Joker: as críticas“posinegativas”
[ALERTA DE SPOILER para quem ainda não assistiu]
Levei algum tempo para tecer minhas observações sobre o filme: estava extasiada, admirada, chocada, preocupada. Os rumores — bons e ruins — com certeza existem mas decidi descrever as minhas próprias percepções sobre o filme. E antecipo que foi extremamente construtivo e pedagógico sair da minha zona de conforto cognitiva e compreender todos os pontos de vista. Foi um grande aprendizado.
O filme traz a história de Arthur Fleck, personagem atípico e inesperado para os que buscavam a representação clássica dos coringas anteriores: apresenta-se frágil, desconcertado, à margem do mundo em que vive, desconexo, só e para além das questões sociais, ele traz em si uma condição patológica: a risada. A risada característica do personagem seria um distúrbio crônico, que precede momentos de intenso nervosismo e dadas as condições aplicadas no filme: ajuste a determinada situação, para ele, de vulnerabilidade ou desconforto social (como na cena do ônibus, na cena do trem ou mesmo nos corredores do prédio onde trabalhava), e acabava na dualidade de ser também, uma maneira de se enquadrar num mundo ao qual pertencia.
ASPECTOS POSITIVOS
Os aspectos positivos, para mim, são tão importantes quanto os outros. A começar por uma enorme exploração dos elementos no roteiro, os elementos cinematográficos e a atuação impecável de Joaquin Phoenix, o filme é uma obra prima e revolucionária no sentido de dar a um personagem uma perspectiva nada convencional, e dizem muitas línguas, que é digno do oscar. Particularmente, eu concordo. Dando continuidade às observações, o filme traz muitos pontos necessários de reflexão.
Apresentarei alguns elementos importantes nesta análise. O primeiro deles é, sem dúvida, o mais óbvio: A maneira como as questões patológicas/psiquiátricas são encaradas na sociedade. O diferente é tratado como à parte, diminuído, esquecido, escória, chacota. Isso é um ponto de discussão importante para se entender e dialogar a cerca das questões psiquiátricas e até mesmo psicológicas no Brasil (e não só). Questões muitas vezes tidas como loucura, surtos, frescuras e que trazem sofrimento, angústia e desespero para quem vive naquela condição. Além disso, é importante perceber que o riso não era a única questão psiquiátrica de Fleck. Basta considerar as manias, dificuldade de interação e delírios ou alucinações. Se aprofundarmos, há claramente uma psicopatia dividindo espaço com uma esquizofrenia ou mesmo outra questão mais severa, talvez causada neurologicamente pelo efeito excessivos de medicamento. E este é um outro/segundo ponto: a medicalização sem freios e a falta de apoio terapêutico deve ser encarada com seriedade. Gosto da maneira direta que o filme trata: tirando os profissionais e instituições sérias, o poder público, sobretudo aqui, demonstra pouco ou nenhum interesse em saúde mental.
Um terceiro ponto que deve ser tratado é o viés revolucionário que o filme traz. Em relação às promessas do poderio em Gotham, ali cristalizadas na figura de Thomas Wayne é interessantíssima e para mim muito positiva a maneira como as revoluções podem acontecer quando o povo compreende que possui força. A reviravolta contra os ricos de Gotham, na justificativa de que estes nunca estiveram interessados na ordem e paz na cidade, nada difere do que vivenciamos cotidianamente nas nossas cidades. A velha política prometendo um novo modo, uma nova ordem, pisoteando fracos e pobres. E confesso, gostei bastante.
ASPECTOS PREOCUPANTES
Apesar do título dessa reflexão, não considero como negativos os aspectos que aqui considerarei, mas de relevante preocupação, e o primeiro que irei desdobrar está intimamente relacionado à todos os outros: a responsabilidade social embutida neste filme. Isso porque o filme, as atuações e suas subjetividades não serão facilmente compreendidas pela grande massa que teve ou terá acesso ao filme. Com isso, algumas coisas desdobram deste primeiro fato e me fazem questionar.
1) A humanização do abominável
Vale compreender que eu — pedagoga e neurocientista educacional — tenho na teoria e na prática contato diário com as questões psicológicas e psiquiátricas e que — por maiores que sejam todas as críticas no filme — nem todos absorveram ou absorverão um fato direto e claro: O Coringa não se torna um psicopata sanguinário por seu contexto, ele o é. Obviamente como em qualquer situação de modificação neurológica e comportamental, o contexto social pode diminuir ou potencializar as ações do indivíduo mas nunca tirar deles a autoria de suas ações. Num artigo científico publicado no jornal El País, datado de 2018, essa questão é trazida de maneira muito clara e objetiva quando, mesmo que compreendamos todos os efeitos das químicas cerebrais e mesmo os desdobramentos comportamentais, por mais que se entenda que aquilo que ocorre nessas circunstâncias é que a associação entre emoção e cognição na tomada de decisões seja bloqueada na execução da ação, esses indivíduos são responsáveis por seus atos. Não sou eu quem digo, é a neurociência através das suas comprovações científicas. Assim sendo, minha preocupação é com uma romantização de um personagem doentio.
2) A não compreensão acerca dos quadros de saúde mental
Aqui eu vou tratar muito mais do espanto empírico por mim vivenciado na sala de cinema do que do desconhecimento, ignorância ou mesmo desdém das pessoas, porque isso eu trouxe nos pontos de reflexão lá em cima. Foi surreal a maneira como as pessoas gargalhavam na sala de cinema durante as risadas desesperadoras do personagem. A impressão e experiência não foram só as minhas: outros tantos amigos, amigas, colegas, conhecidos que assistiram e possuem um mínimo de entendimento tiveram a mesma percepção mediante a reação de uma maioria. Isso não te parece preocupante? Mais do que uma brincadeira ou uma graça, as pessoas não enxergaram, quer fosse as questões comportamentais entristecedoras, quer fossem os aspectos doentios presentes no personagem. Viram uma gigantesca piada. Piadas como essas talvez sejam presenciadas todos dias na invisibilização de fatores patológicos e psicológicos dentro das casas, salas de aula, transportes coletivos ou mesmo diante do próprio espelho. Mesmo Arthur Fleck diante de toda a sua insanidade, que lhe parecia sã, sabia das suas condições. Mas quantas pessoas conseguem interpretar isso? Poucas. Isso me chocou ainda mais pela banalidade do momento e das risadas. As pessoas não estão preparadas se quer para enxergar os Arthur Fleck que podem estar mais perto do que nós imaginamos e é provável que até disso façam piada. Quantos massacres em escolas podem ter sido realizados por pessoas com o perfil de Fleck? Nunca saberemos.
3) O levante de um “símbolo”
Talvez essa seja de fato uma das minhas críticas mais incisivas ao filme. A revolução em Gotham, retratada e identificada na figura do Coringa pelo feito “contra a burguesia de Gotham” pode ter corrido o risco de ser caricaturada de maneira grosseira, traçando um ponto de identificação com protestos extremamente violentos, desorganizados e loucos, nada compatível com a maioria dos protestos e movimentos revolucionários reais. E que geralmente, não buscam dar poder à um líder em si, onde os fins irão justificar os meios, independente de quais sejam. Esse é um ponto, como todos os outros que pode ser interpretado de maneira completamente diferente da disposta.
Considerações Finais
O filme em si é um legado interessantíssimo às reflexões a cerca da própria realidade. Traz uma séries de duras verdades a serem refletidas, contextualizadas, discutidas e modificadas. Mas é também um filme que traz a dúvida da maneira com a qual a grande maioria do público irá interpretar o personagem. Volto a dizer: a minha preocupação é a romantização e humanização do personagem, uma espécie de “coitadismo” cultural que justificariam suas ações, quando na verdade nua e crua o personagem é sim cruel e desumano. Vale perceber quando, na cena do banheiro, ele finalmente encontra-se com parte do seu eu e que é assumido muito antes da entrada no palco do programa — nas mortes posteriores as dos homens no trem, inclusive a de sua própria mãe, como maneira de pagar pelo seu passado — , o mesmo programa onde ele concretiza a aceitação do que ele realmente é.
Acredito que a grande crítica do filme resida exatamente nos pontos que trato com maior delicadeza e atenção nos tópicos desta reflexão: Residimos num mundo doente, que naturaliza o doentio e abominável e essa naturalização é tão forte que tendemos transformar a imagem de um psicopata em um pobre marginalizado socialmente. Obviamente, não podemos nunca desumanizar alguém em detrimento de suas condições em nenhuma situação, mas JAMAIS deixar de imputar à alguém responsabilidade por suas ações.
E que fique claro que eu nunca tratarei nada como vitimismo, como podem achar conveniente aquele que ler esta reflexão e pensar, minimamente, que eu concorde com pensamentos contrários e que violem os princípios básicos de direitos humanos. O que ressalto é apenas que devemos tratar com seriedade estes assuntos e que saúde mental é coisa relevantemente séria.
Rachel Nery
Neuropedagoga - UCAM-AVM | Pedagoga - Universidade Federal Fluminense
5 aExcelente reflexão!