Implementação do Controle Estatístico do Processo – Alguns Aspectos Não Técnicos

Implementação do Controle Estatístico do Processo – Alguns Aspectos Não Técnicos

Introdução

Até o momento temos abordado muito do controle estatístico do processo (CEP) por meio de suas características técnicas e aplicações. Neste artigo, no entanto, falamos da sua implementação, dificuldades inerentes à mesma e possíveis obstáculos e fatores aceleradores do uso em maior escala desta importante área de conhecimento da ciência da qualidade.


A Descoberta de Walter Shewhart

Segundo Neave (1990), nos anos 1920, Shewhart havia trabalhado por 18 meses na Western Electric e havia se transferido para o recém fundado Bell Laboratories em New York.

Segundo o próprio W. Edwards Deming:

 “Parte do negócio da Western Electric envolvia a fabricação de equipamentos para sistemas telefônicos. O objetivo era, claro, confiabilidade: fabricar equipamentos idênticos que tivessem a confiança das pessoas. Western Electric tinha a ambição de ser capaz de anunciar: “tão similares quanto dois telefones”. Mas eles descobriram que, quanto mais eles tentavam atingir consistência e uniformidade, piores eram os defeitos. Quanto mais eles tentavam reduzir a variação, maior ela se tornava. Quando qualquer tipo de erro ou acidente ocorria, eles partiam para tentar corrigi-lo. Era um objetivo nobre. Só havia um problema. As coisas pioravam. 

Eventualmente, o problema chegou a Walter Shewhart no Bell Laboratories. Dr. Shewhart trabalhou no problema. Ele descobriu dois tipos de erros:

·       Tratar todo erro, reclamação ou acidente como se fosse proveniente de uma causa especial, quando, na realidade, não havia nada de especial, ou seja, ele vinha do sistema: da variação aleatória devida a causas comuns.

·       Tratar qualquer erro, reclamação ou acidente como se fosse proveniente de causas comuns, quando, na realidade, ele vinha de uma causa especial

Que diferença isso faz? Toda a diferença entre fracasso e sucesso.

Dr. Shewhart decidiu que essa era a raiz dos problemas da Western Electric. Eles não entendiam a diferença entre causas comuns e causas especiais. Certamente não gostamos de erros e reclamações, mas se nós tratarmos todos eles sem entendimento, nós somente tornamos as coisas piores. Isto é facilmente provado matematicamente.”

Então, apesar de toda a questão organizacional que possa envolver a implementação do CEP, um fator complicador pode estar no próprio comportamento humano, com sua característica de não aceitação da aleatoriedade como fator relevante de sistemas de processos.


A Tendência em Buscar Causas para Qualquer Variação

As pessoas são predispostas a buscar explicações causais específicas para eventos. A noção de que resultados podem ser consequência de eventos inespecíficos ou aleatórios é difícil para muitas pessoas assimilarem (Levi e Mainstone, 1988). Os conceitos de independência estatística e aleatoriedade em uma sequência também não são facilmente reconhecíveis por muitos. Assim, procura-se atribuir mais previsibilidade a eventos aleatórios do que eles merecem.

Vejamos na própria configuração da carta de controle:

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Fig. 1. Uma região de estabilidade de um processo (somente causas comuns de variação).

Qual de nós já não participou de reuniões onde precisamos encontrar explicações para o fato de B ser maior do que A, ou C ser menor do que B etc.? Se um processo apresenta estabilidade e está sujeito somente a causas comuns de variação, não há uma causa atribuível para explicar tais variações. Trata-se somente da variação aleatória à qual um processo saudável está submetido. Certamente há padrões aos quais devemos estar atentos mesmo para pontos entre os limites de controle, mas eles já são cobertos pelas chamadas regras de detecção (Western Electric Handbook).


Processos de Atribuição

Os processos de atribuição acontecem quando tentamos responder à pergunta “Por quê?” As atribuições causais são importantes para o controle estatístico de processo, devido à centralidade do processo de diagnóstico no seu uso. No entanto, já foram detectados vieses sistemáticos no processo no qual as pessoas fazem atribuições (Levi e Mainstone, 1988).

A tendência de se atribuir, desproporcionalmente, níveis de performance aos trabalhadores em si, pode levar a tentativas mal- sucedidas de se melhorar a qualidade de produtos e serviços.  O famoso Red Beads Experiment, realizado por W. E. Deming em seus seminários de 4 dias, é uma demonstração disto.

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Fig. 2 – Red Beads Experiment, tradicionalmente executado por Deming.


A Ilusão do Controle

Em muitas ocasiões, nós superestimamos o nível de controle que possuímos sobre um resultado. Um trabalho importante sobre esta característica foi realizado por Ellen Langer (1975). Segundo esta pesquisa, as pessoas se comportam como se eventos aleatórios ou ao acaso estivessem sujeitos a controle. Ainda em Langer and Roth (1975), é analisado como consideramos se uma tarefa é de habilidade ou é de resultado aleatório por meio da sequência de resultados. As pessoas tendem a ver a si mesmas como responsáveis pelo seu próprio sucesso, buscando características ambientais que suportem tal conceito.

Logo, toda a sólida teoria que sustenta o controle estatístico do processo pode encontrar obstáculos no próprio comportamento humano, dificultando sua implementação em larga escala.


Possíveis Fatores para a Implementação Bem-Sucedida  

Em Gordon, Philpot, Bounds and Long (1994), uma extensa pesquisa (31 empresas de manufatura) por amostragem é realizada para se testar algumas hipóteses consideradas relevantes para a implementação do CEP, quais sejam:

A implementação do CEP será mais bem-sucedida em departamentos que percebem que a alta liderança apoia seu uso.

A implementação do CEP será mais bem-sucedida em departamentos que treinam de maneira inclusiva em vez de maneira seletiva.

A implementação do CEP será mais bem-sucedida em departamentos que utilizam treinadores internos (membros da organização).

A implementação do CEP será mais bem-sucedida em departamentos que realizam reuniões de colaboradores para debater questões da qualidade.

Os resultados obtidos foram:

Quanto maior o comprometimento percebido da alta liderança, maior a taxa de sucesso do departamento para a implementação do CEP.

Departamentos que foram bem-sucedidos na implementação do CEP confiaram mais em treinamento inclusivo do que seletivo para membros do departamento.

Instrutores internos estão mais proximamente associados com implementações bem-sucedidas de CEP.

Em departamentos com implementações bem-sucedidas, supervisores têm maior probabilidade de participar de reuniões com os colaboradores operacionais sobre assuntos referentes à implementação do CEP.


Aspectos Motivacionais

Rungtusanatham (2001) estuda os possíveis efeitos motivacionais da implementação do controle estatístico do processo, afirmando que as modificações implantadas para o seu uso adequado não se restringem ao subsistema tecnológico, mas também ao sócio-técnico. As 14 dimensões identificadas no estudo justificam a pesquisa sobre aspectos motivacionais e humanos como consequência da implementação do CEP:

Ações gerenciais e políticas que suportam a implementação do CEP.

Proeminência do uso da carta de controle na melhoria do processo.

Identificação de características críticas de medição

Sofisticação tecnológica e consistência dos dispositivos de medição.

Responsabilidade do operador sobre o controle do processo por meio das cartas de controle.

Verificação das premissas para o uso das cartas de controle.

Uso da informação das cartas de controle para melhoria contínua.

Estratégias de amostragem do processo.

Treinamento em métodos estatísticos e cognitivos para controle e melhoria do processo.

Suporte técnico para implementação e prática do CEP.

Apoio da equipe de melhoria da qualidade à atividade do CEP.

Ausência da inspeção final como estratégia de controle da qualidade.

Documentação e atualização do conhecimento sobre os processos.

Auditoria e revisão da prática e desempenho do CEP.

O estudo conclui que a implementação e prática do CEP parecem realmente possuir um impacto positivo e direto sobre o potencial de motivação, significando que os colaboradores passaram a perceber um enriquecimento maior do seu trabalho.


O Controle Estatístico do Processo no Século XXI

Variação sempre existirá. A afirmação de que o CEP perdeu seu lugar em meio às novas tecnologias parece-me ser impensada. Talvez tenhamos que nos adaptar a novas necessidades, como processos com baixíssima taxa de falhas, mas isto, como já apresentado aqui em artigos anteriores, já foi endereçado, por meio, por exemplo, de cartas geométricas. Haverá a necessidade de análise e feedback rápido aos operadores das chamadas smart factories, que contarão com o controle estatístico de processo automatizado.

Uma possível necessidade de adaptação pode ser observada nas situações onde trabalhamos com quantidades muito grandes de dados, o que se tornou possível atualmente. As cartas-p, por exemplo, tornam-se muito sensíveis nestas ocasiões, seu uso não sendo recomendado (já abordado aqui em artigo anterior).

E devemos considerar que os impactos positivos do CEP não estão somente no chão-de-fábrica, podendo ser observados em tomadas de decisão em diversos níveis da empresa. Na realidade, o controle estatístico do processo pode ser aplicado a manufatura, serviços, óleo e gás, administração, economia, gestão de pessoas e diversas outras áreas.

O tema “Qualidade 4.0”, associado à aplicação da transformação digital e novas tecnologias às técnicas e gestão da qualidade, pode se constituir em um desafio para os profissionais que utilizam técnicas tradicionais, ainda que estas tenham provado sua importância e aplicabilidade em um sem número de processos. Contudo, esperamos que a Qualidade 4.0 não repila as técnicas usadas, mas as torne mais eficientes e amplas.


A Experiência do Autor

A minha experiência, após muitos anos trabalhando com métodos de melhorias de processo, é que a questão comportamental, envolvendo pré-julgamentos, a ilusão de controle sobre variáveis, e a tendência do ser humano em procurar explicações causais para eventos aleatórios, têm sido determinantes para a criação de eventuais obstáculos ao adequado uso do CEP. Talvez a própria cultura ocidental de resultados mais imediatos e busca de justificativas em relação a possíveis não atingimentos de alvos, rechace uma técnica de aplicação razoavelmente simples, mas tão bem baseada em sólidos conceitos teóricos. É comum para o autor presenciar situações em que profissionais por ele mesmo treinados saem à procura de explicações para comportamentos aleatórios do processo, mostrando quão arraigado está este comportamento.

Sob uma visão prática, alguns tópicos parecem dominar a lista de dificuldades encontradas no uso do CEP: decidir qual carta de controle usar, decidir qual característica da qualidade monitorar, falta de comprometimento da liderança, fraco entendimento das técnicas etc. Alguns treinamentos partem do princípio de que qualquer aprofundamento técnico pode desmotivar o aluno, o que gera como output alunos “operadores de software”, reduzindo a capacidade do profissional de entender e aplicar variações da técnica para diversas situações.

Os que conseguiram implementar adequadamente o CEP ao longo dos quase 100 anos de sua existência, possuem histórias de sucesso a relatar, com a técnica contribuindo para a redução de custos e para a maior estabilidade dos processos, trazendo impactos benéficos para a organização e para o cliente, por meio do aumento da qualidade de produtos e serviços, e criando melhores condições para que outras metodologias possam ser aplicadas.


Considerações Finais

O artigo tentou, resumidamente, apresentar obstáculos à implementação do CEP, sob o ponto de vista comportamental, bem como ressaltar aspectos motivacionais advindos do uso adequado desta técnica.

Os desafios para o CEP em uma era de tecnologias emergentes foram resumidamente descritos, além de ser exposta a opinião do autor de que, devido à quase onipresença do tema “variação”, poderemos testemunhar adaptações do CEP a novas necessidades, mas não a sua descontinuidade de uso.

No próximo artigo, será apresentada uma proposta de framework para uma adequada implementação do controle estatístico do processo.

 

Referências:

Neave, H., (1990). The Deming Dimension. SPC Press.

Levi, A. S., Mainstone, L. E., (1988). Obstacles to Understanding and Using Statistical Process Control as a Productivity Improvement Approach. Journal of Organizational Behavior Management.

Langer, E. J., (1975). The Illusion of Control. Journal of Personality and Social Psychology.

Langer, E. J., Roth, J. (1975). Heads I Win, Tails It's Chance: The Illusion of Control as a Function of the Sequence of Outcomes in a Purely Chance Task. Journal of Personality and Social Psychology.

Gordon, M. E., Philpot, J. W., Bounds, G. M., Long, W. S., (1994). Factors Associated with The Success of The Implementation of Statistical Process Control. The Journal of High Technology Management Research.

Rungtusanatham, M. (2001). Beyond improved quality: the motivational effects of statistical process control. Journal of Operations Management.


Jose Lopes Ramos

Conselheiro do Conselho Municipal de Proteção de Dados Pessoais (CMPDP) Prefeitura Rio de Janeiro | Projetos | Riscos | Consultor | Perito Forense | Professor | Auditor

3 a

Excelente

Edson Rui Montoro

Especialista em aplicação de Estatística para Melhoria de Processos e implementação de Lean Manufacturing.

3 a

A liderança tem um papel preponderante no sucesso de um sistema de CEP!

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