Interações entre Inovação e Direito: a Encomenda Tecnológica (ETEC)
Codex Arundel, folha 87. Domínio público. Documento original de propriedade do British Museum from the Royal Society.

Interações entre Inovação e Direito: a Encomenda Tecnológica (ETEC)

O Freitas da Silva Advogados (FdS) inicia aqui uma série de artigos sobre a interação entre Inovação e Direito, com foco nos aspectos práticos e nas oportunidades que surgem desse diálogo.

O próprio nome “Inovação” indica que as relações que dela surgem ocorrem necessariamente antes de o Direito regulamentá-las. Como nosso objetivo não é acadêmico, usamos a palavra “inovação” como um novo olhar para o que já está presente no mundo.

A imagem escolhida para esse artigo é a folha 87 do Codex Arundel, um conjunto de anotações de Leonardo da Vinci sobre novas perspectivas para diversas ciências. Nesta, da Vinci faz um ensaio de como utilizar energia solar para a operação de máquinas têxteis e para aquecimento da água para banheiros. Isso no século XV.

Nesse primeiro artigo, trataremos de uma ferramenta jurídica que tem vocação para transformar nosso país, ao mesmo tempo que aproxima interesses legítimos privados e públicos: a Encomenda Tecnológica (ETEC).

A Encomenda Tecnológica (ETEC)

A ETEC é uma compra realizada pelo Poder Público destinada a encontrar uma solução ainda não disponível no mercado para determinado problema. Do lado de quem é contratado, é um esforço tecnológico para encontrar uma solução inédita para um problema relevante.

A ETEC surge para o mundo jurídico com a edição da Lei nº 10.973/04, que trata de incentivos à inovação e à pesquisa e abre a possibilidade de o Poder Público adquirir Pesquisa e Desenvolvimento (P&D).

No entanto, os principais temas da Lei dependiam de regulamento próprio. Por essa razão, a ETEC sempre teve como principais barreiras os entraves e os legítimos receios dos gestores públicos em pagarem por algo que tem considerável chance de não dar certo e serem responsabilizados por isso.

Essa barreira foi consideravelmente quebrada com a regulamentação promovida pelo Decreto nº 9.283 em 2018. Pode-se empregar a ETEC quando houver: (i) ausência de fornecedor no mercado; (ii) inadequação dos métodos tradicionais de aquisição pelo Poder Público e (iii) como principal conceito e pedra angular, a presença de risco tecnológico para o desenvolvimento.

O risco tecnológico

Diferentemente das demais compras públicas, que por sua natureza envolvem baixo (embora sempre presente) risco, na ETEC ele é necessariamente alto e tem definição própria: risco tecnológico.

Quem lê nossos artigos já sabe que entendemos que a adequada alocação de riscos de qualquer contrato é elemento-chave para o desenvolvimento de relações contratuais saudáveis. Em nossa opinião, a ETEC é a relação jurídica que necessita que a alocação do risco tecnológico seja impecável.

A definição de risco tecnológico está no artigo 2º, III do Decreto nº 9.283:

risco tecnológico – possibilidade de insucesso no desenvolvimento da solução, decorrente de processo em que o resultado é incerto em função do conhecimento técnico-científico insuficiente à época em que se decide pela realização da ação.

Esse conceito, aliado a outras premissas do Decreto – necessidade de métricas objetivas para avaliar se o resultado final é efetivamente atingível, existência de funil que comprove a crescente diminuição da incerteza durante a pesquisa... – cria uma estrutura de segurança jurídica para que o Poder Público e a iniciativa privada negociem projetos cujo risco seja diretamente proporcional à possibilidade de protagonizar o desenvolvimento do país e a diminuição/eliminação de graves problemas.

O Jeep e a Vacina para a Covid-19

Para materializar o potencial da ETEC e, assim fomentar a curiosidade dos gestores públicos e das empresas inovadoras, trazemos dois exemplos de ETEC.

Antes do início da 2ª Guerra Mundial, o exército norte-americano precisava substituir o transporte com tração animal pelo motor à combustão e, para tanto, fez essa encomenda à indústria automobilística. 3 empresas se interessaram pelo desafio e submeteram ao comitê técnico do exército. Ao final do processo, a empresa Willys-Overland Motors foi escolhida e fechou acordo para a produção de 16.000 unidades do veículo, que ficou conhecido como Jeep. Embora nascido para a triste utilização em guerra, o Jeep permanece até hoje como um produto atrativo para aplicações não militares.

Saltemos algumas décadas para hoje, quando vivenciamos outra tragédia de proporções semelhantes às guerras: a pandemia. Na data da publicação desse artigo, não há vacina disponível para o Covid-19.

É o caso típico da ETEC: demanda urgente para a qual não há solução no mercado. Em paralelo às ações emergenciais relacionadas às medidas preventivas, o Poder Público não pode se omitir na busca da solução definitiva e apenas “torcer” para que alguma empresa privada crie a vacina para o Covid-19.

Por essa razão, a China, a França, a Alemanha, a Inglaterra e os Estados Unidos fizeram há bastante tempo encomendas tecnológicas para diversas empresas da indústria farmacêutica, compartilhando riscos (essencialmente financeiros) e futuros benefícios (patentes compartilhadas, volumes mínimos de distribuição, etc).

Recentemente, o Brasil formalizou acordo com o laboratório AstraZeneca para o desenvolvimento da vacina. Por qual modalidade? Encomenda Tecnológica.

A ETEC como umas das principais ferramentas para a garantia do desenvolvimento nacional

Os objetivos da República Federativa do Brasil são quatro e estão previstos no artigo 3º da Constituição Federal: (i) sociedade livre, justa e solidária; (ii) desenvolvimento nacional; (iii) erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e; (iv) promoção do bem de todos sem qualquer preconceito.

Para todos eles existem empresas dispostas a contribuir decisivamente, seja criando vacinas para doenças como a dengue e a zika, seja trazendo soluções inovadoras para o saneamento básico, para o fornecimento de energia, etc...

A ETEC pode ser a principal ferramenta que aproximará o público do privado na construção de um país mais próspero e menos desigual.

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