“Houston, temos um problema”
Cíntia tinha nas mãos a chance para a qual havia se preparado. Aos 33 anos, pensou que já tivesse visto um bocado do mundo corporativo. Só que não.
15 minutos antes
Cíntia observava a si mesma, da cintura para cima, no imenso espelho do banheiro. Respiração sincopada, aproximou o rosto de menina até bafejar o espelho, o olhar fixo, como que preparando o bote certeiro, na caça de algum inseto imaginário, só que não. O alvo era uma pequena ruga de expressão, saindo discretamente do canto da narina, como um pequenino “bigode chinês”. Sorriu uma vez, sorriu outra, a marquinha lá. “Rosto de menina”. Aos 33 anos, não tinha do que se queixar. Fazia jus ao que vovó sempre lhe dizia, quando se encontravam em festas de família. “Rosto de menina”. Nos rolés com a turminha da faculdade, ainda escutava de um ou outro amigo mais próximo, o apelido de “Leandra Leal da USP". Não que se achasse muito parecida com a atriz, mas se todo mundo encasquetava com isso, então tá. Puxou da bolsa um pequeno lápis de olho, um retoque e tudo certo. Afastou um pouco o tronco, tomando distância da pia, tirando vantagem da boa iluminação. Um leve meio giro para a esquerda, leve meio giro para a direita, sem tirar o olhar, de cima a baixo, da imagem de terninho azul marinho. “ - Vovó, hoje a menina tem que brilhar e não é pouco”. Conferindo o celular, uma puxada de leve com as duas mãos no terninho, uma puxada de ar dos pulmões e um suspiro longo, duas vezes, antes de correr para a sala de reuniões, mais conhecida como “sauna”.
Catarina, dona do melhor cafezinho da empresa, tinha batizado a sala. "- O nome é porque, as vezes, a temperatura aqui sobe e não é pouco,..!”. Cíntia não precisou nem encontrar Catarina para perceber que o anticlímax na sauna era de MMA. Àquela hora exata onde os lutadores entram no ginásio, com as luvas nos ombros dos sparings, hip-hop no áudio e o lutador concentrado como um lobo. Estava na hora. O comitê de Marketing ia chegando na “Sauna” aos poucos. Cíntia cumprimentou Soares, Gerente de Contas Especiais Multicanal e o cara da “batida do martelo” em sua contratação, quase dois anos antes. Fidel, um dos anfitriões, abriu um sorrisão. Um beijo em cada bochecha: “– Pronta para o primeiro round?” Olha lá hein, Cíntia, a venda desse projeto vai ser nosso bônus de final de ano. Ajeitando-se numa das cadeiras próximas à enorme TV de LED, Cíntia mal disfarçava o sussurrado nervosismo: “ – Ai, Fidel, assim você não ajuda. Já tô nervosa, não joga toda a responsabilidade para cá não, né.” Os dois riram. Ela e Fidel entraram juntos na Mega, multinacional holandesa fabricante de equipamentos de radiologia. Admitido no departamento de procurement, envolvente nas relações e rápido com números, logo Fidel se viu promovido para a Gerência de Vendas a Governo, uma divisão nova e com imensas possibilidades. Formada em estatística, Cíntia entrou como estagiária na área de Informações de Mercado. De cara, Nélio, seu primeiro chefe, viu o enorme potencial negociador da garota. Também percebeu o quanto isso lhe custaria: na certa que a perderia em breve para algum corvo do comercial. Uma performance exemplar no suporte a uma das mais ruidosas auditorias jamais realizadas pela Mega Holanda e “puff...”. Foi o passaporte para a efetivação de Cíntia como Analista de Marketing. Um ano depois, vem o lançamento mundial, a toque de caixa, do primeiro equipamento em 3D para a detecção do Câncer de Mama, o D-Breast. Junto com ele, veio a oportunidade master-blaster para que Cíntia sentasse na cadeira de Gerente de Produtos. Mas também comeu o pão que o diabo amaçou. Todo o pré-marketing e plano de lançamento do D-Breast deveria ser apresentado em 6 meses, para o Comitê que, naquele momento, aguardava em torno do cafezinho, os momentos finais de preparação do “Octógono”, como previra Cíntia.
Um lobo em pele de cordeiro
Todos ali estavam curiosos pelo que a menina prodígio a qual o Nélio chamava de “amiga dos números” tinha a dizer sobre o D-Breast. Mas um ouvinte, em especial, filmava Cíntia de longe e por sobre os óculos redondos. Thomas era Gerente da linha Master (produtos consolidados) e ex-colega de Cíntia na USP. Como parte do comitê de novos negócios, tinha em mente que, em ajudando a trazer o D-Breast para o Brasil, estaria criando uma situação pra lá de conveniente para dar uma renovada no portfólio da Mega e, de quebra, uma chance de turbinar a carreira. Nos corredores da Mega, produto consolidado era sinal de “produto velho”. Thomas não queria a pecha de “old fashioned” em seu currículo e nada como um produto queridinho do pipeline da Holanda para preservar sua equipe das indiretas do Allan, Diretor Comercial: “ – Pô Thomas, tua linha de produtos ainda justifica ter sete Key Accounts em campo? Head Count não dá em árvore. Vai ter que explicar isso para a Holanda depois”. Allan era o chefe de toda a equipe, incluindo Cíntia, Fidel e o Bayard, Gerente da equipe de pós-venda e assistência técnica. Por ser o Gerente mais experiente e com o maior número de certificações da Mega Holanda sobre conhecimento de produtos, Thomas era o mais próximo do Allan. Juntos, comeram cada quilo de sal na época da auditoria. A empresa precisou se posicionar sobre uma suposta acusação de acordo obscuro com um distribuidor. Coisa de repasse de verbas a políticos que pudessem facilitar o acesso privilegiado à algumas licitações. Absolutamente nada ficou provado contra a Mega e a postura destemida, ética e disciplinada de Thomas como protagonista no processo, foram fundamentais para que a Mega fosso inocentada do processo. Allan jamais escondeu de todo mundo sua gratidão e como Thomas foi importante naquele que teria sido o pior momento vivido dentro daquela empresa. Superado o susto, tudo isso somava créditos e, até ali, tudo sob controle. Quase tudo. Dar o D-Breast, de mão beijada, para a Cíntia não era algo que Thomas desejava.
Alguns Diretores foram chegando. TI, Serviços de Marketing, Acesso ao Mercado, Mercado Privado e Jair, o Diretor Financeiro. “- O que eu falo tem que ter evidência, senão sou apenas eu e minhas opiniões. E vocês, com todo o direito, me cobrarão a conta depois”. Com essa frase, Cíntia começou sua defesa do D-Breast como o divisor de águas em negócios para a Mega. O cacoete estatístico fez como que, para cada afirmação, Cíntia apontasse gráficos e dados matadores. Tudo acompanhando com olhos atentos por Allan, os demais diretores e principalmente por Thomas.
Para Cíntia, fazia todo o sentido ter uma “força tarefa” especialmente focada no lançamento D-Breast. Defendia a formação de um cluster único de negócios com pessoas de Marketing, Informações de mercado, Vendas e pós-venda – e tudo sob sua coordenação. Dois terços do tempo da apresentação se passou como um raio e, aos 15 minutos do final, um detalhe pareceu mudar o rumo da conversa. Nesse momento, Thomas se mexeu na cadeira e pediu a palavra.
O vento começa a mudar
“- Cíntia, tô impressionado com sua explanação. Primeiramente quero dizer que, como parte do Conselho de Novos Negócios, defendi fortemente o D-Breast para lançarmos no país. Me sinto orgulhoso demais de ver seu trabalho em torno desse produto, o projeto é fantástico. Porém efetivamente não temos fôlego, nesse exercício fiscal, para ter um núcleo de negócios focado nesse lançamento. A contratação de gente e a curva de aprendizado do pessoal de vendas, por exemplo, para D-Breast, é maior do que o tempo que temos para que o retorno comece a acontecer. Negociamos junto com a Holanda um forecast suado para o primeiro ano, lembra?”
Sinais de concordância vieram de Allan e Jair (Financeiro). Cíntia sentiu que algo não ia bem. “- Qual foi a parte da história que eu perdi?”, foi o primeiro pensamento que lhe veio, antes de apertar o módulo “controle de pânico”. Sentindo o vento a seu favor, Thomas continuou: “- Cíntia, vamos tomar um café, depois daqui, para que eu possa te mostrar um caminho alternativo, para lançarmos o D-Breast sem susto. A gente sabe que não vai ter budget para tudo, mas dá para lançar o D-Breast, fazendo o melhor com o que já temos. Allan, não sei se estou me precipitando, mas penso que, após o aprendizado com a auditoria, não podemos perder a chance de aplicar esses aprendizados, lógico que com uma atitude ainda mais cautelosa.”
De novo, Allan e Jair mostraram total concordância com Thomas. Citar os aprendizados com a auditora foram um alívio para o desgastado Diretor Financeiro. Nesse momento, nem o alerta de “controle o pânico” conseguiu acalmar Cíntia. Atordoada, não conseguia acreditar no que estava ouvindo. Pediu uma pausa para um cafezinho e voltou ao espelho do banheiro – suava frio. Lembrou do rosto de menina. “- Vovó do Céu, tem alguma coisa muito errada acontecendo...!”
E tinha. Por meio de uma manobra muito bem feita, em um só movimento, Thomas acabara de tirar das mãos de Cíntia aquele que poderia ser o projeto de sua carreira. Anos mais tarde, em uma conversa de boteco com o ex-colega e sempre amigo Fidel, Cíntia confessaria que, apesar de não se arrepender de nada, na época não tinha a mínima ideia do quanto aquela reunião mudaria para sempre a sua vida.
Consultor Hospitalar OncoHemato CSL VIFOR
4 aDaniel Souza adorei , curiosa aqui agora pra continuar ...
Consultor Institucional/ SNC/ Oncologia/ Doenças Raras; Acessoao Mercado; Propagandista Médico / Representante Farmacêutico
4 aDaniel Souza, excelente início de história! Prende a atenção e enriquece a mente com os detalhes... ansioso para a continuação! Parabéns.
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4 aDaniel Souza agora quero saber o resto da história da Cintia.................. muito bom! Adorei!! 👏🏼👏🏼👏🏼
Mentor de Carreira na Indústria Farmacêutica | Palestrante e Treinador
4 aSensacional Daniel Souza. Conseguiu alcançar o objetivo: romantizar um episódio tão recorrente no cotidiano das empresas. Me senti como um telespectador assistindo a um episódio da minha série preferida. Aguardando ansioso os próximos episódios...