Gestor de crises não serve só para apagar incêndio, mas para evitá-lo
Um dos principais erros de quem toma decisões importantes é conferir à equipe de comunicação o papel de apenas comunicar algo. É como pedir para que o seu alfaiate faça um terno sem deixar que ele lhe tire as medidas, te apresente diferentes tipos de tecidos, entenda o motivo especial para o qual você precisa de uma roupa sob medida.
Com a comunicação é a mesma coisa: um bom assessor de imprensa é realmente essencial na tarefa de amplificar uma informação, corrigir mal-entendidos, fazer com que a sociedade entenda um conceito complexo. Mas, seu trabalho pode e deve ir além da simples tarefa de comunicar algo. Um bom especialista em reputação trabalha com a estratégia como um todo. Ele pode ajudar a desenhar negócios, a construir entendimentos entre parceiros e, frequentemente, aconselhar o cliente a não tomar um caminho que se sabe será tortuoso.
E por que estou dizendo tudo isso? Porque hoje ouvi o excelente “Malu tá ON”, podcast da jornalista Malu Gaspar, no O Globo. No episódio mais recente, ela entrevista o gerente-geral de medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gustavo Mendes. Entrevista maravilhosa, didática. Mas, lá pelas tantas, Gustavo menciona o episódio em que a Anvisa suspendeu, em novembro de 2020, os estudos clínicos com a CoronaVac, vacina desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o Instituto Butantan.
Todo o episódio foi uma confusão.
Gustavo conta que já era noite naquela segunda-feira, 9 de novembro, quando chegou ao sistema da Anvisa um aviso sobre os testes da Coronavac: “Tinha lá: evento adverso grave, morte”, ele lembra.
De pronto, o comitê de especialistas se reuniu e decidiu suspender, de imediato, os estudos clínicos da vacina. Ninguém da Anvisa decidiu procurar o Butantan para entender o motivo do evento adverso, o que já estava sendo feito para explicar o caso, nada.
Gustavo conta como se deu a decisão: “Por volta de oito, nove da noite, informamos nossa assessoria de comunicação (da decisão de suspender os testes) porque entendíamos que essa seria uma questão de interesse público. E, convocamos uma reunião para o dia seguinte. Interrompemos (os estudos), mandamos a comunicação (para a imprensa) e, no dia seguinte, teria a reunião. Só que nesse intervalo de tempo, tudo aconteceu. O discurso já estava feito, que a Anvisa estava interrompendo a vacina do Dória”, ele se recorda.
A jornalista pergunta o que foi perguntado lá atrás: por que, sabendo-se do tamanho da crise que se avizinhava, ninguém da Anvisa se prontificou a ligar para o Butantan para perguntar o motivo do óbito, que, mais adiante, constatou-se em nada teria a ver com reações adversas à vacina, uma vez que o voluntário teria cometido suicídio.
Gustavo responde: “eles (Butantan) também poderiam ter nos ligado”.
O episódio, que resultou em dezenas de manchetes negativas e teorias da conspiração políticas (estaria a Anvisa do Bolsonaro sabotando a vacina do Dória?), se tratou de puro mal-entendido, falta clara de comunicação entre as partes.
É nessas horas que faz falta um bom especialista em reputação.
Ele sabe o tamanho do problema, antecipa a confusão e chama os pares à racionalidade.
Se o protocolo era a suspensão dos estudos, era só chamar o Butantan e comunicar, no dia seguinte, em uma reunião conjunta o motivo da suspensão e o prazo esperado para a retomada. Tudo às claras, sem espaço para teorias conspiratórias e para desinformação.
Mas o que se viu foi uma troca de acusações mútua entre Anvisa e Butantan, duas coletivas de imprensa diferentes para explicar o mesmo assunto, pouca convergência de dados e assimetria de informação. O resultado já era esperado: teorias da conspiração profilerando-se nas redes sociais, fake news, troca de farpas entre apoiadores de Bolsonaro e Dória. Só faltou o principal: uma estratégia de comunicação bem motada, conjunta.
É por essas e outras que sempre falo: um bom gestor de crises é a pessoa certa para apagar incêndios. Já o ótimo gestor de crises está mais preocupado em evitá-los.
Deco Bancillon é jornalista e consultor de comunicação. À frente da Bancillon Comunicação (bancillon.com.br), assessora clientes de todos os tamanhos, oferecendo soluções de reputação, imprensa, public affairs e estratégia digital.