Inflação de demanda?
Deflação do IPA-DI em 12 meses é a maior desde 1945
VALOR ONLINE Por Ricardo Barboza e Bráulio Borges, 24/05/2023
Vários analistas têm interpretado que a inflação brasileira atual refletiria um excesso de demanda sobre a oferta, em termos agregados. Ou seja, os preços estariam subindo porque a demanda efetiva está maior do que a capacidade de oferta de bens e serviços da economia brasileira.
Dentre os argumentos que sustentam o diagnóstico de inflação de demanda, destacamos os seguintes: a taxa de desemprego, atualmente em torno de 8,5%, está baixa em termos históricos (a média dos últimos 25 anos é próxima de 10%); a inflação de serviços está acelerando na ponta; e os núcleos de inflação estão rodando em patamar elevado, bem acima das metas. Discordamos desse diagnóstico.
Um excesso de demanda agregada geralmente se verifica por meio do chamado hiato do produto - dado pela distância entre o PIB efetivo e o PIB potencial - que leva em conta o grau de ociosidade dos principais fatores de produção, capital e trabalho. Segundo estimativas do Banco Central, o hiato do produto está em terreno negativo no Brasil há 31 trimestres, isto é, desde o 3º trimestre de 2015.
Aliás, as decomposições (dos desvios) da inflação efetiva ante as metas em 2021 e 2022, divulgadas pelo BC em suas Cartas Abertas, indicam que o hiato do produto gerou uma contribuição negativa para a alta do IPCA nos últimos dois anos - o que deve se repetir mais uma vez em 2023, já que o BC e o consenso de mercado projetam um hiato "abrindo" neste ano (leia-se, ficando ainda mais negativo).
Sobre a inflação de serviços, vale observar o núcleo de "serviços subjacentes" do IPCA, que exclui alguns componentes mais voláteis. Em abril deste ano, a média móvel de 3 meses dessazonalizada e anualizada dessa medida subiu 5,8%, vinda de 5% em março. De fato, é uma aceleração. Contudo, esse mesmo núcleo correu a 11,6% ao ano em julho de 2022 e vinha desacelerando seguidamente até março deste ano nessa mesma métrica, sem que isso significasse muita coisa por si só.
O que provavelmente está ocorrendo no setor de serviços é uma tentativa de recomposição de preços relativos, após a completa reabertura da economia no ano passado. De fato, nos últimos três anos, o nível de preços desse setor foi disparado o que mais sofreu os efeitos da pandemia dentre todos os grandes grupos do IPCA. Entre abril de 2020 e abril de 2023, enquanto o nível de preços de bens não duráveis subiu 39,2%, e os bens duráveis subiram 26,5%, o nível de preço de serviços subiu somente 17%, sendo que no caso dos serviços intensivos em trabalho (em tese, o subgrupo mais sensível às condições do mercado de trabalho), a alta acumulada foi de apenas 12,8%. Vale lembrar que, no mundo todo, o usual é que a inflação de non-tradables suba mais do que a dos tradables, por uma série de razões (menores ganhos de produtividade e menor contestabilidade nos primeiros, dentre outras).
Em relação ao fato de que os núcleos de inflação estão em patamar elevado, acima da meta, é preciso assinalar que tais medidas não são insensíveis a choques de oferta (favoráveis ou desfavoráveis). Ou seja, núcleos em patamar relativamente alto não são uma sinalização inequívoca de que há pressão de demanda na economia. Basta ver o que aconteceu em dezembro de 2020: a média móvel de três meses dessazonalizada e anualizada das cinco medidas de núcleo "preferidas" do BC estava correndo a 5,7%, bastante acima dos 3,1% observados em dezembro de 2019. A economia claramente não estava superaquecida naquele momento, com uma taxa de desemprego de quase 15% ao ano (3 p.p. acima do observado no final de 2019).
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O quanto os choques de oferta impactam as medidas de inflação subjacente depende da magnitude e da persistência do choque original, dentre outras coisas. Num contexto em que a economia brasileira foi eletrocutada por choques desfavoráveis sucessivos e expressivos em 2021 e 2022 (gargalos em cadeias globais de valor, forte alta nos preços dos fretes internacionais, choques climáticos adversos no Brasil e na Argentina e a guerra entre Rússia e Ucrânia), é natural que o desvio seja mais alto e demore mais tempo para passar - algo que é reforçado pela elevada indexação formal e informal de preços e salários à inflação passada no país.
Diante disso, talvez o leitor esteja se perguntando: por que é importante entender se a principal fonte de pressão inflacionária vem da demanda ou da oferta? Basicamente, porque isso tem consequências para a inflação futura e para a condução da política monetária (que olha para o futuro próximo).
Diante de pressões de demanda (hiato positivo), Bancos Centrais não devem relutar em subir a taxa de juros, para níveis contracionistas, até que a economia retorne para uma situação de hiato do produto em torno de zero (pleno emprego). Já quando a inflação é afetada em boa medida por choques de oferta desfavoráveis, os BCs devem focar em combater seus efeitos secundários, com a magnitude do aumento do juro dependendo de quanto o Banco Central dá peso, em sua tomada de decisão, para a atividade econômica. No caso brasileiro, segundo os parâmetros divulgados para a "regra de Taylor" do modelo de pequeno porte do BC, esse peso é zero, contrariando o seu mandato dual light introduzido pela LC 179/2021, de "suavizar as flutuações do nível de atividade e fomentar o pleno emprego".
Além disso, se a inflação acima das metas reflete principalmente os efeitos de choques de oferta desfavoráveis, a dissipação dos choques originais já tende a fazer boa parte do serviço desinflacionário. Nesse contexto, convém notar que o IPA-DI, que captura a inflação ao produtor e atacado de matérias primas, bens intermediários e bens finais, já acumula deflação de 5,2% nos 12 meses até março, tão somente a maior deflação desde 1945, quando o índice começou a ser calculado. No caso do IGP-10, que já tem dados até maio, também observamos a maior deflação desde quando há dados disponíveis.
Se em outros países, como nos EUA, parece claro que a inflação pressionada reflete tanto choques de oferta desfavoráveis, como uma economia superaquecida, esse não parece ser o caso do Brasil.
Ricardo Barboza é pesquisador associado da FGV Ibre, professor do Ibmec e mestre pela PUC-Rio.
Bráulio Borges é pesquisador associado da FGV Ibre, economista sênior da LCA e mestre pela USP. As opiniões aqui expressas são estritamente pessoais.