Já é possível comprar um carro pela internet? (Parte 2)
Nota : esta é a segunda parte da versão alargada de um artigo de opinião sobre o mesmo tema publicado na Revista Turbo do mês de Dezembro de 2023.
A recente irrupção do modelo de distribuição da marca Tesla provocou um efeito dominó na indústria automóvel.
Num contexto de revisão da regulamentação europeia para o setor, alguns fabricantes (OEM) inspiraram-se na Tesla e decidiram enterrar o modelo tradicional de distribuição assente em concessionários. Buscam a simplificação e a redução dos custos de distribuição, a harmonização dos preços ao comprador final e um maior domínio da relação com os clientes finais. Subsistem ainda muitas dúvidas sobre os contornos finais dos novos modelos de distribuição das OEM. Pelo que teremos de aguardar pela sua implementação para aferir da exata amplitude da digitalização do processo de compra de cada OEM. Nessa ocasião, será interessante perceber quais serão afinal as preferências dos consumidores, num cenário em que poderão optar entre as novas jornadas digitais de compra e os modelos tradicionais, aos quais se manterão fiéis algumas OEM.
A pandemia foi o outro evento disruptivo que marcou os últimos anos. O forte incremento das compras remotas que se verificou durante a pandemia criou a perceção de que o comércio digital seria o “novo normal”. Enquanto se assistia a esse fenómeno do lado da procura, a escassez de componentes eletrónicos e a perturbação das cadeias de distribuição levavam à contração da oferta disponível de carros novos. Confrontados com as longas filas de espera e com o aumento dos preços de carros novos, muitos particulares orientaram-se para os carros usados, o que levou este setor a conhecer uma histórica subida de preços (segundo dados do Observatório Indicata, do grupo Autorola, os preços médios dos carros usados terão aumentado cerca de 25% em Portugal, ao longo dos anos 2021 e 2022).
Esse contexto internacional galvanizou as empresas que se propunham digitalizar totalmente a forma como compramos carros usados. Os planos de negócio dessas empresas pareceram mais sedutores do que nunca e os investidores, ávidos de aplicações rentáveis, não quiseram perder a oportunidade de entrar, desconsiderando os riscos inerentes ao modelo de negócio. Em meados de 2021, a norte-americana Carvana, fundada em 2017 e conhecida como “a Amazon dos carros usados”, foi avaliada em 60 mil milhões de US Dollars. Na mesma altura, a britânica Cazoo, conhecida como “a Carvana da Europa”, era avaliada em 7 mil milhões de US Dollars.
Dois tipos de estratégias online emergiram nesse período: por um lado os modelos asset-heavy, ou seja, aqueles em que as empresas adquirem e carregam no seu próprio balanço o stock de carros usados que transacionam online. De entre os intérpretes deste modelo encontramos as duas empresas já mencionadas, Carvana e Cazoo. Outras empresas, como a alemã Heycar ou a espanhola Niw, adotaram um modelo asset-light, mais próximo do negócio de classificados digitais, em que os carros anunciados pertencem a comerciantes e não à própria plataforma digital.
Apesar dessa diferença, os dois modelos partilhavam a ambição de digitalizar totalmente a compra de carros usados. Tiveram também em comum a acumulação de perdas nos primeiros anos de vida das empresas, provocadas por elevados gastos de marketing e por estratégias de expansão agressivas. Aproveitando a liquidez abundante injetada por investidores e por credores, os marketplaces digitais de carros usados investiram fortemente em publicidade e patrocínios, com o objetivo de dar rapidamente a conhecer a marca e de liderar a angariação do tráfego de clientes em cada mercado. Afinal de contas, o exemplo das Big Tech tinha-lhes ensinado que os primeiros players digitais a alcançarem níveis altos de notoriedade tendem a ser recompensados com a fidelidade dos consumidores, criando mercados com estruturas winner-takes-all.
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A “festa” foi tão intensa quanto curta.
Os planos de negócios das plataformas previam uma crescente adesão dos consumidores às jornadas digitais de compra. Graças à integração de soluções digitais de identificação remota do comprador, de avaliação das retomas e de contratação do crédito automóvel, acreditava-se que a maioria dos compradores já não necessita sair de casa para comprar um carro usado. Apesar disso, a adesão massiva dos consumidores não se verificou e, como consequência, os cashflows de 2022 ficaram aquém das previsões dos planos de negócios.
Tornou-se evidente que investidores e analistas não avaliaram adequadamente as condicionantes de adesão ao online automóvel, mencionadas na primeira parte deste artigo, devido ao efeito combinado de um insuficiente conhecimento do negócio e de incontido entusiasmo. Ao mesmo tempo, o sentimento dos investidores mudou rapidamente, numa conjuntura económica pós-pandemia marcada pela rápida subida da inflação, pelo fim dos planos estatais de irrigação de liquidez e pela subida das taxas de juro. Nesse novo cenário, os investidores “fecharam a torneira”, exigindo aos gestores dos marketplaces digitais que tornassem o negócio financeiramente autossuficiente. Sucederam-se os cortes drásticos de despesas operacionais e as vendas de ativos., tendo algumas das empresas reduzido ou encerrado a atividade em 2023. Em um ano, a valorização da Carvana e da Cazoo perdeu cerca de 98%.
Na ressaca destas experiências mal sucedidas, parece impor-se uma tendência que aponta para um modelo de compra híbrido: por um lado, preservam-se as etapas presenciais que asseguram a experiência sensorial e a segurança do consumidor. Por outro lado, todas as restantes etapas tenderão a ser digitalizadas, em nome da simplicidade e rapidez.
Desenvolverei essa conclusão na terceira e última parte deste artigo.
Até lá, fico a aguardar as vossas reações e comentários.
Feliz Ano Novo!