"Inteiro ou em pedaços, enxergue que ainda sou eu" - A ilegitimidade da SC COSIT nº 150/2013

"Inteiro ou em pedaços, enxergue que ainda sou eu" - A ilegitimidade da SC COSIT nº 150/2013

A Receita Federal do Brasil acabou de publicar a Solução de Consulta COSIT nº 150/2023, fixando que para se enquadrar num determinado Ex-tarifário, "é necessário que todas as características da mercadoria se adequem perfeitamente às especificações descritas no referido destaque, inclusive quanto à condição de importação para montagem no destino nas modalidades Completely Knocked Down (CKD) ou Semi Knocked Down (SKD)", que vem sendo divulgada como um reforço jurídico à posição restritiva que já estava sendo aplicada pela RFB no desembaraço e revisão aduaneira de produtos enquadrados pelo contribuinte em Ex-tarifários.

Os fundamentos para a posição de que uma mercadoria desmontada só pode ser enquadrada em um Ex-tarifário quando esse preveja essa condição em sua redação, foram: (a) que o Ex-tarifário é um benefício fiscal que reduz a alíquota do Imposto de Importação e, consequentemente, seria necessário interpretar seu escopo "de maneira restritiva e literal" por força do art. 111, inciso II do Código Tributário Nacional; (b) a Resolução GECEX nº 314/2022, que regulamenta o procedimento de concessão de Ex-tarifários para automóveis e veículos comerciais leves, traz consigo o "nível de montagem" como critério para concessão; e (c) o nível de montagem é também apontado em algumas situações da concessão padrão para bens de capital em geral, vide exemplo do Ex-tarifário nº 001 da NCM 8607.91.00 (Radiadores).

Dito isso, afirmo, sem qualquer pudor ou receio, que a interpretação estabelecida pela mencionada Solução de Consulta é juridicamente ilegítima.

Ex-tarifários são um enquadramento adicional e temporário na nomenclatura pautal adotada pelo Mercosul, criando uma segregação para determinado produto ou gênero de produtos. Eles podem ser benéficos (quando atrelados à redução de alguma alíquota), neutros (quando visam apenas clarificar um enquadramento controverso até que ocorra a atualização definitiva da nomenclatura) ou gravosos (quando atrelados ao aumento da carga tributária).

Os Ex-tarifários, independentemente do seus efeitos na tributação, são de observância e adoção obrigatória pelos contribuintes, ainda que isso não seja de seu interesse. Não é um enquadramento opcional que o contribuinte pode escolher utilizar ou não: uma vez editados e até que percam a vigência, eles não se diferenciam em nada dos subitens padrão da NCM.

Vale frisar que a Classificação fiscal é uma das informações obrigatórias do despacho aduaneiro e cuja higidez é verificada na conferência aduaneira (arts. 564 e 589 do Regulamento Aduaneiro) e quando o contribuinte não enquadra a mercadoria num Ex-tarifário existente e que pelas regras de classificação fiscal de mercadorias descreve o produto, ele comete a infração aduaneira de classificação incorreta (art. 711, inciso I do Regulamento Aduaneiro) ainda que isso faça com que recolha mais tributos aduaneiros.

Portanto, Ex-tarifários, apesar de temporários, não são enquadramentos excepcionais ou opcionais: São o tratamento imposto por lei e pelas regras de classificação fiscal de mercadorias e devem ser observados enquanto vigentes. Quanto a esse tema, é recomendável a leitura do histórico Acórdão do Processo Administrativo nº 10907.000187/2006-95, da relatoria do Ex-Conselheiro Paulo Moreira, no qual foi corretamente fixado que "Ex-Tarifário não se caracteriza como benefício fiscal, pois sua natureza é de exceção a determinado código tarifário, podendo implicar a redução ou majoração de alíquota".

E isso é importante para entender que não há diferença prática entre a redução da alíquota do II ou IPI para um subitem específico da NCM e a concessão de um Ex-tarifário com uma alíquota comparativamente menor, o que por sua vez revela a insubsistência jurídica da argumental fiscal porque a variação das alíquotas de tributos federais de natureza iminentemente extrafiscais por atos infra legais (II, IE, IPI e IOF) está autorizada no art. 153, §1º da CF/88 e sempre foi vista como um componente natural de tributos dessa natureza em que a arrecadação fica (ou deveria ficar) em segundo plano.

Tributos extrafiscais têm um tratamento especial quanto às suas alíquotas e por isso estão dispensados da exigência de edição de lei em sentido estrito para sua fixação, majoração ou redução (e é por isso que as alíquotas desses tributos são controladas através de listas/tabelas infralegais e não fixadas em lei).

Numa situação em que inexista interesse em intervenção no mercado através dos tributos, a União Federal poderia zera-los sem que ao fazê-lo estivesse concedendo uma isenção propriamente dita: ela está apenas ajustando a carga tributária às finalidades do tributo. Ao querer tratar o Ex-tarifário como um benefício fiscal apenas em função da redução comparativa da alíquota, a RFB afronta toda a sistemática de tributos extrafiscais que permite as variações de alíquota através de atos infralegais, por ela utilizada também quando as majora.

E porque a RFB faz isso? Para disfarçar que não é o contribuinte que está extrapolando o escopo de um suposto benefício fiscal mas ela que está violando a legalidade administrativa, tributária e aduaneira ao criar uma restrição ao enquadramento no Ex-tarifário não prevista em qualquer norma.

Segundo o princípio da legalidade, os elementos essenciais da relação jurídica tributária (inclusive relacionados ao enquadramento na nomenclatura de classificação fiscal) também devem ser definidos em normas escritas, o que importa em limitações ao poder regulamentar (e ao “poder interpretativo”) do Poder Executivo. E, obviamente, por se tratar de uma limitação a direito, as vedações, restrições e condições devem ser interpretadas restritivamente. Ou seja, o limite e o alcance da descrição contida no texto de posição de uma NCM não podem ser “interpretados”, devendo, ao revés, estarem “previstos”.

O Poder Executivo, dentro de sua prerrogativa tributária, só pode instituir exigências para o enquadramento em determinada posição da NCM, em observância ao que determina a legislação de regência, que, como visto, exige que estes constem expressa e exaustivamente no texto da posição, subposição, item, subitem ou Ex-tarifário, sob pena de nulidade de sua imposição.

Em outras palavras, se o Ex-tarifário não faz distinção sobre determinado nível de montagem, função, forma ou qualquer outra característica, é porque isso não é um elemento jurídico considerado no enquadramento, estando as mercadorias nele contidas apesar dessa característica adicional não tratada na redação. Se as demais características estão presentes, já é suficiente ao enquadramento.

Isso é especialmente verdadeiro em relação ao nível de montagem, já que a RGI nº 2-A estabelece que não influencia na classificação fiscal de determinado produto o fato dele estar desmontado ou por montar, desde que já apresente no estado em que se encontra, as características do artigo completo/acabado. A menos que o Ex-tarifário explicitamente mencione o nível de montagem como um elemento característico (e consequentemente de exclusão), não há qualquer base jurídica para distinguir o tratamento entre o montado e o desmontado.

Por esses motivos acima, a posição adotada pela RFB na Solução de Consulta COSIT nº 150/23 é juridicamente insustentável e, mais grave, está completamente fundada em equívocos conceituais quanto ao conceito de Ex-tarifários, benefícios fiscais e os requisitos interpretativos do CTN.

Ps: Uma discussão para um outro momento, e muito mais profunda, diz respeito à possibilidade de enquadramento em Ex-tarifários em superação a características supérfluas (ou seja, aquelas que não afetam a função exercida, o tipo de bem ou a ausência de produção nacional) contidas de maneira explícita em sua redação. Nesse caso nem precisamos ir tão fundo.

Paulo Roberto Duarte Moreira

Advogado Tributário e Aduaneiro. Ex-Presidente-Conselheiro Fazendário de Turma Ordinária da 3ª Seção do CARF. Auditor-Fiscal da Receita Federal (Alfândega Porto de Santos/SP e DRF Londrina/PR). Aposentado.

1 a

Excelente artigo, Thales! Destaco outro ponto de vista equivocado da Receita, que parece não se atentar para a razão da criação de um EX: a inexistência de produção de equivalente nacional, que é o princípio estabelecido na norma que rege a concessão de Ex-tarifário - a Portaria ME n. 309/2019 - ele aparece 10x. Nas disposições da Portaria não há qualquer referência à exigência da descrição exata do bem importado que se adeque perfeitamente ao texto do Ex-tarifário. Os elementos essenciais para definir a tal equivalência e manter/ou não o EX estão nos dispositivos: art. 3º, II, “e”; art. 5º; e § 2º; art. 6º; art. 9º; art. 13, I, § 2º, “a”; e IV, § 2º, “b”. Agradeço a menção ao Acórdão 3201-005.526 de minha relatoria cujo âmago foi: “A verificação de correspondência de uma mercadoria já identificada com a descrição do Ex-Tarifário pretendido deve concentrar-se nos elementos que indubitavelmente apresentem as características essenciais de forma a se adequarem às especificações estabelecidas no referido EX.” Portanto, perfeito sua conclusão: o Ex-tarifário não faz distinção sobre determinado nível de montagem, e isso não é um elemento jurídico considerado no enquadramento.

Carolina Wanderley

Head of Marketing & Innovation | TTMS

1 a

Thales, adorei o texto. Também não concordo, uma vez que para se realizar a classificação fiscal de um bem, como determina as regras gerais de interpretação, não importa se o produto estaria montado ou não. Acredito que o princípio deveria ser o mesmo para enquadramento e aplicação do ex-tarifário.

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