questões de princípios acordados na família ou na escola. São atitudes que lançam luz sobre as mentes adolescentes, ajudam a formar critérios, dão rumo. Sempre dizemos aos pais que devem ter fé no valor perene da formação que procuram dar aos filhos, mesmo quando parece que já não são mais ouvidos. Há pesquisas que mostram que a grande maioria dos jovens, quando colocados diante de escolhas perigosas como aceitar drogas, embebedar-se ou fazer sexo de ocasião, lembram-se dos conselhos dos seus pais, contrários a essas atitudes, com muito mais força do que tudo que leram ou ouviram na Internet ou dos maus amigos. Voltamos a repetir: pais, tenham fé de que todo esforço educativo que vocês fizeram e continuam a fazer pelos seus filhos não é perdido, tem um impacto muito maior do que imaginam!

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A segunda força que se opõe à missão é o ambiente. Desde as cavernas de Moria, Frodo e Sam são seguidos por Gollum, a criatura asquerosa que por muitos anos portou o Anel, foi corrompido por ele e quer recuperá-lo a todo custo. Seus caminhos se cruzam em Emyn Muil, onde Gollum é capturado e feito guia dos hobbits para o Portão Negro. A influência de Gollum sobre Frodo e Sam vai se fazer sentir pesadamente. Como o Iago do Otelo de Shakespeare, Gollum semeia a desconfiança e a discórdia entre os companheiros de viagem, até ao ponto de conseguir que Frodo mande Sam embora. Com essa importante vitória, Gollum está livre para enviar Frodo para uma armadilha, o ninho da aranha gigante Laracna. Neste ponto da narrativa, uma reflexão antropológica leva-nos direto à ideia das influências na vida da pessoa que está se formando: Sam simboliza o amigo que acompanha, às vezes em silêncio, e dá forças para que continuemos no árduo caminho da vocação, já Gollum parece representar as más amizades que procuram “facilitar” as coisas, procurando atalhos e preparando armadilhas para diminuir a importância da missão. Essas influências, boas e más, fazem parte do ambiente a que um adolescente está exposto.

Começamos esse texto contando a história de Pino Lella. Também Pino ficou sujeito a várias influências, foi apoiado e foi tentado. Ninguém está livre dessa luta, e para os adolescentes soma-se ao quadro a falta de critério formado e de experiência. Frodo, fraco e confuso diante do poder do Anel, aceita as sugestões de Gollum - imaginando, naquele momento, que se tratava da “única opção”. No entanto, o caminho de Gollum se mostra venenoso e perverso. Será preciso muita coragem e poder de decisão para que Sam e Frodo se safem da armadilha a que Gollum os leva. No próximo artigo, acompanharemos a saga de Sam na construção da força de vontade que apontará a saída para os ardis de Gollum. 

[1] Diretor Geral do Colégio Catamarã Referência

[2] Diretor de Formação do Colégio Catamarã Referência



CLAUDIO SANTOS, MSC.

Senior System/Automation/Instrumentation Engineer

4 a

Belo texto professor!!! Um tema analisado pelo senhor, e que sempre achei importantíssimo nos livros do Tolkien é a "Amizade". Tanto na fidelidade do Sam, ou lealdade do Aragorn e Gandalf, e de fato também como bem destacado neste artigo, a falsa amizade do Gollum.

Excelente mensagem para nós, pais: "Essa imagem (amigos do protagonista do livro Senhor dos Anéis que colocam todos os esforços para derrotar os inimigos e, assim, evitar que a escuridão não se apodere) tem uma força poderosa para pais e professores, cuja tarefa em muitos momentos é simplesmente iluminar.  Acompanhar, conversar, fazer pensar, ter paciência diante dos maus momentos, ser firmes com coerência nas questões de princípios acordados na família ou na escola.  São atitudes que lançam luz sobre as mentes adolescentes, ajudam a formar critérios, dão rumo.  Sempre dizemos aos pais que devem ter fé no valor perene da formação que procuram dar aos filhos, mesmo quando parece que já não são mais ouvidos."

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