Inovações em Ensaios Clínicos: Uso de Inteligência Artificial e Machine Learning em Pesquisa Clínica
A integração de IA e ML na pesquisa clínica representa uma revolução no campo, trazendo maior precisão, eficiência e personalização aos ensaios clínicos. Essas tecnologias podem melhorar a qualidade dos resultados e a segurança dos pacientes envolvidos. Primeiramente, iniciamos com alguns conceitos:
Inteligência Artificial (IA): Refere-se a sistemas de computador capazes de realizar tarefas complexas que historicamente apenas um ser humano poderia realizar, como raciocinar, tomar decisões ou resolver problemas. São, na verdade, uma simulação da inteligência humana através de sistemas computacionais. Essas simulações podem realizar tarefas como reconhecimento de fala, tomada de decisões, tradução de idiomas e percepção visual. A IA envolve várias subáreas, incluindo aprendizado de máquina (ou Machine Learning), aprendizado profundo, processamento de linguagem natural, e sistemas especialistas.
Machine Learning (ML): É um ramo da IA e da ciência da computação que se concentra no uso de dados e algoritmos para permitir que a IA imite a maneira como os humanos aprendem, melhorando gradualmente sua precisão. Isso permite que esses algoritmos façam previsões ou decisões sem serem explicitamente programados para tal. ML utiliza métodos estatísticos para encontrar padrões em grandes volumes de dados e melhorar continuamente seu desempenho com base na experiência adquirida.
Principais diferenças: A IA é um campo mais amplo que engloba várias abordagens para simular inteligência, enquanto o ML é um subconjunto que se concentra especificamente em permitir que máquinas aprendam a partir de dados.
Como pode se dar a aplicação dessas tecnologias em ensaios clínicos?
Pesquisas pré-clínicas: A IA pode contribuir para a descoberta de novos alvos moleculares e previsão de toxicidade e previsão de segurança com base nas informações alvo. Previsões eficientes de toxicidade têm o potencial de substituir modelos animais. O acesso a grandes conjuntos de dados farmacocinéticos (PK) e farmacodinâmicos (PD), de pesquisas pré-clínicas e clínicas anteriores (incluindo de ensaios fracassados), é necessário para desenvolver e “treinar” algoritmos eficazes e confiáveis que gerem novas moléculas estáveis com potencial de tratamento real. Porém, a falta de dados PK/PD publicados, por razões competitivas ou proprietárias, é um obstáculo significativo para alcançar o potencial total da IA na descoberta de novos medicamentos.
Projetar o desenho e prever resultados de pacientes nos ensaios clínicos: A previsão de resultados clínicos é essencial para o advento da medicina de precisão e para informar o desenho dos ensaios, eliminando a variabilidade estatística das populações em geral. A IA pode ser usada para simular dados para detectar medidas de resultados estatísticos mais eficientes, com base na molécula do medicamento, na doença alvo e nos critérios de elegibilidade do paciente. Um relatório sugere que o uso de um algoritmo de IA para prever os resultados dos participantes e identificar aqueles com maior probabilidade de progredir rapidamente e atingir os objetivos mais cedo pode levar a ensaios de duração mais curta. Com base no resultado previsto, as empresas farmacêuticas podem decidir alterar o desenho do ensaio ou experimentar um medicamento completamente diferente. Além disso, ao analisar registros médicos eletrônicos, a IA também oferece uma possibilidade de prever a probabilidade de abandono dos pacientes em um ensaio clínico. Essas ferramentas podem ser implementadas para melhorar a seleção de medicamentos e adaptar os medicamentos em investigação à histologia de um câncer específico, por exemplo, aumentando assim a taxa de sobrevivência dos participantes. Outro fato interessante é que uma empresa chamada Intelligent Medical Objects, desenvolveu o SEETrials, um método para fazer com que o grande modelo de linguagem GPT-4 da OpenAI extraia informações de segurança e eficácia dos resumos de ensaios clínicos. Isso permite que os projetistas de ensaios clínicos vejam rapidamente como outros pesquisadores elaboraram ensaios e quais foram os resultados. Outra ferramenta útil é a chamada CliniDigest, que resume simultaneamente dezenas de registros do ClinicalTrials.gov, o principal registro dos EUA para ensaios médicos, acrescentando referências ao resumo unificado.
Recrutamento de Participantes: Entre os obstáculos gerais que existem na criação e condução de um ensaio clínico, o recrutamento de participantes continua sendo um grande desafio. O impacto do recrutamento inadequado é conhecido por ser imenso em termos de tempo e custo financeiro associado ao ensaio. Tais desafios devem-se principalmente a protocolos complexos, falta de conhecimento do ensaio, medo emocional de participação e muitas vezes apenas falta de interesse em participar. Em todas as áreas terapêuticas, as ferramentas de IA podem combinar dados como dados demográficos, laboratoriais, de imagem e outros dados, para combinar os pacientes com esses critérios de inclusão complexos, garantindo a adequação ao recrutamento. Um grupo em Stanford desenvolveu um sistema chamado Trial Pathfinder que analisa um conjunto de ensaios clínicos concluídos e avalia como o ajuste dos critérios de participação – como limites para pressão arterial e contagem de linfócitos – afeta as taxas de risco, ou taxas de incidentes negativos, como doenças graves ou morte entre pacientes. Em um estudo publicado em 2021 na Nature (Evaluating eligibility criteria of oncology trials using real-world data and AI), os pesquisadores aplicaram o sistema Trial Pathfinder a ensaios de medicamentos para um tipo de câncer do pulmão. Eles descobriram que ajustar os critérios sugeridos pelo sistema teria duplicado o número de pacientes elegíveis sem aumentar a taxa de risco. O estudo mostrou que o sistema também funcionou para outros tipos de câncer porque tornou as pessoas mais doentes – que tinham mais a ganhar com os medicamentos – elegíveis para tratamento. Por outro lado, os obstáculos nos ensaios clínicos não terminam quando os pacientes se inscrevem. As taxas de abandono são altas. Numa análise de 95 ensaios clínicos, quase 40% dos pacientes pararam de tomar a medicação prescrita no primeiro ano. Neste sentido, a IA pode ajudar incluindo o uso de dados anteriores para prever quem tem maior probabilidade de desistir, para que os médicos possam intervir.
Condução dos ensaios clínicos: A inclusão de ferramentas automatizadas na coleta de dados e no desenvolvimento de novos biomarcadores digitais que dependem de algoritmos de IA para interpretar dados podem transformá-los em dados utilizáveis, como acesso quase em tempo real usando dispositivos vestíveis e sensores que podem ser fornecidos aos locais de investigação, para obter visualizações da condição de um participante. Melhorar a supervisão da segurança dos participantes nos ensaios, especialmente aqueles com condições debilitantes ou potencialmente fatais, é uma vantagem evidente facilitada pelo acesso mais rápido a informações acionáveis. Outro bom exemplo aplicável seria em distúrbios psiquiátricos e neurológicos, no que tange a adesão ao medicamento em investigação. Por exemplo, neste caso, um dispositivo de captura de vídeo com um algoritmo de IA integrado pode ser usado para confirmar de forma mais confiável quando um participante tomou seu medicamento. O uso de IA também pode agilizar a revisão e complementar a análise de imagens médicas. Os algoritmos de IA podem suportar a anotação automatizada de marcadores importantes. Outro ponto é que a IA também pode melhorar os fluxos de trabalho para revisão de imagens usando ferramentas automatizadas de classificação de imagens e acelerando o tempo de leitura dos especialistas.
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Análise de dados: A IA pode ajudar os pesquisadores a gerenciarem os dados recebidos de ensaios clínicos. Embora as investigações mostrem que raramente existe um efeito de tratamento homogêneo perfeito, a identificação da heterogeneidade do efeito é um problema bem conhecido para os estatísticos de ensaios clínicos. Essas ferramentas podem representar uma oportunidade para análises mais abrangentes e promover dados mais robustos para as indústrias de medicamentos. No entanto, o desafio da aceitação regulamentar exige que os investigadores encontrem formas de validar totalmente os resultados fornecidos por estes novos modelos.
Documentos regulatórios: A utilização da IA no desenvolvimento e aprovação está incluída na Estratégia Científica Regulatória da EMA (Agência Europeia de Medicamentos, ou European Medicines Agency) para 2025. Embora as orientações harmonizadas da EMA ainda não estejam disponíveis, os Estados-Membros dando andamento a iniciativas nacionais. Nos EUA, o Centro de Excelência em Saúde Digital (DHCoE) do FDA divulgou orientações sobre o desenvolvimento e certificação de SaMD e lançou o programa piloto de pré-certificação para software, ambos aplicáveis a soluções de IA/ML usadas no contexto de ensaios clínicos se forem classificadas como SaMD. Além disso, Boas Práticas de Aprendizado de Máquina para MD publicadas recentemente abordam desafios destacados por várias publicações revisadas (por exemplo, representatividade de conjuntos de dados para mitigar preconceitos; avaliação contínua por meio de vigilância de modelo e gerenciamento de risco durante o treinamento do modelo na vida real).
No Brasil, o Tribunal de Contas da União (TCU) coordenou em 2019 um grupo de estudos para a troca de experiências em processamento de linguagem natural (PLN ou NLP, da expressão inglesa natural language processing), através da aplicação de modelos de IA. A equipe da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) apresentou os resultados alcançados em 2 estudos conduzidos no período. O primeiro estudo tratou da classificação dos medicamentos pelo sistema Anatômico Terapêutico Químico (Anatomical Therapeutic Chemical – ATC), onde o algoritmo deveria classificar os medicamentos a partir dos textos contidos nas indicações terapêuticas das bulas, e alcançou uma precisão de 96,35%. A base desse estudo foi composta por mais de 6 mil bulas de medicamentos. O segundo estudo tratou da aplicação de PLN às normas da ANVISA. Dentre as tarefas executadas no estudo, destacam-se a classificação das normas nos respectivos macrotemas, a geração automática de textos e uma análise de agrupamento das normas pelos seus tópicos. A precisão obtida com a classificação das normas foi de 86%. Para o treinamento foram utilizadas mais de 1.800 normas, tanto vigentes como revogadas. A partir do aprendizado obtido através dos textos das bulas de medicamentos e das normas, e como forma de testar a capacidade de aprendizado do modelo, os algoritmos desenvolvidos foram testados para verificar a sua capacidade de desenvolver textos de bulas e normas que não existem. Esses algoritmos e os resultados obtidos foram posteriormente submetidos a revistas especializadas no tema em questão.
Fontes:
· Askin S, Burkhalter D, Calado G, El Dakrouni S. Artificial Intelligence Applied to clinical trials: opportunities and challenges. Health Technol (Berl). 2023;13(2):203-213. doi: 10.1007/s12553-023-00738-2. Epub 2023 Feb 28. PMID: 36923325; PMCID: PMC9974218.
· Liu R, Rizzo S, Whipple S, Pal N, Pineda AL, Lu M, Arnieri B, Lu Y, Capra W, Copping R, Zou J. Evaluating eligibility criteria of oncology trials using real-world data and AI. Nature. 2021 Apr;592(7855):629-633. doi: 10.1038/s41586-021-03430-5. Epub 2021 Apr 7. PMID: 33828294; PMCID: PMC9007176.
· ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. TCU: Agência é destaque em grupo de estudos. Disponível em: https://antigo.anvisa.gov.br/en_US/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/anvisa-destaca-se-em-grupo-de-estudos-do-tcu/219201?inheritRedirect=false&redirect=http%3A%2F%2Fantigo.anvisa.gov.br%2Fen_US%2Fnoticias%3Fp_p_id%3D101_INSTANCE_FXrpx9qY7FbU%26p_p_lifecycle%3D0%26p_p_state%3Dnormal%26p_p_mode%3Dview%26p_p_col_id%3Dcolumn-2%26p_p_col_count%3D1%26p_r_p_564233524_tag%3Dprocessamento%2Bde%2Blinguagem%2Bnatural
· Hutson, M. How AI is being used to accelerate clinical trials. Nature index. Vol 627, 2024.
Pharmacist | Clinical Research Associate | Pesquisa Clínica | Medical Affairs | Medical Science Liaison (MSL)
6 mExcelente artigo Fernanda Wirth !! É inegável que a IA está transformando a pesquisa clínica de maneira positiva, através de ferramentas poderosas para melhorar a saúde e o bem-estar dos pacientes, além de otimizar diversos processos. Por coincidência fiz uma postagem hoje a respeito disso, onde pesquisadores da Mass General Brigham utilizaram a versão do GPT-4 da OpenAI para acelerar o screening de pacientes elegíveis ao estudo COPILOT-HF. Eles levantam ainda alguns desafios para que se possa garantir que a IA seja implementada de forma responsável e ética, garantindo a confiabilidade, segurança e eficácia dos processos.