Heróis improváveis
Nunca, ninguém, fora capaz de conceber tal cenário ! Mesmo nas mais apuradas produções de ficção, científica ou não, o cinema conseguiu, alguma vez, chegar a tão inusitada situação. E tudo foi tão rápido, tão abrupto, tão longe das mais plausíveis e, mesmo longínquas, explicações que a todos apanhou de espanto, porque dizer surpresa seria pouco. A situação tornou-se, de um momento para o outro, aterradora ! Pela particularidade da calamidade, pelo seu efeito galopante que, implacavelmente, dizimava vidas e também pelo tipo de restrições que, nunca vistas ou vividas, impunha uma inversão completa dos hábitos mais entranhados de vida. A todos !..., exceto alguns…, não sei se feliz ou infelizmente...
Com o aparecimento dos primeiros casos, tudo muito estranho, sintomatologia atípica, dificilmente enquadrável numa qualquer patologia, das mais conhecidas às mais raras, poderia ser qualquer coisa, o que é certo é que as pessoas começavam a sentir-se mal, ficando nos estados mais avançados, no máximo em dois dias, completamente curvadas sobre si próprias, como se encolhessem, acabando por desmaiar e, em algumas situações, levando à morte ! A afluência aos serviços de saúde conheceu romarias nunca antes vistas, sobretudo porque um dos primeiros sintomas de tão estranho e desconhecido fenómeno era o retesar dos músculos da face, em conjunto, tipo reação tetânica, que conferia às pessoas afetadas uma cara dura, uma expressão de zanga e fúria de meter medo !
Ao fim de uma semana do aparecimento de tais casos um pouco por todo o lado, a investigação foi conclusiva. Tratava-se de uma contaminação através de um vírus que, nada se sabendo sobre a sua composição, natureza e forma de atuação no organismo humano, sabia-se de onde provinha e onde se alimentava e reproduzia. Mais uma vez a ciência teve que vestir o seu fato pouco habitual, não me refiro ao macaco mas ao da humildade..., estava-lhe um pouco apertado, já guardado há muito tempo no armário…, e, num ato de contrição, dirigiu-se à população, apelando à serenidade, recorrendo à frase lapidar que, sendo verdade da mais pura, parecia inspiração do momento pela raridade com que aparecia em público: é a ciência que anda a trás da vida, não a vida atrás da ciência ! E, então, a revelação foi feita num alerta geral que, fazendo jus à expressão, alertou toda a gente !... Estamos perante um peculiar e perigoso vírus que, sabe-se lá como, porquê e devido a quê…, apesar da seriedade do momento, não deixa de ser dignos de registo e um sinal de otimismo ouvir estas palavras da voz da ciência…, se desenvolve no interior das construções, sejam habitações, salas, consultórios, anfiteatros, hotéis…, enfim, só estaremos a salvo dos seus efeitos devastadores no exterior, na rua, em contacto total com o ar. Pelo que é declarado obrigatório o êxodo como medida preventiva e de estancamento de tão específica e maléfica praga, não sendo permitido às pessoas, sob pena de medidas de força, entrar ou permanecer em espaços fechados, quaisquer que sejam. Declara-se obrigatório a ocupação do espaço exterior para toda a gente !
Num ápice, até porque o número de casos aumentou exponencialmente em poucos dias e a ameaça mostrava o seu lado mais dramático de forma escancarada, as ruas, praças, jardins, todo o exterior foi ocupado pela população que passou, literalmente, a viver junta e próxima como nunca, para tudo. As grandes prioridades, em função da situação, foi criar as condições para, em ambiente exterior e fora de qualquer construção, se reproduzissem os meios de produção dos bens essenciais para acudir às pessoas. E assim foi feito, embora a tarefa tenha sido árdua. Hercúlea, mesmo ! As pessoas lamentavam, especialmente, as suas casas e o facto de não poderem regressar a elas. Ao conforto, às suas coisas, ao amparo de um lar, ao consolo dos seus cantos, esses “ luxos “ pessoais que agora ganhavam uma dimensão nunca antes sentida como tal. Perante um cenário tão devastador, tão cru como aquele perante o qual estavam, havia que escolher alguém, uma espécie de governo, que garantisse rumos, organização, disciplina e, acima de tudo, uma vivência que, em primeiro lugar se sobrepusesse à morte e, ao mesmo tempo, preparasse a vida depois da crise. Mas quem estaria à altura de tal desafio ? Quem deteria tão raras competências como as que eram agora exigidas ? Sobretudo em aspetos como a busca de soluções, a começar pelas mais básicas, falo da alimentação, do dormir, da higiene e da rápida aprendizagem de comportamentos essenciais para sobreviver em tão nefasto cenário de vida.
Por todo o lado surgiu uma elite de pessoas, altamente preparadas e que, de pronto, se dispuseram a tomar as rédeas da situação para ajudarem os outros. Todo os outros ! Fizeram maravilhas ! Conseguiram resultados fantásticos perante tão dramática situação ! Ultrapassada a crise e depois de normalizada a vida, talvez fosse mais rigoroso dizer retomada a vida, porque de normal nada tinha, a nova forma de vida, como a anterior à crise…, é bom que se diga e que se deixe aqui registado, assistiu-se a um corrupio das estações televisivas a procurar, para entrevistar, os agora chamados “ heróis da crise “. Todas aquelas pessoas, e eram de facto muitas, uma grande mancha que ninguém tinha, alguma vez, imaginado a quantidade e o peso que tinham na sociedade global… Quando foi para o ar, na televisão, a primeira entrevista, publicitada como ENCONTRO COM OS HERÓIS, momento de grande importância face ao que todos, heróis e população em geral, tinham acabado de viver…, o entrevistador, uma figura de relevo e com créditos no jornalismo sério, começou por lhes perguntar… quem são, de facto, estes heróis e de onde surgiram, se durante tanto tempo ninguém por eles deu conta ? Onde é que eles estavam ? A resposta, pronta e audível, dada por um dos entrevistados, olhar penetrante e meigo, foi surgindo num ritmo cadenciado e melodioso, à medida que ia gerando um efeito impressionante em todos, no estúdio e na realidade, um misto de estremeção e paralisia:
Somos cidadãos de várias origens. Não somos heróis. Mas também não somos vilões, muito menos desprezíveis. Antes desta crise que todos vivemos, éramos conhecidos por “ SEM ABRIGO “. O que fizemos não foi nada de transcendente. Limitamo-nos a partilhar. Com todos. A única coisa que tínhamos em comum. A capacidade para olhar de frente para a vida, até porque era a única a quem, durante tanto anos, vimos a cara.
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4 aUma estória que, como temos comprovado pela situação presente, digna de argumento de Hollywood, também poderia ser possível. Aliás, se alguma coisa tenho concluído durante esta pandemia é que nada é assegurado, nada é impossível e que a realidade acaba sempre por ultrapassar a ficção. Este é pelo menos um período em que nenhum de nós pode ter a pretensão de ensinar nada a ninguém. Estamos no desconhecido, será? Contudo, ao mesmo tempo, todos vamos aprendendo alguma coisa, uns com os outros, com os que estão perto e com os que estão à distância de um ecrã ou de um teclado, com as novas situações que o confinamento prolongado originam e com o próprio tempo, que, de repente, ganhou outra dimensão. Se a minha vida fosse a mesma que era há 2 semanas estaria a escrever este texto? Claro que não. Não teria tempo, não teria paciência, não acharia importante escrevê-lo. E será que é importante? Não sei, mas é diferente. Só por ser diferente é positivo? Também não sei, mas é certamente uma concretização de um novo tempo, cuja dimensão e consequências são desconhecidas.