A Involução da Propaganda (e a Estratégia para evoluir).
A "Reinvenção da Propaganda" é assunto que está em pauta há muito tempo. Eu me lembro de uma capa da revista Exame, na época em que as revistas ainda tinham uma relevância muito maior do que infelizmente têm hoje, discutindo o tema. Se na época o motivo para o debate era mais o modelo de negócios desta indústria, hoje soma-se a isso o crescimento do chamado marketing digital, e da apropriação da publicidade por parte de outros "atores" que não as clássicas agências e os tradicionais publicitários. Como falei na semana passada, a publicidade nunca esteve tão viva: passou apenas a ser executada por outras pessoas como os chamados influencers ou outros profissionais "autônomos" vendendo seu próprio negócio, serviço, curso ou produto, ou de alheios (como afiliados ou outras modalidades).
O que verdadeiramente mudou foi que "nada mudou": se tecnologicamente demos talvez 50 passos adiante nos últimos anos, em termos de estratégia de marca podemos ter dado 50 passos para trás.
A novidade tecnológica parecia ter trazido uma forma completamente nova de se falar com as pessoas, de se vender produtos e de criar marca. No entanto, hoje tem ficado patente o quanto os fundamentos continuam os mesmos e, pasmem, talvez sejam mais ignorados do que no passado. Cada vez mais fala-se na necessidade da "definição de um nicho", de "constância da mensagem", de "conhecer seu público", de ter o "seu branding" (seja lá o que isso signifique), ou de simplesmente seguir o que sempre se ensinou para quem esteve disposto a estudar construção de marca. Personalidades como Paulo Cuenca tem dado verdadeiras aulas de branding no Instagram, trazendo assuntos como "valor de marca", "consistência", "autenticidade" e "desejo" para aqueles que começaram agora no marketing digital, ou estão querendo evoluir. Ele é genial em suas estratégias e colocações, mas não deixa de ser um sinal de alerta observar este "atraso" na adoção de práticas já amplamente adotadas antes mesmo do Orkut existir. Mais estarrecedor é encontrar algumas grandes companhias cometendo os mesmos deslizes do profissional que entrou agora na internet - você já deve ter visto inúmeras tentativas de grandes marcas animadas pelo frenesi dos super apps, querendo vender de tudo, falar de tudo e fazer de tudo, e a cada momento de uma forma diferente.
Se no início foi possível vender na internet "sem branding", sem estratégia, sem constância, hoje já se torna cada vez mais difícil. É claro que, no início de qualquer nova tecnologia, as coisas tendiam a funcionar de uma maneira mais rudimentar, e vale dizer que precisamos "jogar" conforme o contexto e admitir que foi possível vender e crescer ali no passado recente. Mas também vale lembrar que precisamos ser espertos se queremos continuar evoluindo. Historicamente, não costumamos ser.
No passado criticamos a mídia por mostrar um mundo irreal, longe demais da vida das pessoas, repleto de "cenários, maquiagem, montagem e efeitos especiais". E o que não aconteceu quando demos às pessoas o poder de terem sua própria voz e publicar o que quisessem na internet, sem o intermédio de um grande canal midiático? Acho que você já enxergou a resposta: um monte de gente comum postando "só o lado bom da vida" no Instagram, gerando ansiedade e depressão em muitos de seus expectadores, enquanto vivem, como sabemos, uma vida muito distante daquilo que posta.
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O pior é observar que a prática de "parecer bem na foto" não é nova, e anterior até à invenção da própria eletricidade. Se buscarmos a história da pintura de retratos, encontraremos o termo "SPREZATTURA", atribuído ao diplomata e escritor Baldassare Castiglione (1478-1529), que salientava o fato de as pessoas gostarem de ser retratadas com poses que não demonstrassem esforço ou sofrimento, denotando seu poder e "elegância" nos retratos que delas eram pintados. Soa parecido com o que acontecia nos programas televisivos da tarde, ou no mais atual Instagram e redes sociais?
A mesma ausência de evolução aconteceu com a qualidade do que é dito na publicidade. Eu já me debrucei sobre isto em um artigo publicado no livro "Ciberpublicidade", em 2014, quando examinei como a linguagem e as práticas da propaganda não mudaram tanto quando migraram para o digital. Se na época da capa da revista que eu postei aqui nós já estávamos discutindo questões como a necessidade de mais "transparência", "humanidade" e menos "promessas exageradas", "impessoalidade" ou "artifícios ilusórios" no discurso publicitário, hoje é possível encontrar todos estes atributos reinando nos inovadores formatos encontrados nas redes. São reels, carrosséis, canais de transmissão e threads e mais threads às vezes até mentirosos sobre produtos milagrosos, com influencers prometendo "mundos sem fundos" ou com depoimentos fingindo intimidade com o uso de marcas que mal conheciam antes de serem chamadas para realizar os famosos publis. A quantidade destes exemplos é, infelizmente, tão exponencial quanto a promessa de sucesso nas redes.
O que todos exemplos me chamam atenção é como a "novidade tecnológica" por muitas vezes é capaz de nos distrair tanto com suas novas possibilidades quanto com seus novos dilemas e polêmicas. Perdidos aí, nós nos esquecemos do essencial, da linha central de evolução que estávamos trilhando: o que, de fato, precisamos melhorar?
Você já deve ter entendido que hoje meu post fala também do papel estratégico da própria sociedade enquanto culpada e enquanto vítima de todos estes movimentos, e não apenas das práticas dos negócios. Afinal, os danos e os retrocessos desses movimentos me preocupam um pouco mais do que os resultados menos expressivos de um balanço corporativo. Mas uma coisa está ligada com a outra, e é fácil observar como muitas marcas podem estar se equivocando ao não olhar para a construção de mensagens coerentes e mais evoluídas, e se voltando iludidas apenas para o jogo das redes sociais, com mensagens "produzidas por i.a." sem muito critério, ansiosas para jogar na próxima tendência. A evolução de qualquer tecnologia, meio ou prática, sem um olhar criterioso do "para onde estamos indo e por que", ou seja, sem estratégia, pode ser um caminho igualmente exponencial para a involução, tanto dos negócios, quanto da própria sociedade. Enquanto não repensarmos o fator humano envolvido em toda as tecnologias, não haverá inovação que nos faça evoluir. Qualquer boa estratégia começa, sem dúvida, por esta percepção que só nós, os não-máquinas, poderemos ter.
Referências:
Livro "Ciberpublicidade. Discurso, experiência e consumo na cultura transmidiática", organizado por Guilherme Nery Atem, Thaiane Moreira de Oliveira, Sandro Tôrres de Azevedo, da Ed. E-Papers.