A Escola como Teatro: lições do palco
Cláudio Rigo[1] e Roger Campanhari[2] - 17 de novembro de 2020
O grande apogeu do teatro, dentro da linha originada na Grécia, sem dúvida se situa nos séculos XVI e XVII, com grandes artistas na Inglaterra, Espanha, França e Itália. Neste momento tão ímpar de nossa história, foram os dramaturgos que conseguiram articular o que de melhor a Antiguidade e a Idade Média tinham proporcionado como desenvolvimento cultural. E como consequência deste cume do teatro, a partir da visão ordenada do mundo, de fato uma cosmovisão (cosmos em grego significa ordem), a ideia do mundo como um palco e o palco como um mundo sintetizado, um microcosmo, aparece em todo seu esplendor – basta lembrar que o nome do principal teatro do período elisabetano, do qual Shakespeare era um dos donos, chamava-se Globe Theater.
Podemos usar outros dois exemplos para ilustrar essa ideia. O primeiro, de Shakespeare em Como Gostais, é um trecho que diz assim: “O mundo inteiro é um palco, e todos os homens, meros atores. Eles têm suas entradas, suas saídas e muitos papéis ao longo da vida”. O segundo não é um trecho, mas uma peça inteira, chamada O Grande Teatro do Mundo, de Calderón de la Barca, na qual o mundo também é visto como palco, como teatro, e os homens como atores. Nesta metáfora, Deus é o dramaturgo/encenador que distribui os papéis e seus adereços, retomando-os no fim da peça, da vida.
Enfim, o que se quer com tudo isso? Duas coisas: a primeira, que retomemos este tipo de olhar sobre o mundo, um olhar simbólico, que vê em cada parte um símbolo do todo, uma participação na sua essência, enfim, a busca de unificar a realidade em que vivemos através de múltiplas relações de analogia, em vez da visão desordenada e fragmentada do mundo, o que poderíamos chamar de uma “caosvisão”, em oposição à cosmovisão. A segunda, que usemos novamente como analogia, agora não do mundo todo, mas de uma parte dele, uma fração fundamental, literalmente, porque é a parte que oferece os fundamentos para nosso crescimento, nossa condução para níveis cada vez mais abrangentes de realidades e conhecimentos: a educação (ex ducere: conduzir para fora).
Esta analogia é apontada por Ken Robinson no livro Escolas Criativas (Penso, 2018), e o ponto central de sua comparação é o que Peter Brook, um dos maiores diretores teatrais de nosso tempo, coloca como essência do teatro, a relação. Diz Robinson: “é preciso eliminar aqueles elementos que caracterizam a típica representação teatral para que esta se converta em autêntico teatro. (...) A única coisa que não podemos prescindir é de um ator em um espaço e perante um público. (...) O ator representa uma obra que o público experimenta. ‘Teatro’ é a relação absoluta que se estabelece entre o público e a obra representada. Para que seja o mais transformador possível, é fundamental centrar-se nessa relação e conferir-lhe a maior intensidade possível. (...) A analogia com a educação é evidente”. É justamente esta relação entre atores e plateia que pode iluminar para nós a relação de professores e alunos.
Ambas as relações não bastam por si, há um terceiro, e indispensável, elemento: a história, o drama para o teatro, e o conhecimento para a educação. Sem esses elementos análogos, ator e professor ficam perdidos. Por quê? Porque ambos existem em função de algo, poderíamos chamá-los com muita razão de intérpretes, à imagem daqueles sacerdotes responsáveis por transmitir de modo compreensível o que os deuses revelaram aos oráculos. Portanto, o professor não tem seu valor em si mesmo; assim como o ator, ele é um mediador entre conhecimento e aluno, a ponte entre os dois, e por isso deve funcionar como uma lente, como um meio pelo qual a luz do conhecimento passa, por um lado, e pelo qual o aluno tem acesso de um modo mais claro a esse objeto que, sem uma lente, seria visto de modo difuso.
É por isso que, em ambos os casos, professor e ator serão tanto mais eficientes quanto menos se auto exaltarem. Em que sentido? Se o foco recai sobre eles, saímos de uma peça ou de uma aula dizendo: “aquele ator é brilhante!” ou “esse professor é genial”, e isso significa que a própria peça ou o conhecimento em si passaram para o segundo plano. É claro que, muitas vezes, o professor vai ter que fazer uma espécie de malabarismo para atrair a atenção dos alunos mais desatentos, mas, feito isso, ele deve conduzi-los ao conhecimento, de modo que o aluno saia da aula dizendo: “que legal isso que aprendemos hoje” ou, no caso do teatro, “que peça maravilhosa!”. Mas, e os atores, eram bons? É claro que sim, se eles foram capazes de fazer a plateia captar a grandiosidade da peça, se foram verdadeiros mediadores, eles são ótimos atores e, por isso mesmo, ninguém prestou atenção neles, mas no que eles estavam querendo representar. Assim o professor.
Se isso não acontecer, em vez de condutores, professor e ator tornam-se obstáculos, isoladores, assim como a madeira o é para a eletricidade. Mas, então, o que fazer para ser um bom condutor? Além do óbvio, que é o domínio da sua disciplina (do seu papel), o interesse próprio que se tem pelo que vai ensinar (representar) e uma boa gama de recursos comunicativos e expressivos para se fazer entender pelos alunos (espectadores), o professor (ator) deve fazer uma escolha radical em seu caminho: doar-se. Sem doação, sem generosidade, você pode ser tudo, menos um mediador, alguém a serviço. É inevitável, ou você será passagem ou você será obstáculo. Não estou dizendo que basta fazer por amor e seu trabalho funcionará, não. Os três pontos anteriores são imprescindíveis, mas também não bastam por si mesmos.
Talvez algo tenha incomodado o leitor desde o início desse artigo, mas que só agora será esclarecido: a comparação de alunos e espectadores não seria inadequada? O que justamente queremos não são alunos participativos, que se envolvem com a aula e por fim entendam, por si mesmos, o que o professor explicou? Afinal, é só eles que podem fazer isso. Ninguém entende algo por outra pessoa. Sim, a comparação seria inadequada se estivéssemos falando de telespectadores, que recebem tudo de modo passivo, sem precisar imaginar sequer um pingo de chuva. Mas estamos falando de teatro.
No teatro nada é dado, tudo é sugerido. Não nos interessa fazer nevar em cena se temos um ator que com seu mísero corpo nos faz imaginar a neve. No fundo, a história que é representada não se passa no palco, mas na imaginação da plateia. E por isso, no teatro, ela é sim, participativa, imaginando por si mesma o que só ela pode imaginar, e que os atores apenas conduzem e auxiliam, assim como o professor.
Nesse grande teatro da escola, não poderia faltar a figura do diretor, que por sinal leva o mesmo nome em ambos os contextos. Aquele que dirige busca convergir tudo a um mesmo fim, para que aqueles diversos atores em seus variados papéis consigam contar uma história, e não cada um a sua. Um professor em um colégio é apenas uma parte no todo, e se ele não souber o que especificamente lhe cabe, pode correr o risco de ser inútil ou prejudicial aos alunos que estão ali para receber uma educação e não várias. O ator não pode estudar todos os papéis, senão o seu ficará mal feito. Também o professor, se quiser conhecer todas as disciplinas, não saberá a sua tão bem. Só quem pode fazer essa função de olhar o todo é o diretor, o “maestro da orquestra”. O fim da educação, podemos dizer de um modo simplificado, é que os alunos aprendam. Voltando ao livro de Ken Robinson: “existe aprendizagem ali onde há alunos com boa disposição e professores motivadores. O desafio está em gerar as condições ótimas para o desenvolvimento da relação entre alunos e professores”. A função do diretor é criar na sua escola as condições para que essa relação aconteça de forma construtiva, criativa e harmônica.
Para completar os principais envolvidos neste processo não podemos deixar de fora os pais, sem os quais não há alunos nem educação. Mas a quem eles corresponderiam no contexto do teatro? A uma figura pouco conhecida atualmente, o mecenas, o que chamaríamos hoje de patrocinador. Mas o patrocinador quer apenas sua marca divulgada em um produto que atraia a atenção e, obviamente, os pais não são isso. Os mecenas tinham um papel fundamental no teatro que não era exclusivamente dar o dinheiro da produção, mas sim, com esse dinheiro, escolher aquilo que valeria a pena ser montado, escolhendo o que era mais adequado e proveitoso para a população da sua cidade, do seu bairro, inclusive dos seu filhos e familiares que iriam assistir àquele espetáculo. Não é este o papel dos pais? Escolher o melhor para seus filhos ao fazer o investimento mais importante de suas vidas?
Enfim, poderíamos ir longe nestas comparações, mas cremos que o que foi refletido aqui já pode servir de base para que pais, professores, alunos e diretores, realizem por si mesmos este trabalho de fazer com que realidades análogas iluminem umas às outras, dando continuidade a esta prática tão caracteristicamente humana de fazer metáforas, de tentar integrar o mundo em nós e nós no mundo.
[1] Diretor Geral do Colégio Catamarã Referência
[2] Professor de Teatro no Colégio Catamarã Referência
Owner na Hoff & Bauer - Conselheiro empresarial (ESG) - Especialista em Felicidade Corporativa
4 aEntendo a escola como a reapresentação da realidade conhecida pelo aluno, para que isso se transforme em conhecimento prático!